Bloqueio de redes sociais e corrupção endêmica provocam revolta de jovens, enquanto Karki prepara eleições gerais em seis meses
A posse de Sushila Karki como primeira-ministra interina do Nepal não é uma simples transição de poder. É um ato de desespero de um sistema político em colapso, uma tentativa tardia de estancar a hemorragia causada por suas próprias balas. A imagem da ex-presidente do Supremo Tribunal, aos 73 anos, assumindo o comando de um país em chamas, é ao mesmo tempo histórica e trágica. Histórica porque ela é a primeira mulher a ocupar o cargo, um marco em uma sociedade patriarcal. Trágica porque sua nomeação é o epílogo de uma semana em que o Estado nepales, frágil e corrupto, escolheu atirar em sua própria juventude para preservar seus privilégios.
Os fatos são cruéis e falam de um fracasso democrático profundo. A renúncia de KP Sharma Oli, em seu quarto mandato fracassado, não foi um ato de nobreza, mas a capitulação inevitável diante da fúria popular. O estopim foi o bloqueio autoritário das redes sociais, uma tentativa grosseira de silenciar a população sob o pretexto raso de combater “notícias falsas”. Mas a verdadeira pólvora que explodiu nas ruas de Katmandu, Itahari e Pokhara foi a corrupção endêmica, a falta de oportunidades e a farsa de uma democracia que, desde a abolição da monarquia em 2008, produziu 14 governos – nenhum capaz de completar um mandato. Quatorze governos em 17 anos: este não é um sinal de vitalidade política, mas a crônica de uma morte anunciada.
O que aconteceu na última segunda-feira foi o resultado lógico dessa decadência. A polícia, recebendo ordens de um governo moribundo, recebeu manifestantes – muitos ainda com uniformes escolares, seus rostos marcados mais pela esperança do que pelo ódio – com gás lacrimogêneo, canhões de água e balas de borracha disparadas, nas palavras de um jovem, “indiscriminadamente”. A cena dantesca de feridos sendo transportados em motocicletas, enquanto ambulâncias queimavam, é a alegoria perfeita para um Estado que abdicou de seu dever fundamental: proteger sua população. As 19 mortes não são “danos colaterais”; são um massacre político. São o preço que a Geração Z está pagando para que a classe política admita, mesmo que por um instante, sua falência.
Os cartazes carregados pelos jovens – “Acabem com a corrupção e não com as mídias sociais” – são a síntese mais clara de seu desespero. Eles não pedem o impossível. Exigem o básico: transparência, oportunidades e o direito à voz. O bloqueio das redes não foi um erro de cálculo; foi a confissão de um regime que teme mais a verdade de seu povo do que a desinformação. Em um país onde 90% da população de 30 milhões está online, cortar o acesso é como tentar parar um rio com as mãos. A onda de indignação era inevitável.
O alerta da Human Rights Watch soa como um eco em um deserto de impunidade. A advertência de que “meios não violentos devem ser utilizados antes de recorrer à força” foi ignorada com um cinismo brutal. A “responsabilidade moral” que levou à renúncia do ministro do Interior, Ramesh Lekhak, é um consolo vazio para as famílias dos 19 mortos. A moral, neste contexto, chegou tarde demais.
Agora, Sushila Karki, uma mulher da lei, herda um país onde a lei foi substituída pela força bruta. Seu governo interino, com a missão de conduzir eleições em seis meses, é um curativo em uma ferida arterial. A pergunta que paira sobre Katmandu é: as estruturas podres que permitiram esta crise serão capazes de se autorreformar? Ou a nomeação de uma figura íntegra do judiciário é apenas mais um paliativo para acalmar os ânimos, antes que o ciclo de corrupção e violência se repita?
A esperança é que a serenidade de Karki possa abrir um diálogo real com a geração que foi às ruas e foi metralhada por isso. A democracia no Nepal não está apenas frágil; está em terapia intensiva. E sua recuperação não virá de decretos ou de transições palacianas, mas do atendimento aos legítimos anseios daqueles que, com sua coragem e seu sangue, provaram que o futuro do país não é negociável. O mundo observa para ver se o Nepal escolherá, finalmente, ouvir sua juventude ou se enterrará de vez sua já combalida democracia.


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