Após denúncias de uso do Azure em vigilância de civis palestinos, Microsoft restringe parcialmente acesso de unidade militar israelense
A decisão da Microsoft de restringir o acesso de uma unidade militar israelense ao seu serviço de nuvem Azure é, sem dúvida, um passo — ainda que tímido — na direção correta. Diante de evidências de que sua tecnologia estava sendo usada para vigilância em massa de civis palestinos, a empresa optou por agir, mesmo que de forma limitada. Mas em um contexto marcado por décadas de ocupação, desigualdade estrutural e uma ofensiva militar que já ceifou a vida de dezenas de milhares de palestinos, esse gesto não pode ser confundido com justiça. É, no máximo, um começo.
A reportagem do The Guardian revelou que a Unidade 8200 — braço de inteligência das Forças de Defesa de Israel (IDF), frequentemente comparada à NSA norte-americana — utilizava a plataforma Azure para armazenar gravações de ligações telefônicas de cidadãos palestinos. A Microsoft, após investigação interna, reconheceu que há “evidências que apoiam elementos da reportagem” e, por isso, desabilitou parte do acesso da unidade. Até aí, tudo bem. O problema é que a empresa mantém a maior parte de seus contratos com o Estado israelense intactos, incluindo colaborações em segurança cibernética e outras áreas sensíveis.
É preciso lembrar: a ocupação israelense dos territórios palestinos não é um conflito simétrico entre dois lados igualmente armados. Trata-se de um regime de dominação que, há mais de 57 anos, nega direitos básicos a milhões de pessoas — liberdade de movimento, acesso à água, à eletricidade, à educação e, muitas vezes, ao direito à própria vida. Nesse cenário, a vigilância em massa não é apenas uma ferramenta de “segurança”, mas um mecanismo de controle sobre uma população subjugada. E quando empresas ocidentais fornecem a infraestrutura tecnológica para esse aparato, tornam-se cúmplices, ainda que indiretamente, de um sistema que muitos especialistas em direitos humanos já classificam como apartheid.
A Microsoft alega que “não fornece tecnologia para facilitar a vigilância em massa de civis” e que aplica esse princípio “em todos os países do mundo”. Mas por que, então, foi preciso uma reportagem jornalística e pressão de movimentos como o No Azure for Apartheid para que a empresa agisse? Por que os contratos com o Ministério da Defesa israelense continuaram por anos sem escrutínio mais rigoroso? E por que, mesmo agora, a resposta se limita a um corte parcial, sem transparência plena sobre quais serviços ainda estão ativos?
Além disso, há uma contradição preocupante: enquanto a empresa afirma defender direitos humanos, demitiu funcionários que protestavam internamente contra seus vínculos com o Estado israelense. Isso levanta questões sobre o verdadeiro compromisso da Microsoft com a liberdade de expressão e com a responsabilidade corporativa. Se a ética só vale quando não ameaça lucros ou alianças geopolíticas, ela deixa de ser ética e se transforma em marketing.
O conflito israelense-palestino não pode ser reduzido a uma narrativa de “retaliação” ou “guerra simétrica”. Desde outubro de 2023, mais de 65 mil palestinos foram mortos, segundo autoridades de saúde em Gaza — a maioria mulheres e crianças. Hospitais foram bombardeados, universidades destruídas, e a infraestrutura civil, sistematicamente desmantelada. Em meio a isso, o uso de inteligência artificial, reconhecimento facial e armazenamento em nuvem não é neutro: é parte de uma máquina de guerra que opera com impunidade, muitas vezes sustentada por tecnologia desenvolvida no Ocidente.
A decisão da Microsoft, portanto, deve ser vista não como um fechamento de capítulo, mas como um chamado para ir mais longe. Empresas globais têm o poder — e a responsabilidade — de recusar parcerias que contribuam para violações sistemáticas de direitos humanos. Isso não é “tomada de lado”, como alguns acusam; é respeito ao direito internacional e à dignidade humana.
Enquanto gigantes da tecnologia continuarem a tratar a ocupação como um “risco de reputação” a ser gerenciado, em vez de uma injustiça a ser confrontada, sua neutralidade será, na prática, cumplicidade. A Microsoft deu um passo. Mas, diante da escala da crise humanitária em Gaza, o mundo espera — e merece — muito mais.


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