Ataques ao 247 mancham credenciais democráticas de Ciro

Na imagem, vemos Ciro à esquerda, e o jornalista Luis Costa Pinto, à direita, de braços cruzados.

Após o seu pronunciamento na Sede Nacional do PDT, durante o evento que confirmou a sua candidatura, Ciro Gomes participou de uma breve coletiva de imprensa.

O jornalista Luis Costa Pinto, vulgo “Lula”, representando o site Brasil 247, foi o segundo a perguntar.

Fez uma pergunta pertinente, muito parecida com as que inúmeros profissionais de imprensa tem feito a Ciro desde a eleição de Bolsonaro. A mesma pergunta, provavelmente, será feita por outros jornalistas ao longo da campanha presidencial deste ano.

Lula, o jornalista, perguntou se a tal “rebeldia” presente no lema do candidato, seria exercida, nas eleições deste ano, através da repetição do que fez em 2018, quando preferiu viajar a Paris a apoiar explicitamente Fernando Haddad.

Ciro iniciou a resposta com pesadas críticas a Lula, o presidente. Ele mesmo acaba de fazer um recorte do momento, em tom de deboche.

Uma delas foi que Lula não teria cedido o lugar a Brizola ou Mario Covas nas eleições de 1989, quando, segundo ele, “todas as pesquisas” indicavam que o petista era o único que perdia de Collor no segundo turno.

É uma crítica inacreditavelmente idiota, repleta de preconceito antidemocrático. Para que cargas d`água serve o primeiro turno de uma eleição se não for para ouvir a voz do povo? Vamos substituir o voto popular por “pesquisa” ou “análise” de meia dúzia de “especialistas políticos”? Onde seria decidido que o candidato do campo popular deveria ser Covas ou Brizola, ao invés de Lula? Num restaurante de luxo em São Paulo?

A outra crítica de Ciro ao ex-presidente é que Lula teria “enganado” o povo ao dizer que poderia ser candidato, mesmo estando condenado, preso, e eliminado previamente do jogo pela Lei da Ficha Limpa.

Essa é uma crítica que tinha algum sentido até abril de 2021, quando o STF anulou todos os processos contra o ex-presidente Lula e restituiu-lhe integralmente seus direitos políticos. Se o fez  agora poderia igualmente tê-lo feito em 2018, caso o tribunal ainda não estivesse hipnotizado e intimidado pelas violências da Lava Jato.

E se o fizesse na época, Lula poderia ter vencido as eleições. Esse fato “anistia” Lula, por assim dizer, porque lhe dá razão a posteriori.

Em política, assim como na filosofia e na ciência, é preciso humildade para retificar sua opinião na medida que os fatos históricos confirmam ou negam as premissas com que trabalhávamos.

Entretanto, até aqui estamos no campo da política. As respostas de Ciro foram infelizes, mas democráticas. O pior veio depois.

Terminada sua resposta, e antes que outro veículo fizesse perguntas, Ciro voltou-se para Lula e atacou diretamente o veículo que o jornalista representava, dizendo que “a 247 não é um órgão de imprensa. É um panfleto do Lula. Pago com dinheiro sujo.”

Não é a primeira vez que Ciro Gomes ataca um veículo independente, acusando-o de ter ligações com Lula, com o PT, e de receber financiamento ilícito. A situação foi mais grave dessa vez porque ele estava dando uma coletiva no lançamento de sua candidatura, com presença de representantes de toda a grande imprensa nacional!

A fala de Ciro sintetiza um dos problemas centrais de sua campanha: uma falta de inteligência emocional que o vem isolando – e a seu partido – num ritmo que podemos chamar de dramático. Vamos comentar isso daqui a pouco.

Voltemos aos insultos de Ciro ao 247.

Foi um gesto covarde, mesquinho, antidemocrático e, do ponto-de-vista eleitoral, mais um dos incontáveis tiros que Ciro Gomes vem aplicando, criteriosamente, em seu próprio pé, desde que perdeu a vaga para Haddad no primeiro turno de 2018.

Foi covarde porque jornalistas da grande imprensa já fizeram exatamente a mesma pergunta, e Ciro Gomes jamais os contrangeu com ataques aos veículos que representavam. Quando Roberto D´Ávila, em julho de 2021, por exemplo, fez a mesma pergunta, e de maneira ainda mais provocativa e incisiva, Ciro respondeu furiosamente, mas não atacou o veículo. Ciro apenas atacou o 247 por entender que, no atual ecossistema da comunicação brasileira, é um veículo que não conta com a simpatia das elites e dos outros grandes meios de comunicação. É um raciocínio típico de um covarde: feroz e violento com um veículo alternativo de esquerda; mansinho e educado com a mídia corporativa.

É também ignorância.

O alinhamento de um veículo de mídia a uma corrente de ideias, a uma ideologia, a um partido, a uma liderança política é muito mais a regra do que a excessão na história da imprensa, no Brasil e no mundo. Nenhum veículo merece ser desrespeitado por assumir um lado.

O escritor Franklin Foer, em seu livro recém publicado, “Um mundo sem mente (World without a mind)”, observa que os grandes jornais americanos, aqueles cujos nomes se confundem hoje com a própria ideia de “imprensa livre”, como New York Times e Washington Post, iniciaram suas vidas “cheio de invectivas”, e acusados de serem porta-vozes de interesses partidários. Esta seria a fase inicial da grande imprensa americana, a sua infância. Em seguida, sobrevieram décadas de sensacionalismo radical, período em que os jornais conseguiram se consolidar financeiramente, embora às custas de escrúpulos profissionais. Muitas reputações foram destruídas injustamente nessa fase. A era do jornalismo “cool”, “imparcial”, distante das guerras partidárias, além de ser um fenômeno recente, parece ser igualmente um período curto, pois essa mídia passou ser engolida, por um lado, por grandes corporações tecnológicas, e, de outro, perder espaço para veículos independentes que operam em nichos do mercado político.

Ciro revela, portanto, uma profunda ignorância sobre liberdade de imprensa. Pior: contamina toda a sua militância com um sentimento autoritário e violento. Após a fala de Ciro, que naturalmente gerou reações negativas junto a setores da imprensa progressista, assistimos a uma onda de ataques da militância cirista. Em alguns casos, com participação de lideranças do próprio PDT.

Veja por exemplo essa postagem de Antonio Neto: “Independente kkkkkk”.

Isso não é engraçado, caro Antonio Neto.

Segundo a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), a violência contra jornalistas cresceu  107% em 2020. No Brasil, ainda vemos, no interior do país e nas periferias das grandes cidades, índices altíssimos de violência contra jornalistas. Os agressores usam sempre a mesma justificativa: de que os jornalistas ou veículos não seriam “independentes”.

Claro, se você usar o termo “independente” como sinônimo de um veículo de imprensa inteiramente desprovido de opinião, que nunca toma lado em coisa alguma, e que exerce a “neutralidade” até o limite do absurdo, então nunca existiu imprensa independente em lugar nenhum do mundo. E, se existe, é uma imprensa anódina, desdentada, eunuca. Se um grupo de jovens cria um pequeno jornal em Rio das Pedras, com objetivo de denunciar a milícia, os seus agressores igualmente tentarão desqualificar a iniciativa, caracterizando seus jornalistas de “militantes”.

Aliás, não é exatamente isso o que faz o bolsonarismo. Acusar qualquer jornalismo crítico de “militante”?

Sei que o militante político, muitas vezes, é chato mesmo, e deve-se cuidar para não culpar demais o partido ou o líder pelas estrepolias que fazem alguns de seus apoiadores nas redes. Mas quando as lideranças políticas, abertamente, orientam seus militantes no caminho de agressões à imprensa, aí devemos nos preocupar!

Foi também um gesto profundamente antidemocrático de Ciro.

Um candidato a presidente da república é um presidente da república em potência, uma situação ainda mais forte no ano eleitoral, e mais ainda num evento em que a candidatura está sendo lançada!

Um dos principais teóricos de democracia no mundo, Robert Dahl, cujas obras se tornaram cânones nas escolas de ciência política do Brasil, resume a democracia em duas dimensões teóricas: o nível de liberdade de “contestação pública” num regime, e o direito a participar de eleições e cargos públicos.

Ora, a pergunta de Luis Costa Pinto era um exemplo clássico de uma pergunta feita deliberadamente com objetivo de fazer uma “contestação pública” a um candidato a presidente da república. Todos os outros candidatos, ao longo da campanha, terão que enfrentar contestações desta natureza. Saber responder a todas as perguntas, mesmo as mais incômodas, com elegância e espírito democrático, sem atacar o mensageiro, é a virtude que esperamos de um presidente da república!

Por fim, o ataque ao 247 foi também um tiro no pé do ponto-de-vista eleitoral. Ciro perdeu – mais uma vez – a oportunidade de mostrar que não é o “destemperado” ou o “desequilibrado” de que tanto é acusado, desde campanhas anteriores. O pedetista poderia ter dado uma resposta inteligente e bem humorada. Ao partir para a ofensa, revelou a fragilidade de um espírito sempre a ponto de perder o controle. E não é isso, definitivamente, que se espera de alguém disposto a ser a autoridade máxima de um país.

Do ponto-de-vista retórico, o discurso de Ciro havia sido razoável. Alguns comentaristas disseram que ele deu uma “guinada à esquerda”.

O conteúdo, porém, é discutível. A promessa de financiar smartphones em 36 vezes, por exemplo, virou chacota, porque soou ridiculamente demagógica. Um discurso político nesse momento da campanha precisa apontar as grandes diretrizes econômicas, sem se perder em promessas politiqueiras.

Além disso, Ciro insiste na tese oportunista e equivocada de que o “modelo econômico” de todos os governos, desde a redemocratização, foram iguais. Não o foram. O governo FHC não tinha reservas internacionais, o que o obrigava a se submeter a cerimônias constantes de humilhação diante dos órgãos de crédito estrangeiros . Os governos petistas construíram reservas internacionais da ordem de centenas de bilhões de dólares. Isso é um modelo econômico bem diferente.

FHC paralisou investimentos públicos. Os governos Lula e Dilma realizaram gigantescos investimentos públicos. Outra diferença estrutural.

Mesmo na questão da política industrial, há diferenças profundas. Houve erros, contradições, tropeços, nos governos petistas, mas houve política industrial. Não fosse a Lava Jato, poderíamos ter levado adiante a construção de várias novas refinarias, que é indústria de base, ou seja, é condição determinante para um processo de reindustrialização do país.

Outro erro elitista da crítica cirista é menosprezar a melhora no padrão de vida dos brasileiros, proporcionada por uma série de políticas públicas de governos petistas, como se não se tratasse de “mudança estrutural” .

Ora, para dezenas de milhões de famílias brasileiras, a melhora na alimentação, a oferta de mais empregos, o aumento do salário e a existência de crédito para se adquirir eletrodomésticos, motos, carros, viagens e vagas em universidades, tudo isso produziu “mudaças estruturais” que apenas o filho mimado de uma burguesia provinciana poderia menosprezar!

No Brasil dos anos 2000, destruído por décadas de ditadura, e que em seguida teve o sangue drenado pelo neoliberalismo egoísta do PSDB, as melhores e, quiçá, as únicas politicamente possíveis, reformas estruturantes, era apostar nos seres humanos, nos brasileiros, alimentando-os melhor, educando-os mais, e lhes oferecendo oportunidades de renda que antes não tinham.

Entretanto, mesmo com todas essas críticas que eu faço ao discurso de Ciro no lançamento de sua candidatura, reconheço que ele traz pontos interessantes, e que poderia contribuir para o debate político.

Sua agressão gratuita, porém, ao jornalista do 247, pôs tudo a perder, porque produziu um fato profundamente negativo, um momento de violência, manchando o clima de festa democrática com que o evento poderia, e deveria, terminar.

Outro ponto a destacar é o negacionismo político que Ciro Gomes e seus cabos eleitorais tem ajudado a disseminar junto a sua militância. Vemos isso o tempo inteiro quando se negam a acreditar em pesquisas. Mas está presente também nas passadas de pano, como dizer que ele não “atacou” o 247. Teria sido apenas uma crítica. Há algum tempo que a militância cirista usa essa desculpa, de que Ciro não faz “ataques”, mas apenas “críticas”.

Infelizmente, não é verdade. Crítica é crítica. Ataque é ataque.

Quando Ciro diz que o 247 é um panfleto de Lula e que é financiado com “dinheiro sujo”, isso não é crítica. É um ataque baixo e vulgar, uma violência injustificável contra um veículo importante no combate ao bolsonarismo, ao neoliberalismo e à extrema direita nacional. Diante de um governo como o de Jair Bolsonaro, com todo o perigo que ele representa, mobilizar toda a sua militância para atacar jornalistas e veículos de esquerda, como fez Ciro, é uma postura irresponsável!

E não é só. O jornalista Luis Costa Pinto ainda relatou que, após os insultos de Ciro Gomes ao 247, alguns militantes do PDT se aproximaram, com postura agressiva, querendo expulsá-lo do recinto a golpes de grosserias, humilhações e mesmo intimadação física.

Lula protestou junto ao senador Cid Gomes, que estava próximo, pedindo para que mandasse que os “meganhas” se afastassem. O senador, incomodado com o uso do termo “meganha”, disse que um deles era seu assessor, professor universitário.

Esses mesmo assessor seguiu Lula até o lado de fora da Sede do PDT, sempre exibindo uma postura agressiva e trocando insultos com o jornalista. Chegou a colocar as mãos no ombro de Lula, como que querendo provocar um conflito físico.  Pelo que apuramos, o nome desse “meganha” que tentou intimidar o jornalista, e que o seguiu até o lado de fora, é Gustavo Castañon, assessor na liderança do PDT do Senado, além de professor universitário. Confrontado com fotos, vídeos, e descrições da figura, Lula confirmou a identidade do agressor: “é ele”.

Vale ainda ressaltar o incrível isolamento político de Ciro Gomes e de seu partido, o que ficou claro no evento de sexta-feira. Foram raríssimos os comentários, menções ou saudações de lideranças de outros partidos. Marina Silva, liderança da Rede, festejada por militantes ciristas como possível vice de Ciro, não fez um gesto de simpatia em suas redes sociais. Ao contrário, o nome mais ilustre do partido de Marina, o senador Randolfe Rodrigues, que até pouco tempo fazia elogios públicos a Ciro Gomes, não apenas ignorou completamente o discurso do pedetista como postou em suas redes, no mesmo dia, uma foto sua ao lado de Lula.

No próprio PDT, notou-se o ensurdecedor silêncio do senador Weverton Rocha, que foi líder do PDT na Câmara dos Deputados, em dois anos consecutivos, 2016 e 2017, líder da Minoria no Senado em 2019 e 2020, além de pré-candidato do partido ao governo do Maranhão. Rocha não deu um pio sobre o lançamento da candidatura de Ciro em suas redes. O único governador do PDT, Walder Góes, do estado do Amapá, também preferiu o silêncio. Rodrigo Neves, ex-prefeito de Niteroi e pré-candidato do partido ao governo do Rio, não postou uma foto de Ciro no dia 21, tampouco mencionou seu discurso ou o lançamento de sua candidatura. Neves fez apenas uma postagem sobre a convenção do PDT. Há alguns meses, Neves também postou em suas redes fotos ao lado de Lula:

Será possível que o negacionismo de Ciro, do PDT, e de seus militantes, seja tão grande a ponto de não enxergar os problemas?

O PDT tem todo o direito de lançar uma candidatura própria. E a candidatura de Ciro poderia representar uma excelente contribuição programática a campanha presidencial deste ano.

Mas a sua estratégia de agredir, sistematicamente, Lula e PT, e a tudo que ele considera como sendo próximo ao lulismo, incluindo portais de esquerda, exatamente no momento em que o ex-presidente e seu partido reconquistam seu prestígio, crescem a olhos vistos e voltam a representar tantas esperanças, tantos sonhos, para milhões de brasileiros, me parece uma péssima ideia.

Os portais de esquerda, por sua vez, também vem crescendo de maneira sensacional nos últimos anos. Brasil 247, Forum, DCM, GGN, Tijolaço, Rede Brasil Atual, Cafezinho, entre outros, atravessaram momentos difíceis, travaram lutas duras e solitárias contra o golpe de 2016 e contra a Lava Jato, em momentos em que a opinião pública, ancorada na grande mídia, era agressivamente simpática a pautas golpistas e reacionárias. Os ventos mudaram, e os veículos independentes merecem parte importante do crédito por isso. Ao agredir o 247, Ciro Gomes agride a todos os portais de esquerda, e a todos que nos acompanham e nos assistem. Com isso, ele atrai ainda mais animosidade contra sua figura, sua campanha e seu partido, o que respinga em todas as candidaturas pedetistas nos estados. Qual a necessidade disso?

Essa agressividade crescente de Ciro apenas acrescentará mais um componente de violência a um processo eleitoral que já promete ser turbulento, pois temos um presidente de personalidade fascista, que fará de tudo para tumultuar e, se possível, melar as eleições.

Se existir ainda um pouco de lucidez em Ciro Gomes, fica o apelo de um jornalista que já o admirou muito e que, inclusive, apoiou sua candidatura em 2018: mude sua estratégia, reconstrua o diálogo com Lula e o PT, pense no médio e longo prazo, para depois das eleições de 2022, quando precisaremos reconstruir um país destruído e fazer esse povo voltar a ter esperanças!

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.