O silêncio que ameaça tomar conta dos centros têxteis e dos portos de processamento de camarão na Índia não conta a história toda. Conta apenas o primeiro capítulo de uma saga econômica que, segundo analistas, terminará muito mal — não para Nova Déli, mas para Washington. A arrogância imperial, mais uma vez, demonstra sua total falta de visão estratégica, e quem pagará a conta não serão apenas os trabalhadores indianos, mas o próprio consumidor americano e a hegemonia global dos Estados Unidos.
A imposição abrupta de tarifas de 50% sobre produtos indianos em agosto, ordenada pelo presidente Donald Trump, foi recebida com uma mistura de fúria e angústia em toda a Índia. A economia, que vinha sendo um “ponto de luz” no cenário global com um crescimento médio robusto de 6% nas últimas décadas, sentiu o golpe. Mas o que parece ser uma vitória política de curto prazo para o nacionalismo tacanho de Trump pode se transformar em um dos maiores erros estratégicos e econômicos da história recente americana.
Ao tentar punir a Índia, Trump corre o risco de alimentar a inflação em casa, minar a própria estratégia de contenção da China e, perigosamente, acelerar o fim da hegemonia do dólar.
Para a Índia, o impacto imediato é inegável e brutalmente humano. Os Estados Unidos não são apenas um parceiro comercial; são o maior, absorvendo 20% das exportações do país, o que representa mais de 2% do PIB indiano. Embora produtos farmacêuticos e eletrônicos tenham sido poupados, cerca de dois terços de tudo o que a Índia envia aos EUA agora enfrentam uma muralha tarifária.
O impacto real, no entanto, não está nos balanços corporativos, mas na vida de milhões de trabalhadores. O golpe está concentrado em setores que empregam massas: têxteis, camarão, diamantes e autopeças. Em pequenas localidades que dependem dessas indústrias, a perda de empregos tornará ainda mais difícil para a crescente população jovem encontrar trabalho produtivo. Analistas já projetam um corte de 30 a 80 pontos-base no crescimento do PIB indiano, um número frio que esconde a angústia de milhões.
O que mais agrava o sentimento de injustiça é a justificativa hipócrita. Trump adicionou uma penalidade de 25% (embutida na tarifa) porque a Índia continua comprando petróleo russo com desconto, acusando o país de “financiamento” da guerra na Ucrânia.
Para os indianos, isso soa como a mais pura hipocrisia vinda do Norte Global. “Sentimo-nos visados”, afirma um analista de Hyderabad, apontando o óbvio: a China e a União Europeia, que também seguem dependentes da energia russa, não sofreram retaliação semelhante. Fica claro que a política de Washington é punir o Sul Global por sua soberania, enquanto tolera o mesmo comportamento de outros blocos poderosos.
A administração Trump, focada em seu populismo de direita e obcecada pelo déficit comercial bilateral, parece ignorar que essa relação é uma via de mão dupla. Empresas americanas tornaram-se profundamente dependentes dos fornecedores indianos.
Agora, componentes vitais — de couro a peças de engenharia de precisão — que alimentam as cadeias de suprimentos dos EUA ficarão mais caros. Esse custo será repassado, e quem pagará a conta será o produtor e o consumidor americano, o trabalhador comum que Trump diz defender.
A ironia é gritante. O retorno de Trump à Casa Branca foi impulsionado, em grande parte, pela fúria dos eleitores com a inflação sob a presidência de Joe Biden. Ao criar nova pressão sobre os preços, essa política tarifária pode corroer rapidamente o capital político que o elegeu, provando que sua política econômica é caótica e prejudicial ao próprio povo.
A mesma miopia se aplica à penalidade sobre o petróleo. As compras indianas de petróleo russo com desconto, na verdade, ajudaram a moderar os preços globais, beneficiando indiretamente as economias ocidentais. Uma interrupção abrupta desse fluxo poderia causar um pico nos preços que nem a OPEP nem os produtores de xisto dos EUA conseguiriam compensar, gerando inflação mundial e minando ainda mais a agenda econômica de Trump.
O erro de cálculo de Washington vai além da inflação. A obsessão pelo déficit comercial ignora os bilhões de dólares que fluem da Índia para os EUA. A Índia é a maior fonte de estudantes internacionais, que injetam bilhões na economia americana anualmente, pagando por um sistema de ensino que o americano médio muitas vezes não consegue acessar.
Além disso, a balança pende a favor dos EUA quando se inclui renda de investimentos, vendas robustas de defesa (alimentando o complexo militar-industrial), royalties e serviços.
O Vale do Silício, motor da economia moderna americana, depende de um fluxo constante de talentos indianos. Gigantes da tecnologia usam a Índia como um polo vital para centros de desenvolvimento global, realizando funções de TI, design, contabilidade e suporte a baixo custo, o que impulsiona os lucros corporativos americanos. As tarifas de Trump, nascidas da pura xenofobia econômica, ameaçam desestabilizar todo esse ecossistema interdependente que beneficia o capital americano.
A longo prazo, os EUA podem perder o acesso ao prêmio máximo: a crescente classe média indiana, um mercado consumidor que deve ultrapassar 800 milhões de pessoas até 2030.
Talvez o dano mais profundo e irreparável seja o geopolítico. Por duas décadas, presidentes republicanos e democratas cultivaram a Índia como um contrapeso estratégico essencial à China. Iniciativas como o Quad, o compartilhamento de inteligência e a diversificação das cadeias de suprimentos (para longe de Pequim) foram conquistas difíceis.
Agora, tudo isso está em risco pela pura teimosia de um homem. Como alertou recentemente a ex-embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley (provando que a miopia de Trump ultrapassa até mesmo os limites de seu próprio partido): “Para enfrentar a China, os Estados Unidos precisam ter um aliado na Índia.”
A resposta de Nova Déli à pressão de Trump foi imediata e previsível. Na recente cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), o primeiro-ministro Narendra Modi foi visto reunido com o presidente russo, Vladimir Putin (que tem visita marcada a Nova Déli em breve), e com o presidente chinês, Xi Jinping.
Essa reaproximação da Índia com a China, forçada pela agressão americana, é exatamente o oposto do que a estratégia Indo-Pacífico de Washington esperava alcançar. Trump está, sozinho, desfazendo décadas de diplomacia e entregando um aliado crucial de bandeja para seus maiores adversários.
As políticas de linha-dura de Trump estão fazendo o que parecia impossível: unindo o Sul Global. Ao transformar a economia em arma, Washington joga a Índia e outras potências emergentes nos braços umas das outras. Os membros do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) começam a se alinhar em uma missão clara: combater a hegemonia dos EUA.
As tarifas intensificaram os esforços para desenvolver sistemas de pagamento alternativos e acordos que permitam o comércio em moedas locais, contornando o dólar.
Isso é uma ameaça existencial ao império americano. O status do dólar como moeda de reserva mundial é o que permite aos EUA tomar empréstimos baratos e impor sanções livremente, financiando suas guerras e seu déficit sem consequências reais. Ao alienar potências emergentes, Trump está acelerando a “desdolarização” e enfraquecendo o controle americano sobre o comércio global.
Para a Índia, o caminho será doloroso, exigindo reformas internas e a diversificação de seus mercados de exportação para Ásia, Europa e África. Mas a Índia se adaptará e sairá fortalecida, mais autossuficiente.
Os Estados Unidos, no entanto, terão dificuldade em reconstruir a confiança. A Índia, com 1,46 bilhão de habitantes e aspirações de grande potência, não é uma economia pequena que pode ser pressionada sem consequências. As tarifas punitivas não serão esquecidas.
A Índia se ajustará. Mas os Estados Unidos provavelmente descobrirão, tarde demais, que desperdiçaram uma parceria fundamental para seus próprios interesses econômicos e geopolíticos, tudo por conta de uma política externa baseada na arrogância e na ignorância.


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