Fernando Maia: Direito, ultraliberalismo e crise de governabilidade na Covid-19

Por Fernando Joaquim Ferreira Maia

Atualmente, o surto pandêmico da covid-19 passa por uma questão de senso comum: um ano depois das primeiras medidas emergenciais adotadas no Brasil para a contenção da pandemia, continuamos na “estaca zero” e até mesmo pior. No momento da escrita deste ensaio, pouco mais de 330 mil pessoas já faleceram por conta da covid-19 no Brasil.

A catástrofe ventilada nos veículos de comunicação aponta mortes, insuficiência de equipamentos e de insumos necessários ao tratamento dos doentes, fechamento de postos de trabalho e de empresas, hospitais lotados e sem leitos para atendimento, profissionais de saúde sob pressão máxima.

Sem contar que a teimosia de alguns em questionar vacinas e tratamentos médicos só teria sentido em fins do século XIX para começo do século XX. É impressionante termos que falar destas coisas em pleno século XXI. É a face da pandemia mais visível aos nossos olhos, dialogada com o poder público o tempo todo e passada para a sociedade pelos meios de comunicação.

E é, de fato, uma catástrofe! O horror mostrado nas telas de TV e de smartphones, na sua pior forma, assemelha-se a cenas de guerra e de impotência generalizada diante da morte próxima.

Mas existe uma outra catástrofe, também concreta na realidade pandêmica, porém escondida, camuflada, sob a imagem opaca do horror que vivenciamos e que nos é passado, e que agora nos parece evidente. A ausência de políticas públicas centrais que enfrentem a pandemia de forma efetiva mostra as consequências da opção ultraliberal adotada nos últimos anos no Brasil e ameaça os princípios gerais da atividade econômica postos no art. 170 da Constituição Federal de 1988.

O que as políticas atuais do Estado brasileiro fizeram foi adotar uma versão mais radicalizada do neoliberalismo, uma espécie de ultraliberalismo, indo muito além de uma competência estatal regulatória mínima sobre o mercado ou do Estado como mero regulador, para negar paulatinamente ao poder público qualquer capacidade mínima interventiva ou regulatória sobre a economia (a autonomia do Banco Central lembra alguma coisa?). Programas de privatizações em áreas estratégicas da produção energética, dos serviços básicos e das finanças controladas pelo Estado e desregulamentação das principais garantias sociais, renúncia a certos instrumentos de intervenção do Estado parecem ser o formato atual das políticas ultraliberais no Brasil.

Todos os sinais apontam neste sentido. Em menos de dois anos, apesar de o governo federal não ter vendido nenhuma estatal sob controle direto, privatizou, liquidou ou incorporou ativos envolvendo 14 empresas, entre as quais estão os da Petrobrás, dos Correios e do BNDES¹.

Não é segredo para ninguém a pretensão da venda de nada menos que 11 empresas estatais federais, incluindo os Correios, a Telebras, a CTBU, a Dataprev e a Eletrobras, e mais duas até fim da gestão, o que significa uma redução de 46 para 33 companhias estatais sob controle direto da União², além de mais de 100 ativos de infraestrutura, entre ferrovias, aeroportos, terminais portuários e pesqueiros e rodovias³. Fora as ameaças de venda do Banco do Brasil e da nossa Petrobras.

A se persistir neste ritmo, vislumbra-se a perspectiva de um desmonte real e irreparável do Estado e de uma radicalização da internacionalização e da financeirização da nossa economia. A financeirização, no dizer de Manuel Aalbers(4), envolve a penetração de práticas de finanças de corporações (financeiras ou não) sobre o Estado e a sociedade civil como um todo, acompanhadas de arranjos institucionais entre agentes diversos, mercados e técnicas voltadas para a transformação das economias, das famílias e do poder público a partir de narrativas financeiras.

Um exemplo é a universalização de transações financeiras por aplicativos de mensagens, como o Whatsapp, em parceria com operadoras de serviços de crédito, amplamente divulgado nos meios de comunicação com a desculpa de que isto vai reduzir os custos das transações financeiras e casar as mídias sociais com o mundo das finanças(5).

Mas a que custo? Historicamente, o crescimento do capital financeiro se dá sob o decrescimento do capital industrial. Aumenta-se o ganho do credor e o custo do tomador de empréstimo, endividando-o, o que leva à diminuição do consumo da população e da demanda da indústria. Não é necessário mencionar os inúmeros economistas que afirmam isto, basta observar o que ocorre na China hoje.

A lição que está sendo aprendida pelos chineses(6) os levou a impor uma série de restrições às investidas financeiras do grupo econômico liderado pelo megaempresário Jack Ma(7) nas redes sociais e pode muito bem nos servir de exemplo e alerta.

De fato, nos últimos anos, temos experimentado no nosso país uma desindustrialização da atividade produtiva, tornando-nos ainda mais dependentes de indústrias internacionais de base e de tecnologias estrangeiras, além de experenciarmos a contenção do consumo da população pela via do seu endividamento crescente.

A financeirização ultraliberal põe em risco a soberania nacional, a defesa do consumidor, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca pelo pleno emprego e a própria defesa do meio ambiente, princípios assegurados nos arts. 1º e 170 da Constituição Federal.

Os efeitos são conhecidos: o aumento do desemprego e da carestia, das falências de empresas e da falta de perspectiva profissional, do endividamento e da contenção do consumo das famílias, fenômenos agravados pela pandemia da covid-19. Faz lembrar o espectro cinza e de céu fechado dos anos 90, no qual o único vislumbre para a juventude era fazer o “curso de direito ou o de medicina”, pois, para o cidadão comum, diante da paralisia da atividade econômica, não havia outra que rendesse mais para a vida laboral.

Numa situação destas, o efeito das práticas ultraliberais é o enfraquecimento da capacidade de gestão do Estado sobre a crise gerada pela covid-19. O poder público começa a ter seus instrumentos de gestão reduzidos, quase como num estado semicolonial, pela qual a sua única forma de arrecadação eram os impostos.

Com poucos recursos, pressionados por políticas monetárias recessivas, por uma legislação que limita os investimentos públicos e prioriza a evasão de divisas, leniente com a remessa de lucros de corporações privadas internacionais para o exterior, simplesmente não conseguimos enfrentar o surto pandêmico. Precisamos de recursos e de estrutura abundante!

Diante do agravamento do quadro estrutural de enfrentamento à covid-19, com hospitais sem condições para o atendimento eficiente da população, não apenas a situação pandêmica, mas, principalmente, a gestão pública está dramática. O ultraliberalismo, com sua forte carga individualista, disfarçada de eficiência e de liberdade, está enfraquecendo o poder público. Está nos tirando todos os instrumentos de intervenção efetiva no domínio econômico e social necessários ao enfrentamento da pandemia, esvaziando o sentido do art. 170 da Constituição Federal.

Em cima dessa realidade, desnudado pelo ultraliberalismo, o país se afunda em divisões internas, inclusive entre as principais instituições da federação: a União, os Estados e os Municípios. É natural e salutar haver divergências entre os entes da federação sobre políticas públicas, pois faz parte da vida de qualquer país, mas, por outro lado, é fundamental que haja harmonia sobre tarefas mínimas de gestão que digam respeito mais diretamente ao funcionamento das condições necessárias para a vida da população.

É impressionante como questões que envolvem medidas sanitárias fundamentais, a exemplo de isolamento e de distanciamento sociais, do uso de equipamentos de proteção, de insumos e de tratamentos de saúde, são submetidas a intermináveis discussões sem que se chegue a um consenso. E o motivo parece ser o mesmo, como já apontado8: para enfrentar a pandemia, é necessária uma forte proteção social, esforços, recursos e estruturas urgentes, que dependem, por sua vez, de  uma  ação  forte  e  decisiva do Estado.

Mas as políticas ultraliberais estão privando a sociedade de instrumentos, inclusive institucionais (novamente a autonomia do Banco Central é uma renúncia à autonomia do Estado de fixar políticas públicas), de ação contra a pandemia.

Algo de muito estranho, inusitado e perigoso está acontecendo. Os arts. 1º e 21, inciso XVIII da Constituição Federal, juntos, afirmam que a nossa República é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal e que compete à União planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas. Mas, pela primeira vez na história da República, União, Estados e Municípios não se entendem sobre questões administrativas básicas para a gestão da covid-19.

Há uma erosão gradativa da governabilidade no enfrentamento à pandemia. Diante da pouca governabilidade que se tem, não sabemos até quando, pois, neste ritmo, não será duvidoso que a capacidade de gestão dos entes da federação entre em colapso até o final do ano.

Não dá para não enxergar, no enfraquecimento administrativo do governo central, uma das faces mais preocupantes e perigosas do ultraliberalismo sobre a covid-19. No Brasil, país de dimensões continentais, subdesenvolvido, com graves contradições sociais, é indispensável um governo central forte, em harmonia com os demais poderes públicos regionais e locais, para garantir a unidade necessária ao desenvolvimento nacional e ao enfrentamento das contradições sociais, tal como preconiza o art. 3º da Constituição Federal.

Não podemos ter um governo central fraco, despido de mecanismos de intervenção na ordem econômica, e dessintonizado com os Estados e os Municípios. É risco demais! Países com enorme variedade de recursos minerais, energéticos e agrícolas, com situação geopolítica estratégica, cobiçados por grandes potências, como o Brasil, sucumbem e se desagregam diante de crises e desarmonias entre a autoridade central e as autoridades regionais e locais. Foi o que aconteceu com a China entre 1820 e 1949.

As divisões internas podem favorecer que potências estrangeiras se aproveitem do caos pandêmico no país para tentar legitimar seus interesses.

Na crise da covid-19, é urgente retomar a centralidade da questão nacional e abandonar práticas ultraliberais para garantir os instrumentos necessários ao enfrentamento efetivo da pandemia. Envolver a defesa dos nossos interesses geopolíticos, que não podemos deixar de considerar na interpretação da nossa dura realidade, confunde-se com o abandono das práticas e das políticas ultraliberais, necessário para as reformas gerais fundamentais ao desenvolvimento nacional.

Esta é a direção, inclusive, do art. 3º da Constituição Federal. Devemos zelar pela unidade de todos os brasileiros para superar o surto pandêmico e aprender a nadar em água turva para não nos transformarmos em marionetes de países e de organismos estrangeiros.

Se os poderes públicos, os entes da federação e a sociedade civil não se entenderem sobre a questão pandêmica, colocando os interesses nacionais no centro e abdicando de divisionismos, uma catástrofe se avizinha, uma real ameaça à segurança nacional, comprometendo todo um esforço e sacrifício de gerações de homens e mulheres brasileiras para construir o Brasil.

Referências:

1 SANT’ANNA, Jéssica. Painel das privatizações. As estatais que o governo quer vender e as que estão escapando. Gazeta do Povo, Especiais. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 28 mar. 21.

2 SANT’ANNA, Jéssica. Se plano der certo, Bolsonaro venderá 11 estatais e fechará duas até 2022. Restarão 33. Gazeta do Povo, Economia, 03/12/2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 28 mar. 21.

3 VERDÉLIO, Andreia. PPI tem 115 ativos para leilões e projetos de concessão em 2021. Entre os projetos, há previsão de privatização de nove estatais. Agência Brasil, 02/12/2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 28 mar. 21.

4  AALBERS, Manuel. The potential for financialization. Dialogues in Human Geography, v. 5, n. 2, p. 214-219, 2015.

5 CALIL, Jamile. Banco Central autoriza transferências bancárias pelo WhatsApp. G1 Economia, 30 março 2021. Disponível em: clique aqui. Acesso: 01 abr. 21.

6 WHAT to know about China’s strategy for a new growth pattern. Nikkei Asia, 04 março 2021. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 01 abr. 21.

7 RESTRIÇÕES sobre oferta de crédito na China atingem Ant Group, de Jack Ma. Exame, Economia, 20 fevereiro 2021. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 01 abr. 21.

8 MAIA, Fernando Joaquim Ferreira; ARAÚJO, Jailton Macena de; BORGES, Maria Creusa de Araújo. Editorial: direito e crise em tempos de pandemia. Revista Prim@ Facie, v. 19, n. 42, p. 7-15, set.-dez. 2020.

Fernando Joaquim Ferreira Maia é professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba-UFPB.

Texto publicado originalmente no site Migalhas em 15 de maio de 2021.

Cláudia Beatriz:
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