As novas diatribes de Ciro

A opinião do blog segue ao final do post. Antes, vamos aos fatos.  A íntegra do vídeo também está no final

Em entrevista aos jornalistas Sofia Aguiar e Daniel Galvão, do Broadcast Político, no último dia 30/07, o ex-ministro Ciro Gomes voltou a defender o voto impresso, e explicou que, para o PDT, se trata de “um dogma de fé”, uma “homenagem ao nosso velho líder”, Leonel Brizola, que teria sofrido uma tentativa de fraude eleitoral na década de 80.

“A tecnologia permite redundância”, argumentou Ciro.

“A urna é boa, mas para quem tiver desconfiança lá da mulher de César (…), eu permito que um juiz permita a recontagem. Essa é nossa história, de 20, 30 anos. O Lula sancionou. A petezada virou mentirosa pra valer! Porque o Lula sancionou em 2005”.

Fizemos um fio com os vídeos citados nessa matéria.

[Na verdade, foi em 2009 que o então presidente Lula sancionou uma nova lei eleitoral, que incluía a impressão do voto. Mas esse ponto – o voto impresso – nunca seria regulamentado, e por fim foi vetado por Dilma em 2015, e depois declarado inconstitucional pelo STF em 2020.]

Em seguida ele fez uma crítica à justiça eleitoral:

“Não custava nada pra justiça eleitoral tirar esse argumento do Bolsonaro. Se a gente introduzisse em 20% das urnas a possibilidade de uma urna de segunda geração (…) e tivesse a redundância da impressão de um ticket (…) esse papelzinho picado caía numa urna indevassável (…). Mas alguém lá em Altamira entendeu que não houve os votos corretos, porque votou num vereador tal, e que aquele votou não apareceu, e aquilo vira uma onda, e o juiz da cidade, por precaução, diz ok, então vamos abrir a urna (…). Você tira do Bolsonaro esse argumento picareta, criminoso, que pode deixar uma parte da cidadania brasileira, com o argumento que o Bolsonaro quer, que ele está produzindo. Ele [Bolsonaro] sabe que a urna é séria, mas ele está orientado pelos mesmos camaradas, nazistas, neonazistas, como Steve Bannon [que fez o mesmo] pelo Trump”.

Ciro também fez críticas pesadas a Lula.

“Lula, que não tem nenhum compromisso com a verdade, se apressa a dizer para o povo que foi vítima  de uma injustiça, de uma perseguição, e que agora foi inocentado. Isso é uma mentira que vai cair nesses longos 15 meses que nos separam da eleição.”

Ele prevê que o processo de Lula deverá ser retomado, que Lula será chamado para depor, e que a população irá perceber que “começou tudo de novo”.

“Ele [Lula] tem um problema comigo, que não é político, é um problema pessoal. Ele tem uma dívida moral comigo, que só eu e ele conhecemos bastante bem,  que deriva lá do mensalão, em que ele, chorando, disse que eu tinha sido o cara mais leal na vida com ele”.

O ex-ministro acusa Lula de financiar “até hoje” a “blogosfera” com “dinheiro sujo”:

“E ele [Lula], pela natureza do escorpião que o caracteriza,  trabalha de uma forma absolutamente desleal, traiçoeira, clandestina, covarde. Ele financia, com dinheiro sujo, até hoje, uma blogosfera que não tem critério de nada”.

O ex-ministro também criticou o PCdoB, dizendo que o partido “foi destruído por Lula, e que “do ponto-de-vista estratégico virou um puxadinho despersonalizado do Lula, não é nem sequer do PT”.

A íntegra da entrevista pode ser vista abaixo:

Opinião do blog: Ciro comete erros graves nessa entrevista.

A defesa do voto impresso é tecnologicamente atrasada, politicamente inoportuna e eleitoralmente estúpida. É, sobretudo, irresponsável, pois o bolsonarismo tem usado o PDT explicitamente para passar a impressão de que o voto impresso é uma bandeira supra-partidária. Os deputados bolsonaristas não cansam de repetir que o PDT é um “aliado”.

Os argumentos apresentados por Ciro, de que a bandeira é um “dogma” do partido, não me parecem os mais convincentes, nem ajudam a dar uma imagem moderna a seu projeto de desenvolvimento.

Sua crítica à justiça eleitoral, sugerindo que seria boa ideia ceder aos caprichos delirantes do presidente, mostra que Ciro não entendeu o jogo de Bolsonaro, que é simplesmente tumultuar o processo eleitoral. 

Outro erro é o tom visivelmente desequilibrado ao se referir a Lula, carregando nos adjetivos, e insistindo na tese de que ele “não é inocente”. Como professor de Direito, Ciro deveria saber que a presunção da inocência é um dos princípios mais sagrados do Estado Democrático de Direito. Se Lula não é mais condenado, se todos os seus processos foram anulados, então sim, ele é inocente até prova em contrário. Depois de assistirmos o festival de arbítrios cometidos pela justiça contra o ex-presidente, que mobilizaram a comunidade jurídica nacional e internacional, a sua fala demonstra insensibilidade.

É incoerência também. Quando a maioria da sociedade estava contra o ex-presidente, quando ele estava condenado e preso, Ciro defendia Lula com unhas e dentes, dizendo que a sentença que o condenara era frágil e que sua prisão era injusta. Agora que Lula não tem nenhuma condenação, e que ele recuperou seu prestígio, Ciro passa a tratá-lo como um criminoso?

A acusação de que Lula financia “até hoje” a blogosfera com “dinheiro sujo”, por sua vez, é profundamente caluniosa e irresponsável. Nem vou chamar de udenismo. É antes um tique autoritário. Esse tipo de acusação tem levado a boa parte da militância cirista a reagir, diante de qualquer crítica ao “líder”, com lamentável violência, focada em ataques pessoais de ordem moral, como fazem os bolsominions. O que caracteriza uma tendência fascista é justamente a criminalização automática de qualquer divergência. Não deveríamos aceitar que esse tipo de cultura floresça no seio do campo progressista.

Nem vou me perguntar se Ciro tem provas do que fala porque sei que não tem. É apenas uma molecagem capciosa, que já critiquei diversas vezes aqui no Cafezinho. 

Dizer que PCdoB foi “destruído” por Lula, e que teria se tornado um “puxadinho despersonalizado de Lula”, é uma desnecessária deselegância com um partido que sempre tratou Ciro com grande respeito.

Aliás, essa deselegância é ainda pior na frase “a petezada virou mentirosa pra valer”. Essa não é uma expressão de quem cultua o debate democrático, e sabe respeitar a dignidade dos que pensam diferente. 

Lula não tem culpa pelos problemas vividos pelo PCdoB, que não vem de hoje, e que obviamente foram agudizados pela onda conservadora dos últimos anos e pela nova legislação eleitoral. Flavio Dino foi para o PSB porque assim o quis. Assim como Freixo. Se ambos se dispõem a apoiar Lula, é uma decisão soberana deles, e somente deles. Culpar Lula por isso é ridículo.

Essa vilanização excessiva de um ex-presidente que acaba de passar mais de 500 dias na prisão, condenado por uma sentença que o próprio Ciro considerava injusta, não faz nenhum sentido. 

Ciro é um dos nomes mais importantes da política brasileira. Tem uma história bonita. Integra um partido igualmente histórico do campo progressista. Deveria rever essas posturas, que apenas prejudicam a si e a seu partido, e se juntar a esse grande esforço – que não é fácil para ninguém, pois há diferenças profundas, e é bom que existam – de reunirmos a oposição em torno de um  foco único: derrotar o governo Bolsonaro. O próprio Ciro repete, na entrevista ao Broadcast Político, que 2022 ainda está longe. Seria aconselhável, portanto, deixar as questões mais inconciliáveis para o ano que vem. Caso não entenda assim, não venha culpar a blogosfera ou Lula por seu isolamento político.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.