Os erros políticos de Marcelo Freixo

O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) anunciou, via Globo, que desistiu de ser candidato à prefeitura do Rio de Janeiro.

Em seguida, explicou, também ao Globo, as razões de sua desistência.

Em minha humilíssima opinião, Marcelo Freixo cometeu uma série de erros políticos, e muitos deles podem ser identificados em sua entrevista, que gostaríamos de comentar em detalhe. 

Também fiz comentários em vídeo:

Vamos reproduzir as perguntas e respostas em itálico, e fazer os comentários em seguida. 

Globo: Por que o senhor está desistindo de ser candidato à prefeitura?

Freixo: Não é uma notícia que dou com alegria. É uma decisão em formato de gesto, mais do que de palavras. É doído, mas é preciso que a gente sacuda um pouco esse processo para tentar a construção de um projeto no Brasil. Estou fazendo isso em nome de algo que é maior do que qualquer coisa. Considero o governo Bolsonaro uma ameaça à democracia. E por que tanta gente competente está assistindo a um incompetente no poder? Algum erro todos nós cometemos e estou me incluindo. Estou tendo um gesto de chamar para a unidade. No Rio, coloquei minha candidatura, que era supostamente natural. Tive muito apoio de imediato do PT, de quem não tenho uma vírgula para falar. No Rio, não houve nenhuma crise de hegemonismo do PT do qual ele é acusado em outros lugares. Também estava tendo diálogo com o PCdo B. Mas o PDT não aceitou essa composição, mesmo com muito diálogo com o (Carlos) Lupi. Mas, ele entende que o PDT tem que lançar candidato porque tem projeto para 2022. O PSB sequer quis fazer reunião, mesmo eu tendo solicitado inúmeras vezes.

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Freixo comete dois erros básicos logo no início da entrevista. Primeiro erro: o tom lamuriento, choroso, derrotista. Se não quer disputar a candidatura, então não dispute. Mas sem chororô! Diga que tem outros planos e engate um discurso de luta!  Segundo erro: culpar outros partidos por sua própria incapacidade de articulação. A própria entrevista já deixa entrever facilmente porque outros partidos não quiseram se aproximar. Freixo se colocou, desde o início, como um “candidato natural”. Ora, aí temos uma contradição. Se Freixo não tinha interesse em montar uma frente com outros partidos de esquerda, ele era, de fato, o candidato “natural” do PSOL. Mas se tinha interesse, então o debate tinha que ser feito sem falar em candidatura. 

Freixo não é um candidato tão “natural” assim. A vitória de Wilson Witzel nas eleições para governador em 2018 (ele teve 39% dos votos na capital, no 1º turno) mostra que o eleitorado carioca está numa fase conservadora. O Rio tem, provavelmente, o maior eleitorado evangélico do país, o que explica a vitória de Crivella em 2016. Nessa conjuntura, não está certo que um candidato do PSOL, identificado de maneira tão forte com os aspectos mais polêmicos do identitarismo, seria a melhor estratégia para “derrotar o fascismo”. 

Se é verdade que a esquerda precisa ser “madura”, como pede Freixo, e ter consciência de que Bolsonaro é uma ameaça ao regime democrático, e à própria existência do Brasil como país, esse recado deve ser também recitado ao espelho. 

Freixo inicia um esboço de autocrítica, ao dizer que “algum erro todos nós cometemos e estou me incluindo”.

Pois bem, Freixo, mas que erros foram esses? De que adianta falar que houve “erros” e se calar?

Então Freixo faz um elogio terrivelmente ingênuo ao PT: “Tive muito apoio de imediato do PT, de quem não tenho uma vírgula para falar. No Rio, não houve nenhuma crise de hegemonismo do PT do qual ele é acusado em outros lugares”.

Essa foi a cooptação mais fácil do mundo. O PT sinalizou apoio e, com isso, não apenas neutralizou qualquer independência que Freixo pudesse apresentar em relação aos governos petistas, para criticá-los com imparcialidade, aproveitando-se ainda do fato de que o PSOL foi, de fato, oposição ao PT, como ainda, ao cabo, tirou-o do jogo. 

A pergunta que se deveria fazer é a seguinte: se o PT é tão poderoso, porque o seu apoio não bastou a Freixo? 

Nas eleições para o governo do Estado, em 2018, o PSOL teve apoio apenas do PCB, e não desistiu por causa disso. Nas eleições presidenciais, idem. Boulos tinha apoio apenas do mesmo PCB, e isso também não foi um problema. 

Freixo parece não querer enxergar o óbvio. O apoio que recebeu do PT para sua campanha constituiu, em verdade, um beijo da morte, porque para outros partidos de esquerda, e para setores do próprio PSOL, o PT  é parte do problema, e não a solução. 

Por que os outros partidos de esquerda não querem entrar numa aliança com o PT? Será porque eles não tem “maturidade” ou não entenderam a gravidade da situação? Será apenas porque “tem projeto para 2022”, como diz Freixo, com um toque de maldade? 

Ou seria exatamente o contrário? Não seria justamente por entender o drama da conjuntura que esses partidos entendem a necessidade de fazer uma série de autocríticas e críticas ao passado, tentando se reconciliar com o eleitorado, e, assim, abrir caminho para que o campo progressista volte a oferecer uma liderança moral ao país?

E não seria a recusa terminante do PT em fazer qualquer autocrítica que acabou por afastar definitivamente as outras legendas?

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Globo: Há alguma chance de voltar atrás na decisão?

Freixo: Não. Não faz sentido. Repetiríamos uma situação como em 2016 e não vejo cabimento, diante de uma ameaça fascista e de um governo autoritário como o do Bolsonaro, nós nos comportarmos como sempre nos comportamos: divididos e fragilizados. Se é para isso, eu, antes de pedir para alguém tomar esse gesto, tomo uma atitude.

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Não sei bem que é esse “nós” da frase. Se for a esquerda, nem sempre ela ficou dividida e fragilizada. Ao contrário, ganhou 4 eleições presidenciais com muita união e força. Infelizmente, o PT não entendeu que coalizações partidárias apenas são possíveis de durar se houver um mínimo de rodízio entre os partidos que a compõem. Em 2010, era o momento de abrir para outro partido. Não o fez. Em 2014, também. Não o fez. Em 2018, o PT preferiu lançar uma candidatura mesmo com seu seu candidato na cadeia e inelegível. 

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Globo: O medo de sair da eleição menor do que entrou pesa na decisão?

Freixo: Não. Quando disputei 2012, quem acreditava que eu chegaria a 28%? Fui para 2016 no pior momento para ser candidato pela esquerda, que era o momento do golpe. É importante que eu tome essa decisão agora, em que as pesquisas apontam chance de irmos para o segundo turno. Mas, ir para o segundo turno com a esquerda dividida? Para quê? Vamos tentar ganhar o Rio, mas vamos perder o Brasil e a democracia, com o campo democrático se enfrentando e se engolindo, correndo o risco de não ter eleição em 2022.

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O campo democrático não está “se engolindo”, e sim fazendo um debate duro mas necessário sobre o seu passado, presente e futuro. A pretensão de que o campo se unifique artificialmente, através do asfixiamento da discussão, isso sim nos deixará ainda mais fragilizados. Apenas os autoritários, os fracos e os que não tem convicção de suas ideias tem medo do debate, porque não tem segurança de que possam sustentá-las por muito tempo. 

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Globo: Por que a dificuldade de união da esquerda?

Freixo: O Bolsonaro é tosco, violento e autoritário. Para derrotar o bolsonarismo é preciso mais que responder as crises que ele provoca. Tem que ir além. Temos que vencê-lo com um projeto que seja melhor que o dele. Qual é o nosso projeto? E aí acho que o desafio que está colocado é construir uma proposta calcada no combate à desigualdade e na garantia de direitos. Temos que retomar a Constituição de 1988. Precisamos de um projeto que não seja meu, do (Fernando) Haddad, do Ciro (Gomes), de quem for. Estou pedindo uma unidade tanto no Rio quanto em outros lugres. Vou dar um exemplo: acho importante apoiar a Manuela D’Ávila em Porto Alegre. É uma candidata compatível com o que estamos debatendo e não tem unidade lá também. Em Pernambuco, a gente teve uma situação delicadíssima e não podemos correr o risco de perder nenhuma capital do Nordeste.

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Freixo pergunta: qual é o nosso projeto? Mas sua resposta é vaga: é um projeto calcado no combate à desigualdade e na garantia dos direitos. Ora, não é com esse café com leite que iremos despertar qualquer entusiasmo na população! Isso aí é mais do mesmo!

As pessoas anseiam por mudanças profundas. O projeto precisa, portanto, ser revolucionário. Os grandes potenciais do povo e da nação precisam ser liberados. Há necessidade urgente de um projeto nacional infinitamente mais ambicioso do que “garantia dos direitos”.  O Brasil precisa fazer uma revolução em sua infra-estrutura, em sua educação, em seu modelo produtivo, em sua estrutura de crédito. Tudo precisa ser profundamente transformado. 

Freixo está correto ao dizer que o projeto não é de Haddad ou Ciro. Mas o projeto não pode ser secundário. O deputado menciona o tema projeto, diz duas ou três palavrinhas bonitas sobre isso, mas logo abandona o assunto para falar em “unidade tanto no Rio quanto em outros lugres. Vou dar um exemplo: acho importante apoiar a Manuela D’Ávila em Porto Alegre”. Ué, mas não falávamos de projeto? Se o Freixo apresentar um grande projeto para o Rio de Janeiro, tenho certeza de que terá muitos votos. A mesma coisa vale para Porto Alegre. Os eleitores brasileiros não são partidários.

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Globo: Acha que tem partidos da esquerda que não veem essa ameaça que o senhor fala?

Freixo: Acho que até vê, mas entre ver e fazer uma coisa que seja mais coletiva vai uma distância. Dou o exemplo do impeachment. Quantos projetos de impeachment tem na casa? Mais de 20. Por que não conseguimos construir um projeto de impeachment coletivo, sociedade civil e partidos? Porque ficou um correndo na frente do outro para ver quem dá mais entrevista. Fica um querendo dizer que é mais contra Bolsonaro que o outro.

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Isso é uma besteira, Freixo. Não é possível controlar o ritmo da chegada da primavera. Esses pedidos são espontâneos, e vieram inclusive de seu proprio partido. Originam-se em setores muito diferentes entre si para que fosse possível uma articulação coletiva. 

Cada investida contra Bolsonaro deve ser bem vinda. A articulação pelo impeachment acontecerá naturalmente, e  pode ser perfeitamente realizada ao largo do processo. Basta o PSOL puxar um seminário sobre impeachment de Bolsonaro, e todos estarão juntos. 

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Globo: Tem uma disputa de ego na esquerda então?

Freixo: É mais do que de ego, é uma disputa de espaço ali, só que não vai ter vitorioso de pedaço. A gente precisa ter maturidade. Muitas vezes conseguimos no Congresso. Mas a maturidade precisa sair dessas relações congressuais para as relações estratégicas de disputas eleitorais nas cidades. Não pode as pessoas se matarem nessas disputas. É muito ruim. Tenho muito respeito pelas diferenças. As diferenças que existem entre o PT e o PDT, eu respeito. Mas, não é possível que o tamanho dessas diferenças sejam maiores do que a ameaça do fascismo.

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É inegável que Freixo amadureceu politicamente de maneira esplêndida nos últimos anos, mas agora falta dar o último passo: entender que as diferenças não atrapalham a luta contra o fascismo. Ao contrário, as diferenças são a nossa maior arma, por uma razão muito simples: os diferentes obtêm apoios diferentes. O PT obtêm um tipo de apoio. O PDT obtém um outro tipo de apoio. Se os dois estivessem juntos, não teríamos a soma dos dois, mas antes um conjunto muito menor de apoiadores  A força da coalizão que venceu o nazismo estava na diferença: de um lado, Churchill, o conservador; de outro, Roosevelt, o keynesiano; de outro, Stálin, que dispensa apresentações. Não houve “união da esquerda” para vencer Hitler. Houve coordenação de esforços de guerra, mas cada uma das partes preservou sua personalidade, sua diferença, sua tática própria. 

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Globo: O senhor citaria algum exemplo específico dessa diferença?

Freixo: Existe um conflito entre o PT e o PDT. Esse conflito tem uma razão de ser e um histórico. Mas, seja qual for esse conflito, ele não é maior do que a ameaça que o bolsonarismo coloca sobre todos nós.

Globo: A origem desse confronto entre PT e PDT não foi a insistência na candidatura do Lula em 2018?

Freixo: No entendimento do PDT, sim. No do PT, não.

Globo: E no entendimento do senhor?

Freixo: Todos deveriam estar juntos no projeto para derrotar o Bolsonaro. Não tem cabimento nesse momento ataque entre nós. Não tem nenhum sentido, diante do risco à democracia, um conflito nesse ponto.

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Aqui, Freixo tira o corpo fora. Isso não ajuda. Além disso, demonstra insegurança e falta de independência. Se o deputado entende que existe uma diferença e se ele quer ajudar a desatar esse nó, então é preciso franqueza. O que Freixo achou da candidatura de Lula em 2018, mesmo inelegível e preso?

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Globo: O Lula ajuda ou atrapalha nessa unidade?

Freixo: O Lula, quando ganha a liberdade, sai numa ofensiva de rua. Vem a pandemia e ele perde muito espaço. Nas redes sociais, Lula não é o mesmo que num palanque. Ele tem uma capacidade de dialogar com o povo pobre desse país que talvez só o Bolsonaro tenha neste momento. Não acho que o Lula seja uma força que atrapalha essa unidade. Ele pode ajudar muito. Se ele tiver o mesmo entendimento da necessidade de unidade, acho que ajuda muito. Com todas as criticas que se possa ter ao PT, aos erros e acertos, não vamos construir um campo capaz de derrotar o bolsonarismo sem eles.

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Lula pode ajudar. Mas também pode atrapalhar, pois ainda carrega muita rejeição, toma decisões erradas, como a de ser candidato mesmo inelegível e preso, e não parece nenhum pouco interessado em ajudar a esquerda a focar em “projeto” e não em nomes. Na entrevista, Freixo fala que o projeto não pode ser de Haddad ou Ciro. Pois bem, ontem o PT lançou, com enorme estardalhaço, sua mais nova iniciativa: “Plano Lula para o Brasil”. 

Tá bom assim?

PS: No vídeo abaixo, Freixo dá mais explicações sobre sua decisão:

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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