Emenda polêmica permite licenças para projetos estratégicos mesmo com alto potencial de degradação ambiental
Na madrugada de quinta-feira (17), a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que estabelece novas regras gerais de licenciamento ambiental no Brasil. O texto, que será enviado à sanção presidencial, promete agilidade e simplificação nos processos de licença ambiental, mas traz consigo um conjunto de mudanças que, ao invés de promover o tão alardeado “desenvolvimento sustentável”, podem abrir as portas para uma escalada na destruição de ecossistemas estratégicos, terras indígenas e patrimônios culturais, tudo isso em nome de um crescimento econômico que, sem garantias reais de sustentabilidade, pode se revelar uma fatura ambiental cara demais para o país pagar.
O projeto, aprovado após longa negociação e com incorporação de 29 emendas do Senado, é apresentado como fruto de um “diálogo construtivo” entre setores da sociedade e do governo. O relator, deputado Zé Vitor (PL-MG), afirma que o texto está “apto” a equilibrar desenvolvimento e proteção ambiental. Mas a pergunta que fica é: desenvolvimento para quem? E a custo de quê?
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Licença Ambiental Especial: uma licença para destruição
Uma das mudanças mais polêmicas e preocupantes é a criação da Licença Ambiental Especial (LAE). Trata-se de uma licença destinada a empreendimentos considerados “estratégicos” pelo Conselho de Governo, que pode concedê-la mesmo quando o projeto seja “efetiva ou potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente”. Isso é, no mínimo, um paradoxo: como se pode considerar estratégico algo que degrada?
A LAE tem validade de 5 a 10 anos, análise em uma única fase e prazo máximo de 12 meses para decisão. Além disso, terá prioridade sobre outros processos de licenciamento, o que pode sobrecarregar ainda mais os órgãos ambientais com processos de alto impacto e baixa transparência.
O mais grave é que, com essa licença, o país corre o risco de legalizar uma política de exceção ambiental. Empreendimentos com impactos significativos — como grandes hidrelétricas, mineradoras e projetos de infraestrutura — poderão ser aprovados com análise acelerada e pouca participação da sociedade ou de órgãos técnicos especializados.
Licenciamento Simplificado: ameaça às áreas frágeis
Outra inovação é a criação do Licenciamento Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), que dispensa estudos de impacto ambiental para atividades de pequeno ou médio porte. O problema é que, na prática, muitos projetos que inicialmente parecem de baixo impacto podem se revelar devastadores a longo prazo, especialmente em biomas frágeis como a Amazônia e a Mata Atlântica.
O LAC poderá ser usado para obras como duplicação de rodovias e instalação de linhas de transmissão — projetos que, mesmo sendo de porte médio, têm o potencial de fragmentar ecossistemas e aumentar a pressão sobre áreas naturais. Além disso, o texto permite que a análise do Relatório de Caracterização do Empreendimento (RCE) seja facultativa, o que reduz a rigidez do controle ambiental.
Ataque às terras indígenas e ao patrimônio cultural
Outra mudança de impacto direto é a limitação da participação de órgãos como a Funai, o Iphan e o ICMBio no processo de licenciamento. O projeto permite que a Funai se manifeste apenas sobre terras indígenas já homologadas. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), isso exclui da análise cerca de 259 terras indígenas em processo de demarcação — quase um terço do total.
Ou seja, enquanto uma terra indígena não estiver oficialmente reconhecida, ela estará automaticamente exposta a empreendimentos que podem comprometer seu território, sua cultura e sua sobrevivência. A mesma lógica se aplica a áreas quilombolas, bens culturais tombados e unidades de conservação.
Essa mudança não apenas fragiliza a proteção legal desses espaços, mas também viola direitos históricos e constitucionais, colocando comunidades tradicionais em posição de vulnerabilidade diante de interesses econômicos poderosos.
Desmonte das leis ambientais: a exceção da mineração
No caso da mineração de alto risco, o texto prevê que as normas do Conama — o órgão federal responsável pela definição de políticas ambientais — deixem de ser aplicadas até que uma lei específica trate do tema. Isso significa que, enquanto não houver uma legislação específica, o setor poderá operar com regras menos rígidas, colocando em risco áreas de alto valor ecológico e cultural.
Já vimos os desastres que a mineração pode causar: Mariana, Brumadinho, e tantos outros. Permitir que o setor opere com regras flexíveis é, no mínimo, uma aposta de alto risco — e quem paga a conta são os rios, as florestas e as populações que vivem em suas margens.
Mata Atlântica: uma vitória para o desmatamento
Outra emenda aprovada retira a necessidade de autorização estadual para o desmatamento de vegetação primária ou secundária em estágio avançado de regeneração no bioma Mata Atlântica. Além disso, em municípios com conselhos de meio ambiente, o desmatamento de vegetação em estágio médio também fica liberado.
O bioma Mata Atlântica já perdeu mais de 90% de sua cobertura original. É um dos mais ameaçados do país e abriga uma biodiversidade única. Liberar o desmatamento, ainda que com restrições, é um retrocesso inadmissível.
Conflito de competências: quando a fiscalização vira batalha
Outra mudança polêmica envolve a relação entre o Ibama e os órgãos estaduais de meio ambiente. Se um órgão fiscaliza uma atividade licenciada por outro, ele só pode sugerir medidas corretivas, mas não aplicar multas ou exigir mudanças. Caso o órgão licenciador não concorde com a infração apontada, as multas aplicadas são automaticamente anuladas.
Isso pode incentivar uma cultura de conivência e falta de fiscalização. Empresas poderão buscar licenças nos órgãos menos rigorosos, sabendo que eventuais autuações feitas por outros órgãos poderão ser descartadas. É um convite à corrupção e ao enfraquecimento do sistema de fiscalização ambiental.
Renovação automática: menos controle, mais riscos
O texto também prevê a renovação automática de licenças ambientais para empreendimentos de baixo ou médio impacto, desde que o responsável declare online estar cumprindo as condicionantes ambientais. O problema é que essa declaração, mesmo assinada por um profissional habilitado, pode ser insuficiente para garantir a real conformidade ambiental.
Além disso, se o pedido de renovação for feito com 120 dias de antecedência, a licença permanece válida até que o órgão se manifeste. Isso pode levar à manutenção de atividades em situação de irregularidade por tempo indeterminado, com riscos reais para o meio ambiente.
Onde está o desenvolvimento sustentável?
O projeto é apresentado como uma ferramenta para desburocratizar o licenciamento ambiental e impulsionar o desenvolvimento. No entanto, ao flexibilizar regras, limitar a participação de órgãos técnicos e priorizar interesses econômicos sobre a proteção ambiental, ele acaba criando um ambiente de risco para o meio ambiente e para os povos que dele dependem.
O Brasil é um país de dimensão continental, com biomas únicos e uma biodiversidade sem paralelo. Temos responsabilidade global na preservação de nossos recursos naturais. Não podemos permitir que a busca por lucro imediato e por projetos de infraestrutura mal planejados nos conduza a um caminho de destruição irreversível.
Por um Brasil que desenvolve sem destruir
É possível desenvolver sem destruir. É possível investir em infraestrutura com responsabilidade socioambiental. É possível ter licenciamento ágil com participação da sociedade, respeito aos povos tradicionais e controle efetivo de impactos. Mas o projeto aprovado pela Câmara não é esse caminho.
Se o objetivo é o desenvolvimento sustentável, por que tantas mudanças enfraquecem os mecanismos de proteção ambiental? Por que tantas exceções e prioridades para empreendimentos de alto impacto?
É preciso que a sociedade civil, os movimentos ambientistas, os povos indígenas e quilombolas, os técnicos e especialistas ambientais se mobilizem para cobrar do Poder Executivo o veto a pontos que colocam em risco o meio ambiente e os direitos de povos e comunidades tradicionais.
O futuro do Brasil não pode ser escrito apenas por quem vê a natureza como recurso a ser explorado, mas por quem entende que a natureza é a própria base da vida. É hora de escolher: queremos um país que avança com responsabilidade, ou um país que avança sobre os seus próprios alicerces?
A resposta a essa pergunta começa a ser escrita com a análise do projeto pelo presidente da República. Que ele escolha o lado da história — e da natureza.


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