Desmistificando os labirintos políticos de São Paulo

(Atenção, neste post, eu também comento a nova pesquisa XP/Ipespe para as eleições em São Paulo, divulgada hoje, cujo relatório estratificado tivemos acesso). 

Se não existe amor em SP, como diz a canção, podemos ter a certeza de que não faltam apaixonados. Por política, ao menos. A maior cidade do país, com 12 milhões de habitantes (para efeito de comparação, a Suécia tem 10 milhões de pessoas), deu início à corrida eleitoral com o mesmo frenesi que vemos em suas ruas em tempos normais.

O primeiro debate entre os candidatos a prefeito, realizado ontem na Band, apesar do horário, produziu uma enorme quantidade de interações nas redes, e pode ter deflagrado algumas mudanças expressivas na dinâmica eleitoral do município.

A vergonha da noite foi Celso Russomano (Republicanos), dizendo que é “amigo” do presidente Bolsonaro, e que, em nome dessa amizade, a dívida de São Paulo com o governo federal poderia ser negociada em melhores termos.

Orlando Silva, do PCdoB, rebateu a afirmação, momentos depois, lembrando que a relação entre prefeituras e União tinha de ser republicana, e que nenhuma cidade pode levar vantagem por seu prefeito ser “amigo” do presidente.

De qualquer forma, Russomano conseguiu passar sua mensagem. Ele quer ser visto como o candidato de Bolsonaro. Ele também procurou reforçar a comunicação com as camadas mais humildes da população, como deixou claro em suas falas incrivelmente melosas, e na promessa de um generoso programa de renda básica, que iria complementar ou substituir o Auxílio Emergencial. Perguntado de onde tiraria dinheiro para esse programa, Russomano voltou a citar a amizade de Bolsonaro, que lhe daria os recursos necessários.

Bruno Covas (PSDB), o atual prefeito que busca continuar no cargo, mantinha uma postura excessivamente rígida, quase arrogante, assemelhando mais um príncipe persa do que um candidato a prefeito.

Suas intervenções foram muito precisas, de qualquer forma. Numa das rodadas, puxou Orlando Silva para bate papo identitário sobre o racismo que deixou o comunista zonzo: Bruno Covas disse que tem muito ainda a aprender, lembrou os negros que nomeou para cargos importantes em sua administração, e prometeu fazer muito mais em sua próxima gestão.

A estratégia de Boulos está bem definida: nacionalizar ao máximo a campanha, empurrar Marcio França para a direita, e torcer para que Russomano desinfle.

Segundo dados estratificados da pesquisa XP/Ipespe divulgada hoje, Boulos tem apenas 1% de intenções de voto em eleitores de Bolsonaro, mas 28% de intenções de voto entre eleitores de Haddad. 

No cômputo geral, Boulos pontuou 10%, empatado com Marcio França, com 9%; ambos ainda estão muito atrás de Russomano e Covas, que tem 24% e 21%, respectivamente. 

Ainda na mesma pesquisa, Boulos está em segundo lugar entre eleitores com renda familiar acima de 5 salários: 21%, abaixo apenas dos 26% de Bruno Covas. 

No debate, Boulos entrou em confronto direto com Marcio França,  tentando um ataque do tipo “cancelamento” de twitter, ao lembrar um comentário de França contra o uso da polícia para combater a violência contra a mulher. 

França mostrou indignação, dizendo que Boulos entrava em contradição com suas denúncias de fake news, se ele também as usava, e explicou que sua fala fora distorcida. O que ele havia dito é que, em sua opinião, o problema de violência doméstica não precisava ficar apenas em mãos da polícia, podendo ser cuidado por outros setores do Estado. 

O desempenho de França foi um dos melhores do debate, em virtude da sua tranquilidade, bom humor e agilidade das respostas. Além disso, suas falas se concentraram em abordar problemas reais da cidade.

Na pesquisa XP/Ipespe divulgada hoje, França apresenta alguns pontos promissores. Tem 12% entre homens, o que não está tão longe dos 19% de Russomano e Covas. O voto masculino antecipa em parte o voto feminino, não porque as mulheres “imitem” os homens, mas porque elas tendem naturalmente a votar no mesmo candidato que seus parceiros, em virtude de partilharem visões de mundo semelhantes. Por causa de um certo machismo ainda muito forte na sociedade, os homens se interessam mais por política e tendem a definir antes seus candidatos. 

Neste voto masculino, aliás, os quatro principais candidatos estão todos mais ou menos no mesmo patamar. 

À diferença de Boulos, que não penetra no eleitorado bolsonarista, Marcio França consegue morder um pedaço desses votos. Segundo a XP/Ipespe, França tem 10% entre eleitores paulistanos de Bolsonaro; Boulos, apenas 1%.

Daí a provocação de Boulos, de que Marcio França “correu” para Bolsonaro.

A eleição em São Paulo assiste a duas batalhas políticas à parte da guerra principal: à direita, uma batalha pelo voto conservador; outra à esquerda, buscando o voto progressista, mais alguma coisa ao centro.

Bruno Covas, sabendo que seu voto é conservador e antipetista, e que terá que disputá-lo com um Russomano agora empoderado pelo apoio de Bolsonaro, fez questão de bater duramente no PT, inclusive usando a expressão “bolsa crack” para se referir a um programa de tratamento de viciados tocado no governo de Fernando Haddad, que recebia muitos elogios dos especialistas.

À esquerda, a estratégia de Marcio França, na minha opinião, é a única que poderia dar certo, e os cenários de segundo turno provam isso. França apresenta competitividade razoável num embate com Russomano ou Doria. 

A performance de Boulos em cenários de segundo turno  é ruim, mas isso é óbvio; o ativista é uma espécie de agregador natural, às avessas, do voto conservador ou centrista. Diante de um Boulos,  a classe média se retrai e vota no opositor. Entre eleitores com renda superior a 5 salários, a rejeição a Boulos chega em 57%. 

Num segundo turno Covas X Boulos, o tucano ganharia por 48% X 21% (vantagem de 27 pontos); ao passo que um segundo turno entre Covas e França teria um placar 41% X 27% (vantagem de 14 pontos). 

Usando o voto masculino, temos uma ideia melhor dessas diferenças. Num eventual segundo turno entre Covas e Boulos, a placar entre eleitores homens seria de 47% X 24% (vantagem de  23 pontos), enquanto o embate entre Covas e França ficaria 37% X 35% entre homens (empate técnico). 

 

A rejeição de Russomano, todavia, é ainda maior que de Boulos, tanto no total como nos setores de renda média. 

O trunfo de Russomano é sua presença muito forte junto aos eleitores de baixa renda. 

Entre eleitores com renda familiar de até 2 salários, Russomano tem 29%, contra 20% de Covas, 4% de Boulos e 7% de Marcio França. 

Um dos principais trunfos de França é seu alto recall de 2018, quando foi candidato a governador. Em algum momento, o eleitor irá se lembrar. Na pesquisa XP/Ipespe, 32% dos entrevistados responderam que votaram em Marcio França para governador em 2018. 

 

Uma das vantagens dos candidatos que pertencem a legendas que fazem oposição a Bolsonaro é que o presidente tem rejeição alta na cidade de São Paulo, de 48% no total, e chegando a 55% e 51% entre eleitores com ensino superior e renda familiar acima de 4 salários. 

Entre seus próprios eleitores na cidade de São Paulo, Bolsonaro tem 53% de ótimo/bom, 27% de regular e 19% de ruim e péssimo. Entre eleitores que não foram votar em 2018, ou que votaram nulo, Bolsonaro é rejeitado por 52% e 64%, respectivamente.  

A música de Criolo chama São Paulo de “labirinto místico”, onde os “grafites gritam”. 

Nessas eleições, teremos que interpretar melhor os grafites e desmistificar os labirintos da opinião pública, se quisermos trazer um pouco de amor à cidade. 

 

  

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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