A luta do século

É assustador.

Por outro lado, é lógico, e confirma as teorias mais modernas sobre o sentido da história.

A história não apenas se repete.

A história é revivida.

As mesmas forças históricas que identificamos no passado, através dos livros, estão presentes hoje, operando de outra maneira, adaptadas aos novos tempos.

As mesmas forças que apoiaram o golpe de 64 e sustentaram uma ditadura sanguinária de 21 anos, repetem exatamente os mesmos métodos: discursos pseudo-moralistas, patrocínio de manifestações golpistas, uso da força bruta, conspiração, manipulação da opinião pública e, por fim, tentativa de censura.

Eu entrei no site do jornal O Globo hoje e vejo lá o José Dirceu, pela trilionésima vez, na capa.

O novo indiciamento de Dirceu é de um fascismo atroz. Todas as suas consultorias são vistas como vazias e inexistentes. Todo o dinheiro que ele ganhou nos últimos anos, apesar de registrado em notas fiscais e declarado à Receita Federal, é transformado em propina.

Em seguida, porém, vem um trecho que conseguiu me surpreender.

As conspirações midiático-judiciais não escondem seu objetivo: fechar qualquer válvula de escape por onde o pensamento progressista possa respirar.

Tudo que não estiver sob as asas da Rede Globo deve ser considerado crime.

O trecho da matéria no Globo:

GUERRILHA MIDIÁTICA

Segundo a Polícia Federal, os recursos ilícitos que irrigaram a JD Consultoria, empresa de Dirceu, foram utilizados para pagamento de empregados, despesas de filhos e ex-mulheres, assim como a “guerrilha midiática” feita durante o julgamento do mensalão e que buscava desqualificar as autoridades. Para os delegados, a função da empresa de Dirceu era “albergar uma esquadra de jornalistas voltados a polir a imagem do ora investigado e seu grupo político”.

Acessei a íntegra do relatório da PF (enviado diretamente para as redações do Estadão e jornalões, ao invés de ser republicanamente publicado na internet), e a denúncia da PF é ainda mais direta:

Repare bem. A PF – cada vez mais uma polícia política – acusa a firma de Dirceu de ser usada para “fins partidários”.

O relatório afirma que os recursos – ilícitos, claro – se destinavam a abastecer “a guerrilha midiática à época do julgamento do mensalão, que visava desqualificar as autoridades envolvidas no julgamento”. Daí o texto faz uma pirueta e enfia, sem prova alguma de qualquer ligação entre uma coisa e outra, os R$ 120 mil pagos por uma empresa privada à Leonardo Attuch, criador do Brasil 247.

Em seguida, diz que a “única atividade desenvolvida pela JD Consultoria era albergar uma esquadra de jornalistas voltados a polir a imagem do ora investigado e seu grupo político”.

Com isso, o relatório da PF consegue o que até mesmo a ditadura militar não conseguiu. Ao invés da censura, que conseguia às vezes o efeito contrário do desejado – aumentar o prestígio do jornalista -, agora os setores autoritários do Estado, que não admitem críticas, lançam acusações genéricas, coletivas, vazias, e, no entanto, gravíssimas, a todo um campo político.

A interpretação banal que se faz da máxima de Millôr Fernandes  – jornalismo é oposição, o resto é secos & molhados – nunca me pareceu tão ridícula.

No caso do Brasil, oposição tem de ser uma coisa muito específica: oposição ao governo do PT. A teoria clássica da democracia prevê o poder do Estado dividido em três forças que se regulariam umas às outras: judiciário, legislativo e executivo. Hoje, no Brasil, na prática, temos várias outras forças que se tornaram independentes: o Ministério Público, a Polícia Federal, a imprensa, por exemplo. Não se pode, contudo, fazer nenhuma crítica, ou ser “oposição”, a nenhum desses setores do Estado.

Trata-se de um “millorianismo” bastante seletivo. Em alguns casos, fazer oposição é sinônimo de bom jornalismo; em outros, de “guerrilha midiática” que visa “desqualificar autoridades”.

Sim, porque xingar a presidente, todo mundo pode, até mesmo o delegado responsável pela Lava Jato faz isso, de graça.

Agora, criticar “autoridades”, ou seja, ministros do Supremo, procuradores e delegados, aí é crime, e só pode ser feito por “esquadra de jornalistas” pagos com recursos desviados…

Toda a semântica da ditadura parece ter voltado, mas regidas por um autoritarismo muito mais inteligente.

O liberal brasileiro é um ser exótico.

Ele quer o Estado mínimo, não interventor, mas adora um sistema penal hipertrofiado, com juízes se metendo em política e Polícia Federal determinando quem pode ou não fazer críticas ao Estado.

A Lava Jato, por sua vez, se tornou uma espécie de complemento da Ação Penal 470.

Após a destruição de Cartago, é preciso também salgar a terra, para que nada mais cresça por  ali.

As vitórias políticas que obtivemos, ao convencer setores importantes da opinião pública, de que se tratava de um julgamento de exceção, um julgamento politizado, que abusou da publicidade opressiva da mídia, que distorceu e mentiu sobre uma série de fatos, que inaugurou uma sinistra era de conspirações midiático-judiciais, aquelas vitórias, por mais humildes que tenham sido, motivaram um espírito de vingança junto aos mesmos setores ideológicos que patrocinaram as patranhas.

A Lava Jato está sendo usada como instrumento de vingança política, e para devastar o pouco de contestação que existia em relação à ditadura midiático-judicial que se tenta implantar no país.

Não à tôa, o ex-ministro da Corte Suprema argentina, Raul Zaffaroni, um dos maiores penalistas vivos do mundo, chamou a operação Lava Jato de “golpe de Estado”.

A Polícia Federal vai acusar Zaffaroni de fazer parte de “esquadra de jornalistas” e integrar alguma “guerrilha midiática”, financiada com recursos ilícitos, para “desqualificar autoridades”?

Todos os milhares de intelectuais, cineastas, escritores, juristas, sociólogos, cientistas políticos, estudantes, professores, que fizeram críticas à Ação Penal 470, serão criminalizados pela Lava Jato, como fazendo parte de uma “esquadra de jornalistas voltados a polir a imagem do ora investigado e seu grupo político”?

Não podemos negar que eles aprenderam com os erros cometidos na ditadura militar. Suas vítimas, seus torturados, se tornaram herois, parlamentares, ministros, até mesmo presidentes da república.

O erro da ditadura foi achar que, destruindo a carne, eliminariam o espírito.

As conspirações midiático-judiciais atacam diretamente o espírito, a imagem, o prestígio.

Conseguiram vitórias espetaculares neste sentido.

A Petrobrás hoje é vista como um “antro de ladrões” e o discurso em defesa de sua privatização, a preço de banana, para potências estrangeiras, avançou junto à opinião pública.

Em momentos recentes, as corporações norte-americanas de petróleo tiveram que arcar com o custo político e financeiro altíssimo de patrocinar guerras no Iraque e na Líbia.

Aqui podem ter experimentado uma nova tática, bem mais sofisticada.

É ainda só uma teoria, mas como ela é verossímil! Espionaram a Petrobrás, detectaram meia dúzia de ladrões ali dentro, e pronto.

Com ajuda dos conspiradores domésticos, de um juiz absolutista, de uma mídia totalmente comprometida com o desmantelamento do Estado, patrocinaram manifestações, costuraram uma nova narrativa criminal, e agora procuram, com apoio de parlamentares da oposição, avançar sobre as reservas do pré-sal.

Quando encontramos o pré-sal, falava-se em até 8 bilhões de barris, lembram?

Pois é, hoje o pré-sal já tem, provadas, reservas superiores a 40 bilhões de barris!

E há previsão de que o pré-sal pode ter mais 173 bilhões de barris, totalizando quase 300 bilhões de barris!

Isso nos colocaria em posição próxima (talvez mesmo acima) da Venezuela e da Arábia Saudita, que possuem hoje, reservas provadas, respectivamente, de 298 e 267 bilhões de barris.

É uma boa hora para calar os críticos e criar uma narrativa, mentirosa, sobre a Petrobrás, como se ela fosse uma empresa corrupta e incompetente que não tivesse capacidade para explorar o pré-sal.  Os gráficos, porém, não mentem. A Petrobrás tem conseguido explorar o pré-sal em tempo recorde.

Abaixo, alguns slides de um trabalho ainda inédito da Federação Única dos Petroleiros (FUP).

Obviamente é importante, para o Brasil, que essa riqueza permaneça em mãos do governo, que é obrigado, ao contrário da iniciativa privada, a responder aos interesses do povo, através do sufrágio universal. O controle de uma reserva desse porte permitiria ao governo brasileiro exercer influência internacional através de acordos com outros países produtores, e, do ponto-de-vista ambiental, asseguraríamos muito mais segurança para nosso litoral.  Em relação à corrupção, a transparência exigida de uma empresa pública, mormente numa democracia aberta como a nossa, sempre será muito maior. Aliás, toda a corrupção na Petrobrás veio da promiscuidade da estatal com empresas privadas.

Já disse alhures que entendo a Lava Jato como uma operação importante, não fosse tão envenenada por interesses políticos mesquinhos, autoritarismo e truculência judiciais,  além dos sinistros movimentos imperialistas que a observam, de cima, com fome nos olhos.

Mesmo que a fonte básica de energia não seja, no futuro, mais o petróleo, é importante que o controle sobre o petróleo permaneça público, para que possamos fazer essa transição, para outras fontes de energia, de maneira gradual e pactuada com a sociedade, sem traumas sociais.

A luta pelo controle público sobre as nossas reservas de petróleo é a luta do século, o grande desafio político que as novas gerações enfrentarão nos próximos meses e anos.

[Análise Diária de Conjuntura – 02/09/2015]

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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