Cheirinho de Idade Média

Sara Winter e Damares Alves, em frame do vídeo em que Damares pede voto para Sara, em 2018, e a chama de filha.

Eu gostaria de convidar nosso mais recente crítico, o nosso ator Leonardo DiCaprio, para ele ir comigo a São Gabriel da Cachoeira [no Amazonas] e nós fazermos uma marcha de oito horas pela selva entre o aeroporto de São Gabriel e a estrada de Cucuí. Ele vai aprender em cada socavão que ele tiver que passar que a Amazônia não é uma planície e aí entenderá melhor como funcionam as coisas nesta imensa região.

Poderia ser uma fanfic sobre um militar brasileiro cuja obsessão por Leonardo DiCaprio o levou a enviar uma cartinha para Hollywood com esse estranho convite, mas é a fala do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, no Fórum Mundial Amazônia+21. Confesso que ri, alto, da manchete da Folha sobre essa cuestão aí: Após críticas de Leonardo DiCaprio, Mourão convida ator para marchar oito horas na selva

Quando foi que acostumamos com esse nonsense?

O evidente descaso, ou pior, incentivo ao desmatamento e à destruição da Amazônia por parte do governo Bolsonaro, alvo de justas críticas do ator e ativista americano, é respondido com um surreal convite a uma caminhada na selva para perceber que a Amazônia “não é uma planície”, como se este fato tivesse o condão, em qualquer contexto argumentativo que se possa imaginar, de eximir o governo dos seus atos e omissões.

Mas, justiça seja feita, Mourão está apenas seguindo a linha do seu chefe. Em outra reunião sobre o mesmo tema, a Segunda Cúpula Presidencial pela Amazônia, Jair Bolsonaro mais uma vez não perdeu a chance de envergonhar-nos perante o mundo, conforme relatou a Ana Prestes em suas Notas Internacionais:

Nesse segundo encontro, o mundo inteiro noticiou a fala do presidente Bolsonaro, especialmente quando ele disse ser “mentira” que os incêndios estão devastando parte significativa da Amazônia brasileira. Ele contradisse dados de seu próprio governo que através do INPE deixam claro que em 12 meses aumentou em 33% a devastação da floresta. Ele ainda desafiou os líderes dos outros países a sobrevoarem a floresta e apontarem algum foco de incêndio ou hectare desmatado.

“Em vez de acreditar em dados científicos (do meu próprio governo!), que tal sobrevoar a Amazônia de helicóptero em busca de queimadas, presidentes?” Com ese talento para a argumentação, não surpreende que Bolsonaro seja adepto de regimes autoritários.

Outra justiça que precisamos fazer é mencionar o fato de que se pode criticar qualquer coisa nesse governo, menos a falta de coerência: a linha obscurantista é adotada em qualquer canto que se olhe. 

O caso da menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio e teve a vida (ainda mais) infernizada por militantes bolsonaristas, por exemplo, pode ter tido o envolvimento do ministério comandado por Damares Alves, conforme esta matéria da Piauí. (Se você tem estômago sensível, não leia.)

Assessores da ministra, deputados e militantes bolsonaristas foram até a casa onde a menina morava com a avó, na cidade de São Mateus/ES, para convencê-las a não fazerem o aborto. Após a divulgação criminosa dos dados da criança pela famigerada Sara Winter (ex-assessora do ministério comandado por Damares), um punhado de alucinados foi protestar em frente ao hospital em que a menina faria o aborto, inclusive com gritos de “assassina”. Para uma menina de 10 anos, que somente não ouviu os urros dos mentecaptos porque as enfermeiras elevaram o volume da televisão em que ela assistia a desenhos animados. 

Conforme a matéria, a menina será “abrigada pelo poder público em outra cidade” pois, nas palavras do promotor da Infância e Juventude Fagner Cristian Andrade Rodrigues, “Para São Mateus elas não podem mais voltar. A vida delas lá seria um inferno”. 

Não há qualquer sentido ideológico, político, racional, sentimental, público, privado, não há qualquer resquício de lógica ou bom senso em participar de ou patrocinar uma campanha para que uma criança de 10 anos que foi estuprada seja obrigada a levar adiante uma gravidez que provavelmente mataria ambos, a menina e o feto.

Há, isso sim, um clima sinistro, um cheiro de Idade Média no ar, momento da história em que os fanáticos tinham cobertura institucional para impor seus dogmas grotescos para cima das pessoas que querem apenas viver suas vidas em paz.  

O obscurantismo grassa pelas esferas de poder. Oxalá sejamos competentes para enxotá-lo de vez da vida pública brasileira.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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