A pesquisa BTG e as lições de Maquiavel

Maquiavel nasceu em 1469, filho do advogado Bernardo di Niccolò Machiavelli e sua esposa, Bartolomea di Stefano Nelli. Imagem: Niccolò Machiavelli (nello studio), Stefano Ussi (1822-1901)

Nicolau Maquiavel é um pensador injustiçado pelo senso comum.

Uma leitura superficial, apressada, de seu livro mais famoso, O Príncipe, em que dá conselhos a um monarca de sua época, lhe granjeou a falsa reputação de um conselheiro indigno, preocupado em subsidiar o chefe de Estado com estratégias pouco virtuosas de manutenção de poder.

Em verdade, Maquiavel era um entusiasta das ideias republicanas, e um filósofo político de primeira grandeza, dotado de uma moral impecável. Mas ele foi diferente, de fato, de outros moralistas antigos, porque inaugurou uma abordagem franca, objetiva, pragmática, dos problemas políticos. Essa originalidade, que será distorcida (ou caluniada, ao ser confundida com cinismo) nos séculos seguintes pelo mesmo tipo de hipocrisia que ele havia combatido, é o que lhe confere o mérito de ser um dos fundadores não apenas da ciência política, mas da própria política moderna.

Esse lado republicano, democrático, moderno de Maquiavel, é bastante explícito em sua obra mais densa, embora menos popular que O Principe. Refiro-me, naturalmente, aos Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, apelidado também apenas de Comentários (Discorsi, no original, em italiano).

Vamos aplicar as lições de Maquiavel ao Brasil de 2022. Afinal, o florentino viveu, lutou e escreveu com objetivo de que suas ideias tivessem ainda utilidade para as lutas democráticas e republicanas do futuro.

E como têm!

Por exemplo, no capítulo 27 do livro 2 de Comentários, Maquiavel faz um grave alerta contra  o que ele considera, a luz de inúmeros exemplos históricos, um grave erro de estratégia política:

“O desprezo e as ofensas engendram ódio contra quem se utiliza desses meios, sem trazer-lhe qualquer vantagem”, diz o escritor, logo no título.

“Estou convencido de que uma das maiores provas de sabedoria que se pode dar é abster-se de proferir palavras de injúria ou ameaça contra quem quer que seja; longe de enfraquecer o inimigo, a ameaça faz com que levante a guarda; a injúria acrescenta-se ao seu ódio, incitando-o a procurar meios de prejudicar quem o ofende”, argumenta o florentino no início do texto.

Maquiavel acrescenta que o “capitão prudente deve coibir seus homens” de praticarem insultos, especialmente de ordem verbal, contra os adversários, porque estes “só servem para inflamar o inimigo, e obrigá-lo a vingança”.

Ele dá alguns exemplos históricos, em que um exército estaria a ponto de vencer uma batalha, quando seus soldados, por imprudência, decidem lançar insultos e provocações contra os inimigos, fazendo com que estes, que já desanimavam, encontrassem novo ânimo, e ganhassem a guerra.

A lição vale para as militâncias de todos os partidos e movimentos, mas eu pensei especialmente aqui numa liderança política, Ciro Gomes, cujo discurso tem se caracterizado especialmente pela abundância de ataques e injúrias contra o ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores. Esses ataques, como ensina Maquiavel, “engendram ódio contra quem se utiliza desses meios, sem trazer-lhe qualquer vantagem”.

A melhor maneira de avaliar a efetividade desse raciocínio é examiná-lo a luz das últimas pesquisas de opinião. Hoje, por exemplo, foi divulgada mais uma do instituto FSB, encomendada pelo banco de investimento BTG Pactual, ao custo de R$ 128.957,83.

Foram realizadas duas mil entrevistas telefônicas, entre os dias 8 a 10 de julho de 2022.

Na evolução dos votos espontâneos, aqueles onde o entrevistado diz “espontaneamente” em quem irá votar, houve um discreto movimento em favor de Lula.

O petista oscilou um ponto para cima, e Bolsonaro, um para baixo, de maneira que a vantagem do primeiro saiu de 8 pontos na pesquisa anterior, realizada há 2 semanas, para 10 pontos, na sondagem de hoje.

Ciro Gomes, que chegou a pontuar 4%, caiu para 3% em junho e se manteve nesse patamar até agora, o que é um nível que o mantém virtualmente fora do jogo.

Entretanto, mesmo com esse tamanho minúsculo, Ciro Gomes conseguiu a proeza de atrair para si a segunda maior rejeição dentre os principais candidatos, 49%, atrás apenas de Bolsonaro, que tem 58% de rejeição.

Quando Ciro xinga o maior líder popular do país de “corrupto, “corruptor”, “ignorante”, quando agride os apoiadores e eleitores de Lula, chamando-os “bando de fanáticos”, dentre outros epítetos carinhosos, ele esquece a lição de Maquiavel.

“A injúria é uma arma que entregamos ao inimigo para que este a use contra nós”, advertia o florentino.

Há fortes sinais de que a estratégia de Ciro Gomes, baseada numa escalada cada vez mais agressiva de ataques a Lula, ao PT, ao “petismo”, vem resultando no enfraquecimento de sua própria candidatura.

Na pesquisa BTG que estamos examinando aqui, por exemplo, nota-se uma queda abrupta do percentual de eleitores de Ciro que declararam estar seguros de seu voto. Ao final de maio, 44% dos ciristas afirmavam que sua decisão de voto “já estava tomada e não vai mudar”. Na pesquisa divulgada hoje, esse percentual cai para 34%.

Já o grau de certeza dos eleitores de Lula atingiu o seu máximo, 84%, percentual parecido ao que também disseram os apoiadores de Bolsonaro.

Olhando a mesma questão por outro ângulo, nota-se igualmente um aumento no percentual de eleitores de Ciro Gomes disposto a mudar de voto: eram 59% na pesquisa anterior, duas semanas atrás, e agora são 62%. Para comparação: apenas 15% dos eleitores de Lula disseram que podem mudar seu voto.

A pesquisa traz outros gráficos que reforçam os argumentos de que Ciro Gomes está cometendo um grave erro estratégico ao atacar o ex-presidente Lula e o PT com a virulência e baixeza com que vem fazendo. Segundo a BTG/FSB, o ex-presidente Lula é a segunda opção para a maioria dos ciristas, tanto no primeiro quanto no segundo turno.

Ainda no primeiro turno, 37% dos ciristas (na verdade, 37% daqueles 62% que se disseram dispostos a mudar de voto, para sermos precisos)  afirmaram que, até outubro, podem migrar para Lula.

Já no segundo turno, Lula deve ser a opção de 54% de quem votou em Ciro Gomes no primeiro; esse é, aliás, o número mais contundente. Mais da metade dos eleitores ciristas, hoje, votariam em Lula no segundo turno. Outros 24% dizem que não irão votar e apenas 17% que votarão em Bolsonaro. Isso significa que 76% dos “votos úteis” do cirismo no segundo turno devem ir para Lula num evento segundo turno contra Bolsonaro.

Na pesquisa estimulada, sobre a qual ainda não falamos, nota-se um retorno de Lula ao patamar que tinha ao final de abril, mas o petista se mantém sempre acima de 40%, ao passo que Bolsonaro também não apresenta tendência de crescimento, com seu percentual oscilando sempre em torno de 32%.

Num eventual segundo turno entre Lula e Bolsonaro, o petista vem mantendo uma vantagem confortável ao longo dos últimos meses, em torno de 15 pontos. Na pesquisa divulgada hoje, Lula tem 53% versus 37% de Bolsonaro, com oscilação positiva de um ponto para o petista.

Outro quadro emblemático, para se entender o nível de irrealismo daqueles que pretendem oferecer uma alternativa à polarização, é o que faz um cruzamento entre as rejeições a Bolsonaro e a Lula. É impressionante: apenas 11% dos entrevistados declararam rejeitar simultaneamente Lula e Bolsonaro. Esses 11%, portanto, representam a pressão total das águas que a campanha de Ciro, para voltar ao nosso exemplo, considera que estão “represadas” pela polarização.

A BTG Pactual/FSB também perguntou aos entrevistados sobre os motivos para escolher seus candidatos. O resultado traz más notícias para um dos objetos de estudo dessa crônica, Ciro Gomes. Segundo a pesquisa, Ciro Gomes sofreu uma forte deterioração de imagem entre seus próprios eleitores, em apenas duas semanas. Em 27 de junho, 21% dos eleitores de Ciro responderam que ele era o “candidato ideal”, percentual que declina para 15% na pesquisa divulgada hoje, 11 de julho. Lula, ao contrário, viu sua imagem melhorar, com o percentual dos que o consideram o “candidato ideal” subindo de 38% para 41%.

Para 76% dos eleitores de Ciro, ele não é o “candidato ideal”, mas o “melhor disponível”. Para os eleitores de Lula, por sua vez, 41% o consideram o “melhor disponível”.

Conclusão

A polarização é um fenômeno democrático, ou talvez mesmo mais profundo e antigo que a própria democracia. Os plebeus polarizavam com os patrícios na Roma Antiga, séculos antes de Cristo, e foi esse conflito que deu origem às leis da 12 Tábuas, e a todas as conquistas sociais e políticas dos trabalhadores romanos. A emergência das redes sociais, e o consequente surgimento do fenômeno das “bolhas”, faz com que os movimentos políticos sejam atraídos para seus núcleos duros, mais radicais. E isso nem sempre no sentido de radical ideológico, mas radical no sentido de apresentar uma postura rígida, às vezes até mesmo sectária, ou simplesmente mais firme.

O papel da militância é polarizar, mas não esqueçamos dos conselhos de Maquiavel, sobre os perigos de rebaixar a luta política a uma postura de desqualificação dos adversários. Hoje em dia, vemos militantes, de todos os campos, fazer isso o tempo todo. Mas é notório que a militância cirista vem ganhando destaque nesse quesito. Sempre que um influencer (youtuber, artista, jornalista, acadêmico, ou qualquer cidadão com alguma capacidade de mobilização nas redes) por exemplo, faz qualquer crítica a Ciro Gomes, ou sugere que é chegada a hora de ciristas fazerem voto útil em Lula, o grau de ataques vindo da militância cirista é impressionante, e o resultado, como previa Maquiavel, é apenas negativo para o próprio Ciro, pois é muito provável que o cidadão atacado deixe de ser apenas um crítico de Ciro para se tornar alguém apaixonadamente disposto a prejudicar a campanha do pedetista.

De qualquer forma, os dados já foram lançados. A pesquisa BTG Pactual / FSB confirma o que inúmeras outras vem apontando, o esvaziamento acelerado da terceira via, incluindo Ciro, pois mesmo que ele oscile um ou dois pontos para cima, os dias agora estão correndo mais rápido. A proximidade do primeiro turno é um fator que aumenta o poder de gravidade de quem tem muito voto, e diminui daqueles que tem pouco. Ter 3% na espontânea a 100 dias das eleições é uma coisa. Ter o mesmo percentual a 80 dias, é outra. E contando…

O importante, para qualquer movimento político progressista, é compreender que a luta política pela implementação de um projeto de emancipação popular é uma luta coletiva, que exigirá a participação de todos, e não apenas daqueles que vencerem as eleições presidenciais. Para isso, é necessário um mínimo de bom senso na preservação das pontes de diálogo. Tratar o adversário político como adversário moral, como vem fazendo alguns ciristas, em sua guerra santa contra Lula e seus apoidores, é um erro infantil, que apenas se voltará contra quem age assim.

A polarização não será superada, porque ela é a própria política. O objetivo não é pôr fim a polarização, mas civilizá-la, ou seja, adequá-la à linguagem e ao ritmo de uma democracia madura e desenvolvida. Para chegarmos a esse ponto, será preciso que lideranças coibam excessos de seus militantes. No caso do bolsonarismo, o assassinato de Marcelo Arruda, militante petista de Foz de Iguaçu, mostra que se tornou um movimento com franjas terroristas, e por isso deve ser tratado com rigor especial, com a possível criminalização de seus chefes. No caso dos movimentos progressistas, temos o desafio de construir um projeto coletivo, democrático, no qual a nossa arma mais poderosa, ou talvez a nossa única arma, é a mobilização militante da sociedade, e por isso mesmo é tão importante desenvolver uma estratégia inteligente, baseada em resultados, até porque a política, apesar de ser influenciada, como tudo que é humano, por amor e paixão, deve construída antes de tudo com bom senso e racionalidade.

***

A íntegra da pesquisa pode ser baixada aqui.

Nos quadros abaixo, você pode ver os números segmentados da pesquisa. Eu chamaria atenção para alguns pontos:

  • Lula tem 53% entre eleitores com renda até 1 salário, contra 17% de Bolsonaro.
  • Lula lidera no Sudeste com 37% versus 33% de Bolsonaro.
  • Lula lidera em cidades de todos os tamanhos.
  • Lula tem 33% entre evangélicos, contra 42% de Bolsonaro. Apesar da desvantagem, o patamar de 33% consiste numa verdade  “fortaleza” lulista nesse segmento; será um ponto de apoio fundamental na luta contra fake news que o bolsonarismo tentará disseminar nesses setores.
  • Lula tem 36% X 34% Bolsonaro entre eleitores com ensino médio, e 34% X 34% entre aqueles com ensino superior; não estar atrás de Bolsonaro entre eleitores mais instruídos é outra vantagem estratégica para Lula.
  • Lula tem 45% entre eleitores mais velhos, com mais de 60 anos. É um sinal importante de que o petista conseguiu unir duas pontas estratégicas do eleitorado: o voto jovem, de um lado, que reflete o desejo por novidades; e o voto da terceira idade, que é um voto mais conservador.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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