Ana Prestes: A morte cruzada de Lasso

Mandel Ngan/AFP

O presidente do vizinho país sul-americano Equador, o banqueiro Guillermo Lasso, decretou, através do decreto executivo 741, no último dia 17 de maio, a dissolução da Assembleia Parlamentar e a convocação de novas eleições. Ele utilizou o dispositivo constitucional denominado morte cruzada.

Este nome um pouco raro e até cinematográfico significa que ao dissolver o parlamento, o presidente também deve que entregar seu cargo e vice-versa. O parlamento também pode usar tal dispositivo, implicando na convocação de novas eleições para executivo e legislativo. Só pode ser feito uma vez a cada mando e nos três primeiros anos. 

A justificativa de Lasso, para lançar mão da morte cruzada, foi a de que o país vive uma profunda comoção nacional e crise política acentuada, o que é bastante questionável, pois durante seu governo houve outros momentos de muito maior tensão social, como o levantamento indígena e popular de junho de 2022, quando estudantes e indígenas pararam o país e que na época não foi qualificado como comoção nacional. Mas a verdadeira comoção nacional que mobiliza Lasso é o processo de impeachment, ou juízo político nos termos equatorianos, que ele teria que enfrentar justamente a partir da semana em que anunciou seu decreto.

Há, portanto, um quê de vingança política no uso da morte cruzada para punir o parlamento. A questão é que ele fez isso em meio a um processo de impeachment que acabava de se iniciar contra ele. Em uma espécie de vingança contra os parlamentares que debatiam sua destituição do cargo de presidente por suspeita de peculato.

Lasso é suspeito de coordenar uma rede de corrupção no Equador com muitos fatos obscuros, como o assassinato de Rubén Cherre, em janeiro deste ano, que junto a Hernán Luque e o cunhado de Lasso, Danilo Carrera são os outros suspeitos no caso, conhecido como Caso Encuentro. Existem outras denúncias contra Lasso, mas das três principais, essa foi a que a escolhida para o juízo. Há inclusive debates sobre se não teria sido escolhido o caso mais brando.

É a primeira vez que esse dispositivo constitucional da morte cruzada foi usado no país, desde que foi estabelecido pela Constituição de 2008, presidida por Alberto Acosta, no período em que Rafael Correa, do Alianza País, era presidente. Com o Congresso dissolvido, Lasso pode governar por até 6 meses, até que um novo presidente tome posse, através de decretos-leis.

Como a reeleição não é permitida, ele não poderá se candidatar. O CNE (Conselho Nacional Eleitoral), deve convocar novas eleições em até 7 dias após o decreto e elas podem ser de 3 a no máximo 6 meses contando da convocatória. As e os novos eleitos irão completar os mandatos atualmente vigentes, ficando até 2025 nos cargos, portanto. Não havendo mudanças no calendário eleitoral regulamentar. A grande questão que a muitos inquieta é justamente esse período em que Lasso poderá governar com decretos-leis. 

O primeiro decreto-lei utilizado por Lasso foi para promover uma reforma tributária que, ao mesmo tempo em que acena para as famílias com aumento dos valores dos gastos dedutíveis no imposto de renda, tira transparência da publicação das declarações favorecendo sonegadores.

O que se espera para os próximos dias são decretos-leis que permitam a privatização da educação superior, saúde e setor energético. Além de medidas laborais com a desregulamentação de leis trabalhistas e uma reforma previdenciária pró-bancos, acenando para a “base” de Lasso. Ele também ganhou tempo para construir a sua própria saída, possivelmente até do país, para se livrar de processos e não deixar a presidência para seu vice, Alfredo Borrero, do Partido Social Cristão, em quem não confia.

O Equador é hoje um país em que 42% da população quer migrar para o exterior, cerca de 7 milhões de pessoas. É a maior onda migratória desde 1999 quando houve a dolarização do país e que, curiosamente, também tinha Lasso na cena. Lasso assumiu a presidência do Banco de Guayaquil em 1993 e nesse mesmo ano se tornou presidente da Associação de Bancos Privados do Equador.

Em 1994, com influência sobre o vice-presidente da época, trabalhou para a aprovação da Lei Geral de Instituições Financeiras, que criou as condições legais para o processo de dolarização que ele posteriormente conduziu como Super Ministro da Economia em 1999. Na época, foi decretado um feriado bancário, as contas foram congeladas, e as pessoas receberam a informação de que tinham 0 sucres, moeda nacional de então, em suas contas. Foi um caos social no país, com migração em massa, suicídios. 

Segundo levantamentos do jornal argentino Página 12, nesta época da dolarização, Lasso estava associado a 49 empresas com domicílio em paraísos fiscais, uma delas, nas ilhas Caiman, passou de um patrimônio de 1 milhão de dólares em 1999, para 31 milhões em 2002. Tudo devido às especulações do mercado financeiro durante o período de crise e sequestro dos depósitos do povo equatoriano.

Nessa época, a pobreza no Equador passou dos 80%, o desemprego beirava os 20% e mais de 50% tinham subempregos. Não por acaso, em janeiro do ano 2000, o então presidente Jamil Mahuad, de quem Lasso era o ministro da economia, foi derrubado por grande levante indígena e popular. De lá para cá, o Equador passou por uma sucessão de tentativas de estabilização, com a derrubada de outro presidente, o Lúcio Gutierrez (2005) e muita mobilização popular. 

O período de maior estabilidade do país foi com o presidente Rafael Correa, que ficou entre 2007 e 2017 presidindo o país. Correa elegeu seu sucessor, Lenin Moreno, mas este traiu o partido Alianza País e a Revolución Ciudadana e apostou na perseguição política dos ex-correligionários. O governo de Lenin Moreno foi um fracasso em muitas dimensões. Ele tomou posse com a promessa de continuar as políticas de seu antecessor, Rafael Correa, de quem foi vice-presidente por seis anos, mas foi mudando pelo caminho.

O primeiro passo foi destituir seu vice-presidente, Jorge Glas. Na sequência, alterou a lei de comunicações, a famosa Ley de Medios do Equador, tirou o Equador da ALBA (Aliança Bolivariana das Américas), rompeu as relações do país com o governo Maduro e reconheceu Juan Guaidó como presidente da Venezuela, contratou empréstimos com o FMI (algo que Correa havia conseguido eliminar), retirou o país da Unasul, sendo que a sede do bloco ficava em solo equatoriano, tirou Julian Assange da embaixada do Equador em Londres como um aceno para os EUA, se alinhou e se aliou a Trump dando o carimbo final do lado em que se encontrava.

Foi sob sua condução que o Equador viveu a tragédia humanitária durante o auge da pandemia de Covid em que se multiplicavam corpos de pessoas falecidas sem socorro pelas casas e ruas de Guayaquil. Foram quatro ministros da saúde, muita corrupção e muitos mortos de covid.

Em seu período o nível de pobreza da população foi de 21% para 38%. Com a pandemia, a contração econômica foi de 9,5%. A popularidade de Moreno foi de 77% no início do mandato para 4,8% no final do mandato em 2021, o mais impopular da história democrática do país.

Na eleição para o sucessor de Moreno, uma grande divisão na sociedade equatoriana, fez com que o projeto da “revolución ciudadana”, representado por Andrez Arauz, e o projeto dos setores indígenas, especialmente os pachacuti, representado por Yaku Perez, saíssem separados no primeiro turno. Em uma dramática definição sobre quem iria para o segundo turno com Arauz, por poucos votos Lasso ficou melhor posicionado.

O candidato Perez então puxou o voto nulo que chegou a 17%, quando a média nacional é de 8%. Antigas mágoas do movimento indígena e outros movimentos sociais ainda do governo Correa dificultaram a unidade no segundo turno. A divisão entre a esquerda, movimentos populares e indígenas fez com que Guillermo Lasso, o banqueiro das offshores, e que não deixou suas atividades privadas ao ser eleito, voltasse à cena política equatoriana, levando a população novamente à pobreza e migração massiva.

O Lasso que hoje tenta fugir do juízo com um autogolpe para se livrar da justiça e entregar favores aos seus nos últimos meses de sobrevida fez mais uma vez um mal enorme ao Equador. Agora chega uma nova eleição e uma nova chance para o povo equatoriano se unir em torno de um projeto popular e progressista que abarque a diversidade e a força da sociedade equatoriana.

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