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Vicente Franz Cecim e a hipótese onírica

Por Jéferson Assumção, colunista de Literatura do Cafezinho Vicente Franz Cecim (Belém-PA, 1946) é um dos mais raros escritores brasileiros. Narrador-poeta, metafísico sem metafísica, instaurador de um tempo tarkovskiano em nossa literatura (Andrei Tarkovski, cineasta russo), o paraense escreve desde 1979 uma única obra, Viagem a Andara – o livro invisível, um “não-livro” de onde […]

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Por Jéferson Assumção, colunista de Literatura do Cafezinho

Vicente Franz Cecim (Belém-PA, 1946) é um dos mais raros escritores brasileiros. Narrador-poeta, metafísico sem metafísica, instaurador de um tempo tarkovskiano em nossa literatura (Andrei Tarkovski, cineasta russo), o paraense escreve desde 1979 uma única obra, Viagem a Andara – o livro invisível, um “não-livro” de onde surgem livros visíveis, publicados desde então. Dois deles, K O escuro da semente (2005) e Ó Serdespanto (2001) foram lançados primeiro em Portugal e só depois no Brasil. Ó Serdespanto, Bertrand Brasil (2005), foi considerado pelo jornal Público, o maior de Portugal, um dos mais importantes lançamentos de 2001. Agora chega a vez de repatriar K, o Escuro da semente, recentemente lançado pela Letra Selvagem, de São Paulo.
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Caso se necessite de um gênero para orientação, o autor admite que os “livros visíveis de Andara” podem ser lidos como literatura fantástica. Neles, se poderá notar um autor de voz inaugural em um texto intenso e vivo como o desabrochar da força vegetal no coração da Amazônia. A Floresta, assim, com maiúscula, Cecim vê como uma espécie de milagre sideral, como ponto máximo de celebração da vida em todo o universo conhecido. Não há nada semelhante à Amazônia, não apenas na Terra, mas no que até agora temos condições de chamar de “todo”. Seria preciso inverter o olhar e colocar esta região sem paralelo como o centro. É o que Cecim faz, não apenas em seu K O escuro da semente, mas em tudo o que escreveu até agora.
Em 1981, Cecim recebeu o prêmio Revelação de Autor, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) – dividido com João Gilberto Noll – por Os animais da terra (1979). Em 1988, com o volume Viagem a Andara reunindo seus sete primeiros livros, foi contemplado com o Grande Prêmio da Crítica da APCA, só atribuído quando há unanimidade dos críticos votantes. A distinção só foi dada, naquela década, para Cora Coralina, Mário Quintana e Hilda Hilst e na seguinte para Manoel de Barros.
Com mais quatro livros, Silencioso como o Paraíso (Iluminuras,1994) chamou a atenção de críticos como Leo Gilson Ribeiro: “A fulminante trajetória literária de Cecim, que se iniciara com o belo, poético e enigmático poema em prosa Viagem a Andara, prossegue com um livro, se possível, mais rico e fascinante ainda: Silencioso como o Paraíso. Um dos mais perfeitos livros surgidos no Brasil nos últimos dez anos, imbuído de poesia, encanto e o que Guimarães Rosa chamava de ‘peregrinação álmica’ (da alma).” Em Portugal, Eduardo Prado Coelho acolheu Ó Serdespanto da seguinte maneira: “Leo Gilson Ribeiro fala-nos, referindo um Guimarães Rosa que obviamente está presente nestes textos, em ‘peregrinação álmica’ (…) O que faz de Ó Serdespanto um livro inclassificável é que ele é feito do círculo crepitante das histórias que se contam e recontam, do uso visionário das palavras refeitas letra a letra ou a da lenta respiração da terra. E sobretudo de uma demorada aprendizagem do espanto de ser e de não-ser”.
O filósofo paraense Benedito Nunes, referindo-se a um dos primeiros livros de Cecim, apontou: “A excepcional força poética de Os animais da terra deriva da duplicidade de sua narrativa, cindida em planos opostos. A duplicidade favorece a dominância do relato delirante, que adquire o tom impessoal de um mito, do qual participam o vento, as árvores, o rio, os animais da terra – agentes de uma Natureza rebelada, propícia à ação do servo contra o cego. Esse mito de solidariedade cósmica não apenas revira a existência cotidiana, para exibir o seu estofo de sonhos (o estofo de que somos feitos, na imagem shakespeareana) – tirando proveito do lado ético da herança surrealista, Os animais da terra emprestam ao imaginário o caráter de realidade explosiva represada, de onde provém sempre o apelo poético à renovação da vida. Uma invenção poética. Que melhor denominação para este texto libertário, insurrecto?”

Entrevista em Andara, com Vicente Franz Cecim:

Jéferson Assumção: O que é Andara?
Vicente Franz Cecim: “Andara é Coisa que viaja por dentro e no sentido inverso: quer retornar dos dedos dos pés ao calcanhar de Aquiles do homem, ali onde ele é mais sensível à Hipótese Onírica e Lúdica e Naturalmente Sagrada da vida. Andara quer a Origem, o Antes do ponto em que tudo começou a se perder do Todo, o ponto oculto de nós, homens, que só se consente a nós em Relances, Vislumbres. Mas Andara é um ir sem ir, em demanda de um Ponto Vélico onde Visível e Invisível se engendrem mutuamente.

J.A.: Há um Caminho em Andara?
V.F.C.: Não sei. Sigo apenas a frase que escrevi como um Portal por onde penetrou e vai indo a Viagem: Atravessar o que nos nega, chegar ao Sim. E enquanto vou?—?por esse areal de Escrituras?—?me sustento convertido em homem de palavras me dizendo: É assim que tu verás um S nestes dias cegos. Falei em homem de palavras. Isso em que me converti para fazer a Viagem a Andara.
Esse homem de escrituras eu sei quem é. Mas o homem que sou, vivendo?—?o que é? O homem é coisa que vive para dentro e para fora de Si?—?fui entendendo através da Viagem. Para fora, ele é o Ente: o Espanto que a Civilização quer domar. Para dentro, ele É o Ser: o Puro Espanto de Ser, não domável. A Viagem a Andara caminha assim: desperta para essa vida em Ente e se sonhando em miragens de sermos que nos libertem para Sermos plenamente, o que já somos, mas encarcerados. E quer levar para além desse homem que quer a si próprio domar?—?que nela, Civilização, se refugia, e por ela se deixa domar.

J.A. E o verbo?
V.F.C – Em Andara se dá a Alquimia Verbal da transformação do Humano em Umanoh, lançando para trás da palavra esse H inútil, vazio, aspirado, para liberar o Um, o Uno: a abertura para o Ser.
Mas quem lê os livros de Andara ocidentalmente, da esquerda para a direita, vivendo apenas em Ente e para fora continuará avançando na única direção que conhece e lhe é consentida no Ocidente?—?e reencontrará o H no fim da palavra. Terá sido inútil fazer a Viagem. Que pena. Porque ir indo através da irRealidade de Andara me mostrou que a direção oposta é a que nos retorna ao nosso Centro Real. E a um Real Total que nos transfigure.

J.A. Andara é Geografia Verbal…
V.F.C – …dialogando com a Geografia Física da Amazônia, onde nasci, que, por ser Lugar de Natureza, é Lugar do Sagrado em epifania. Se não existisse a Amazônia e não se desse o acontecimento fatal de eu ter nascido nela, não houvesse Andara. Andara começou se nutrindo da Amazônia. Da Realidade Onírica da Amazônia. A Amazônia é um tecido de existências e fábulas. Aqui, não há fronteiras nítidas demarcando onde terminem as realidades manifestas e comece o Sonho. Como em Andara não há. Mas não falo da Amazônia que aparece, mimetizada, na literatura que se faz escrevendo, falo da literatura Oral da região. Na Invenção de Andara, se retoma o sentido do Verbo como Sopro criador. Novamente um demiurgo se faz presente. Mas o Demiurgo, no caso de Andara, é só um homem, que se diz: eu: coisa enquanto Imanente, efêmera. O que não impede que haja um Ímã em mim, pulsando pelo Transcendente. Não posso soprar o barro e criar vida, mas posso soprar as Palavras de dentro de mim e criar um Cosmos Verbal. Nesse sopro, não digo:?—?Faça-se a Luz. Apenas oro por ela. Não sopro:?—?Desfaçam-se as Trevas. Apenas rogo a elas, como Caminho de segredos por algum motivo necessário, que, se desvelando, vão me deixando passar. Comigo vai todo o Cortejo de Neblinas de Andara. Em Andara não há mais personagens, coisas, acontecimentos: há seres Neblinas, coisas Neblinas, sombras de acontecimentos imersos em rarefeitas Neblinas.

Trecho de K, o escuro da semente

Certa vez,
em Andara,

havendo adormecido sob a lua amarela, a que nos alucina nas noites, de olhos fechados

um tal K despertou
em pleno dia, sob o encanto da lua branca, a que nos alucina nos dias, de olhos abertos

E viu que havia se transformado em homem aéreo, já não mais humano.
Pois em suas omoplatas havendo sido semeadas asas, agora, já então, ele fosse:

O umanoh.

Ah,

sendo assim possível essas coisas em Andara
e aonde mais seriam? Na vida, a sutil que para nós se adensa, para nós, os ainda os que ficamos, humanos?
Sendo assim então, e em Andara fosse possível isso de asas nascendo de omoplatas humanas

– hein? Onde estou? O que foi, hein? O que? Isso? Que mão Imensa, esta, hein?
Se perguntando aquele tal K, aquela letra que ascendendo havia deixado o Alfabeto Humano.

Fosse uma vez, em Andara

Enquanto isso, lá embaixo, na Terra se acendesse um fogo, mais uma vez um fogo, para em torno dele se contar histórias
Enquanto no alto, um Céu escuro de estrelas

Mas isso já seja a outra voz que me fala
Vejam: depois dessas palavras descendentes, caindo dos céus como chuva sobre nós,
agora outras palavras, em torno desse fogo aceso
as que pesadas mas querendo ascender àquele Céu escuro de estrelas

sua Areia Lenta

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