Pelo menos 19 mortos e mais de 100 feridos em manifestações da Geração Z, em resposta ao bloqueio de redes sociais e à má governança histórica
As ruas da capital nepalesa, que há poucos dias foram palco de um massacre que ceifou a vida de 19 jovens, hoje testemunham, em um silêncio tenso e vigilante, uma mudança sísmica no poder. A fumaça do gás lacrimogêneo se dissipou, mas o cheiro da revolta ainda paira no ar. Foi o grito de uma geração, apelidada de “Geração Z”, que, calada nas redes, usou o asfalto como seu megafone e, com seu próprio sangue, escreveu o capítulo final do governo de KP Sharma Oli. Na noite de sexta-feira, 12 de setembro de 2025, uma nova e histórica figura emergiu das cinzas da crise: Sushila Karki, a primeira e única mulher a presidir a Suprema Corte do país, tomou posse como primeira-ministra de um governo interino, com a hercúlea tarefa de pacificar uma nação ferida e conduzi-la a novas eleições em seis meses.
A transição, formalizada em uma cerimônia sóbria no palácio presidencial, contrasta brutalmente com a violência que a tornou inevitável. Foi na segunda-feira que o Nepal viveu seus mais graves distúrbios em décadas. O estopim foi uma decisão autoritária do governo Oli: o bloqueio de plataformas de mídia social, incluindo o Facebook, sob o pretexto de combater desinformação e “uso indevido”. Para um país onde 90% dos 30 milhões de habitantes usam a internet, a medida não foi vista como regulamentação, mas como censura. Foi a gota d’água para uma juventude já sufocada pela corrupção endêmica e pela ausência de futuro.
Milhares de estudantes, muitos ainda em seus uniformes escolares e universitários, tomaram as ruas de Katmandu, Pokhara e outras cidades. Seus cartazes eram um manifesto: “Acabem com a corrupção e não com as mídias sociais”, “Jovens contra a corrupção”. Eles não pediam apenas o direito de se conectar, mas o direito a uma vida digna, a um governo que sirva ao povo, e não a si mesmo.
A resposta do Estado foi de uma brutalidade atroz. A polícia, sob ordens do governo, respondeu com canhões de água, cassetetes e uma chuva de balas de borracha e, segundo relatos, munição letal. “A polícia tem atirado indiscriminirmativamente”, contou um manifestante à agência ANI, com a voz embargada pelo trauma. “Dispararam balas que não me atingiram, mas acertaram um amigo que estava atrás de mim. Ele foi ferido na mão.”
Este foi um dos relatos de sorte. Dezenove famílias não tiveram a mesma chance e hoje choram seus mortos. Mais de uma centena de feridos, incluindo 28 policiais, lotaram os hospitais, muitos levados às pressas na garupa de motocicletas por seus próprios companheiros de protesto. Em Itahari, a violência explodiu com a mesma fúria, somando mais duas vidas à trágica contagem. Imagens de uma ambulância em chamas e de jovens tentando romper barricadas para invadir o parlamento rodaram o que restava das redes de comunicação, se tornando o símbolo de um governo em guerra contra sua própria juventude.
A pressão popular se tornou insustentável. O primeiro a cair foi o ministro do Interior, Ramesh Lekhak, que apresentou sua renúncia assumindo a “responsabilidade moral” pela carnificina. Mas a rua queria mais. A cabeça de um sistema corrupto. Na terça-feira, foi a vez do primeiro-ministro KP Sharma Oli, um veterano de 73 anos em seu quarto mandato, ceder e renunciar.
É neste vácuo de poder, criado pela fúria popular, que Sushila Karki, também com 73 anos, assume. Nomeada pelo presidente Ram Chandra Poudel, ela agora detém todos os ministérios em suas mãos. Sua missão, definida na carta de nomeação, é clara: garantir uma eleição geral em até seis meses. Para uma nação que viu 14 governos diferentes desde o fim da monarquia em 2008, sem que nenhum completasse seu mandato, a tarefa é monumental.
A chegada de Karki representa uma esperança, mas também uma incógnita. Sua trajetória como a mais alta autoridade do judiciário lhe confere uma aura de respeito e legalidade. Contudo, ela herda um país polarizado e uma juventude que aprendeu da forma mais dura que a mudança real não é entregue de bom grado, mas conquistada com luta e sacrifício.
A Human Rights Watch já havia alertado o governo anterior para não tratar os protestos como um mero caso de polícia, mas como um sintoma de uma doença social profunda. A indignação, como apontou o ex-secretário de finanças Rameshwore Khanal, vai muito além da censura digital; ela está enraizada na percepção generalizada da corrupção e da incapacidade crônica do Estado de gerar oportunidades.
O governo interino de Sushila Karki não governará para um parlamento, mas para os olhos atentos dos milhares de jovens que permanecem em vigília. A violência diminuiu, mas a mobilização não. O sangue dos 19 mártires da “Geração Z” ainda está fresco na memória e serve como um lembrete permanente do custo da tirania. O Nepal prende a respiração, esperando para ver se a coragem de uma mulher poderá transformar o luto de uma nação em um futuro, finalmente, justo e livre.


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