Exclusivo: como delações foram “compradas” no Rio de Janeiro para salvar corruptos e incriminar inocentes

Marcelo Guimarães, operador jurídico de um esquema para manipular delações, presta depoimento ao Ministério Público

Quando o novo instituto de delação premiada começou a ser usado com muito barulho, por procuradores e delegados, a partir de meados de 2014, após ter sido sancionado ao final de 2013 pela então presidente Dilma Rousseff, ele foi saudado pela maior parte da grande mídia como um instrumento importante para se combater a corrupção endêmica no país.

Ainda iria demorar uns anos para que juristas mais atentos e mais independentes, começassem a identificar problemas graves, inclusive de ordem constitucional, na maneira como a ferramenta da colaboração premiada vinha sendo utilizada pelas autoridades.

O Cafezinho publicaria, ao final de 2014, um artigo que alertava para os perigos da delação premiada, usando um exemplo histórico de injustiça e arbítrio, o caso Enzo Tortora, na Itália, para falar de um caso recente ocorrido no Brasil daquele mesmo ano, que também revelava o uso bastante irregular, suspeito, de uma “delação”. Tratava-se de delação de um assessor dos Correios, João Maurício Gomes, de um suposto esquema de corrupção envolvendo o plano de saúde dos servidores da estatal no Rio.

Numa reportagem para o RJ TV, a Globo deu voz à farsa montada pelo grupo criminoso para desviar atenções dos verdadeiros culpados, entrevistando o advogado Rafael Farias, que hoje é acusado de integrar a quadrilha, no qual Farias consegue emplacar a narrativa de que os desvios nos Correios eram destinados à Brasilia, a “Igreja”.  Na verdade, reitere-se, se havia uma “Igreja” a receber propina, o próprio advogado seria um dos eclesiásticos.

Ao final de 2020, voltamos ao mesmo assunto, com informações e documentos que não apenas corroboravam as nossas suspeitas, como traziam à tôna uma realidade muito mais suja do que imaginamos.

Uma operação da Polícia Federal, chamada Tergiversação, conduzida em 2020, descobrira que a delação de João Maurício Gomes havia sido “forjada”, ou “comprada¨, num esquema que envolvia um delegado e um escrivão da própria Polícia Federal, para cobrar propina de proprietários de hospital.

É uma história que se inicia quando o então diretor regional dos Correios no Rio, Omar Moreira, alertado pela gerência de saúde, encaminha um pedido de investigação à Polícia Federal. Omar nunca imaginaria que, ao fazê-lo, deflagrou uma engrenagem macabra, da qual ele mesmo seria uma das vítimas.

O delegado que recebeu o pedido para investigar, Lorenzo Pompílio, esbarraria rapidamente com uma irregularidade. Ele descobriu que a esposa de João Maurício Gomes, assessor na direção dos Correios, ocupava dois lugares ao mesmo tempo, um fenômeno muito difícil de ocorrer, ao menos segundo a física clássica. Numa data em que estava registrada como internada na UTI do hospital Rio Laranjeiras, ela aparecia num churrasco, em fotos compartilhadas pelo marido em suas redes sociais.

Gomes é imediatamente notificado e sofre um processo de improbidade administrativa, que deveria também envolver o dono do hospital onde a sua esposa fora internada.

O golpe tem início quando o delegado, após ler sobre o instituto de delação premiada, então uma novidade no país, tem a ideia de como poderia faturar alto com tudo aquilo.

Ao invés de trabalhar contra o crime, o delegado decide que seria mais lucrativo fazê-lo em prol do criminoso.

O plano era simples: convencer o elo mais fraco do crime, o assessor João Maurício Gomes, fragilizado pela perspectiva de pagar multa acima de suas posses, ser demitido e, possivelmente, preso, a fazer uma delação “encomendada” para salvar a pele dos donos dos hospitais, e empurrar a culpa para funcionários escolhidos pelos proprietários, para fazerem o papel de cordeiros de sacrifício. Caberia também a Gomes envolver o diretor regional da estatal, Omar Moreira. Como o cargo de Moreira era de indicação política, seria relativamente fácil encontrar ou forjar alguma ligação com sindicatos e partidos, o que serviria para transformar o caso num escândalo envolvendo Brasília, num momento em que a grande mídia liderava uma espécie de cruzada contra o grupo político que ocupava o poder.

O grupo era formado pelo delegado Lorenzo Pompílio, o escrivão Everton da Costa Ribeiro, e os advogados Marcelo Guimarães e Rafael Faria. Os primeiros empresários que se tornaram “clientes” do esquema foram João Alberto Magalhães, dono do Rio Laranjeiras, Sancler Miranda, diretor financeiro do Semiu, e Vitor Zeitune, dono do Nortecor.

Agora tivemos acesso, com exclusividade, a documentos que ajudar a entender ainda mais claramente como funcionou a coisa. Marcelo Guimarães, o advogado que coordenava toda a engenharia jurídica do esquema, tornou-se delator, uma espécie de delator dos delatores, pois o seu depoimento revela como a delação de João Maurício Gomes foi cuidadosamente construída para cumprir os objetivos da quadrilha.

O depoimento completo de Guimarães, feito em 17 de março de 2020, pode ser visto aqui:

Esse depoimento ainda está em segredo de Justiça e foi publicados aqui no Cafezinho em primeira mão.

Confira também os termos da delação, aqui (documento inicial, com primeira manifestação do delator) e aqui (resumo feito pelo MPF do depoimento prestado).

Eu também subi a primeira parte do depoimento num vídeo separado. Nesse trecho (abaixo), vemos Marcelo Guimarães acusar, com todas as letras, o colega Rafael Farias, então advogado de João Maurício Gomes, de integrar a quadrilha. Farias é o mesmo que, conforme apontamos acima, aparecia em reportagens da Globo não apenas corroborando a delação de seu cliente, como também procurando criar um espantalho “político”, que desviasse a atenção da mídia para longe dos verdadeiros criminosos, que eram os donos de hospital que participaram de esquemas de superfaturamento.

O depoimento de Guimarães é devastador.  Ele revela, em detalhes, como a delação de João Maurício Gomes foi “comprada” pelo grupo criminoso.

Fica a lição para a história.

Se hoje é muito difícil derrubar inteiramente o instituto de delação premiada, uma importação do processo penal norte-americano, que chegou ao Brasil produzindo imensos estragos na estabilidade jurisdicional do país, que o Congresso ao menos trabalhe para uma regulamentação rígida desse instrumento, incluindo aí formas de evitar que ela seja manipulada, como vimos que aconteceu nesse caso e em tantos outros, para proteger criminosos.

Fiz um vídeo também para explicar essa história, que talvez tenha ficado confusa para alguns.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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