Cromwell da Silva

Por Miguel do Rosário, editor do Cafezinho

(Publicado originalmente em 07 de janeiro de 2011, no blog Óleo do Diabo.  Parabéns pelos 70 anos, Lula!)

Poucas pessoas sabem disso, mas a Inglaterra, por um breve periodo, 1649 a 1653, foi uma república. Os próprios ingleses, durante muito tempo, esforçaram-se por apagar esse fato histórico e anular o valor moral e político de sua principal personalidade. Refiro-me a Oliver Cromwell. Até hoje, o nome suscita ásperas discussões. Populista, ditador, republicano, hipócrita, puritano? Teria sido um grande homem, ou um homem desprezível?

Em 22 de maio de 1840, Thomas Carlyle, o mais brilhante ensaísta de sua época, participou de uma conferência na qual expressou uma opinião surpreendente sobre o nome mais perturbador da história inglesa: Cromwell foi um herói, afirmou. Um herói político.

A conferência era a sexta e última de uma série que o escritor vinha fazendo sobre o papel do herói na cultura ocidental. Carlyle não teve papas na língua. Faz um elogio, bastante ousado para uma época em que as paixões políticas eram incendiárias – e perigosas para quem as incitava -, de uma figura extremamente polêmica. Cromwell, o “rude”, o “confuso” Cromwell, “que não sabia falar”, que se exprimia com “selvagem profundeza”, a “profundeza e a ternura de seus afetos rudes”.

É um texto muito bonito, o de Carlyle. Romântico. Bastante confuso também, como se ele, para falar de Cromwell, conhecido por seus intrincados discursos, mesclando uma ardente paixão evangélica e anti-papal a um patriotismo místico, quisesse igualmente usar imagens e metáforas dúbias, complicadas, barrocas, mas sempre comoventes.

Imagino que quando um brasileiro contemporâneo, qualquer brasileiro, lê esse texto, a comparação é inevitável. Lula é nosso Cromwell. Nesse Brasil quase sem heróis, nesse Brasil vira-lata, com sua elite ferozmente autodepreciativa, para a qual o fracasso do país, não apenas em termos econômicos, mas sobretudo em termos políticos, em termos morais, é um imperativo, é uma necessidade, também temos um líder rude, odiado pelas elites e amado pelo povo, que não segue “a liturgia” do cargo que ocupa, e, no entanto, em sua alma, possui a verdadeira nobreza de um estadista. Assim era Cromwell, e Carlyle denuncia a mediocridade, o pensamento de lacaios, dos que almejam apenas enxergar, na pessoa de um rei, as suas vestes, as suas maneiras, ao invés de buscar a nobreza em suas ações, na consequência de seus atos! “O que nós dissemos do criado aplica-se ao cético. Ele não conhece um herói quando o vê. O criado espera encontrar mantos de púrpura, cetros dourados, guardas de corpo e floreados de trombetas; o cético do século XVIII busca as fórmulas regulares e respeitáveis”.

Carlyle parece falar aos missivistas do jornal O Globo. Acusa-os de esperteza excessiva, paranóica. Procuram charlatães em toda parte, mas não conseguem reconhecer um homem digno de confiança. “Os ludibriados, na verdade, são muitos: mas de todos os ludibriados, não há nenhum tão fatalmente situado como aquele que vive sob o injustificado terror de ser ludibriado.”

“Reconheçamos primeiro o que é verdadeiro, para depois discernirmos o que é falso”, afirma o escritor, acrescentando que “só os sinceros podem reconhecer a sinceridade”.

Cromwell, o mais admirado e o mais achincalhado dos reis ingleses. Aliás, nem chegou a ser um rei legalmente falando, mas um Lorde Protector, líder máximo do Parlamento, mais poderoso que muitos reis de verdade. Ele, que na guerra civil entre as forças do Parlamento e as forças do Rei, afirmou que, se viesse a lutar frente a frente com o próprio monarca, não hesitaria em matá-lo! E que, poucos anos depois, votou em favor da execução do Rei. E o Rei inglês foi executado!

Sempre tive admiração por esses ingleses que aliam um pragmatismo absoluto a uma paixão ardente. E que tomam decisões inusitadas e corajosas, como o rei que, excomungado pelo Papa, rasgou a Carta de Excomunhão na frente do povo e fundou uma nova religião na Inglaterra! Como os trabalhadores ingleses, com sua história de lutas terríveis, cujas modestas conquistas práticas se contrapunham à vitória esmagadora de sua dignidade! A classe trabalhadora inglesa, uma das mais vilipendiadas em seus primórdios, tornou-se, à mercê de imensas e dolorosas lutas, que em verdade não se iniciaram na revolução industrial, mas atravessaram séculos e séculos, tornou-se uma classe vitoriosa. A maior conquista do trabalhador britânico, afinal, não foi o salário decente, mas sobretudo a altivez política, o orgulho de olhar para sua própria história com o espírito satisfeito: sofremos, lutamos, vencemos!

Alguns anos depois de morto, quando a monarquia é restaurada na Inglaterra, o corpo de Cromwell é exumado, profanado, enforcado e decapitado, em praça pública, com o objetivo de humilhar seus milhões de seguidores, sobretudo as pessoas simples que aprenderam a amar um rei sem realeza, um rei que havia sido lavrador, um rei que, um dia, ao responder à acusação de um adversário no parlamento, de que promovia pessoas rudes a altos cargos militares, falara que “preferia mil vezes lutar ao lado de um soldado em trajes simples mas dotado de coragem e valor verdadeiros do que ao lado de um cavalheiro refinado que era apenas isso: um cavalheiro refinado”.

Carlyle argumenta que o herói político, como homem, está sujeito a toda espécie de erros e confusões. As próprias mentiras que se atribuem a Cromwell, diz o escritor, deviam-se ao fato de que todos os partidos se enganaram com ele, porque cada um entendia Cromwell à sua maneira. Isso também me lembrou Lula: todos que procuraram dar-lhe um significado, não em relação ao que ele realmente era e o que veio a ser, mas com base no que eles pensavam que ele deveria ser, enganaram-se redondamente; e em vez de reconhecerem o erro próprio, lançam acusações sobre o personagem que lhes inspirou as fantasias.

Apenas o povo não se enganou com Lula, porque o povo revelou-se muito mais sensato e mais prático do que todos os politizados e intelectuais: o povo não queria o Lula dos sonhos, das utopias, e sim o Lula do cotidiano, das realizações, o Lula pragmático, o fanático pelo bom senso e pelo caminho mais seguro. Essa é a razão do sucesso de Lula, no Brasil e no exterior.

Cromwell teve, contudo, um final melancólico, e um pós-morte vergonhoso, porque cada vitória sua significou também mais ódio acumulado entre seus detratores. A profanação de seu corpo por parte dos monarquistas envergonha, sobretudo, os próprios autores daquele ato, assim como o calunioso artigo de César Benjamin serve apenas para envergonhar o próprio César Benjamin.

A frase de Brecht, de que “infeliz o povo que precisa de heróis”, é mais uma dessas citações inócuas, desprovidas de sentido histórico, e o fato de hoje um dramaturgo revolucionário e comunista ser citado por intelectuais da direita apenas corrobora essa confusão. Todos os povos precisaram e precisam de heróis. Os pais são os heróis de seus próprios filhos. Nós somos os heróis de nós mesmos. E os heróis do povo, não nos esqueçamos, são respeitados por suas qualidades, mas amados, verdadeiramente amados, por seus defeitos.

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