“Silvério dos Reis” e a entrega da rapadura

por Rogerio Dultra dos Santos, no Democracia e Conjuntura

“Silvério dos Reis”

O PT finalmente compreendeu que não adiantava ficar com Eduardo Cunha pendurado sob a cabeça da Presidente Dilma. Talvez por influência de Jaques Wagner, Ministro empoderado da Casa Civil, talvez pela pressão de Lula sobre o partido, os parlamentares petistas parece que azeitaram o tom no último segundo.

Cunha, coitado, fez o que poderia fazer e jogou para a galera. Será fritado, cozinhado e marinado pelos seus queridos colegas e provavelmente sucumbirá ao final pelas mãos de Janot.

O clima de beligerância eleitoral voltará imediatamente à esquerda. As ruas serão inundadas pela defesa da democracia.

E a vergonha por suas teses terem sido colocadas em funcionamento pelo mais inconteste símbolo da corrupção não atingirá a oposição das classes médias, que voltarão a tocar suas panelas.

Em compensação, as alternativas políticas desta oposição são tristes: Aécio, coitado, não lidera nada; Alckmin tenta transformar crianças em vândalos sem muito sucesso e acumula um passivo de seca, muitas prisões e pouca educação; Joaquim Barbosa, o finado herói, se for ressuscitado, disputará com Bolsonaro o lugar de mito nanico; Sérgio Moro, outro presidenciável que é sonho de consumo das classes médias, não suportaria debater com quem quer que seja e sucumbiria à primeira réplica da Luciana Genro.

Olhando para trás, Dilma continua ilesa inclusive ao não ter aceitado compor com Eduardo Cunha e por ter lançado candidato próprio do governo para a disputa da presidência da Câmara. Se tem alguém de ficha limpa na República, este alguém se chama Dilma Rousseff. Ninguém duvida ou questiona. Só os traíras.

Daí o caráter patético de uma oposição que precisou de um meliante profissional para tentar o golpe de estado. Vergonha alheira recaindo sob Cunha e todos os que tiraram fotos e deram declarações maravilhosamente deslumbrantes sobre ele.

O nosso novo Silvério dos Reis finalmente entra em modo de respiração artificial antes de desligarem seus aparelhos.

Interlúdio Teórico by Delcídio

O papel lamentável do STF na prisão do outro facínora, o Senador Delcídio do Amaral, entrará para os anais do constitucionalismo moderno como o exemplo cabal que o sistema Hans Kelsen de jurisdição constitucional, que estimula o ativismo e o papel de corte política do Tribunal, é tão aberrante em conseqüências quanto o modelo ditatorial schmittiano. Veja: ambos são decisionistas, isto é, fazem prevalecer a vontade de decidir sobre o ordenamento.

É justo lembrar que Kelsen defende a vontade da autoridade judicial limitada pela forma da lei, isto é, o Tribunal Constitucional guarda a Constituição, mas não pode agir ignorando-a. Diferentemente de Carl Schmitt, para quem a vontade do soberano é que é a boca da lei, chancelada pelos tribunais. Em Schmitt, o Presidente é o guardião da Constituição, que não passa da expressão de sua vontade.

No Brasil, Ministros não eleitos pelo povo têm o poder de desconhecer o texto literal da constituição e borrar os limites da separação de poderes. Isto é uma demarcação suficientemente forte e clara de que o nosso sistema constitucional não evita aberrações capazes de fazê-lo implodir, ignorando os limites kelsenianos (leia-se, a lei). O capítulo brasileiro do protagonismo judicial na política desnuda o seu caráter decisionístico, ou seja, a preponderância da vontade sob o direito.

O caso Delcídio é o leading case que produzirá, num futuro ainda distante, uma reengenharia institucional do Poder Judiciário, colocando-o no lugar merecido de garante da democracia e não de seu algoz. Mas aí será necessária uma nova Constituição.

A Entrega da Rapadura

Com Eduardo Cunha ladeira abaixo, a “Operação Lava-Jato” retomará o fôlego para seguir produzindo novos factóides semanais, visto que o objetivo da oposição agora não é necessariamente o impeachment de Dilma, mas o seu sangramento lento, inviabilizador de qualquer candidatura de esquerda, mesmo que seja Lula.

Mas a “Lava-Jato” não opera como epifenômeno midiático. As suas funções vão mais além do que o seu volume de atividades aparentemente desconexas deixa entrever.

Nesse sentido, é bom olhar para a forma. Os meios de comunicação de massa não se cansaram, nos últimos meses, de realizar um conjunto excessivo de gráficos, esquemas, organogramas e resumos, tentando dar conta da “complexidade” da “Operação Lava-Jato”. O maior movimento institucional contra a corrupção da história do país.

As dezenas de “fases” da “investigação” levada à cabo por uma “equipe” composta por policiais federais, procuradores federais e juiz federal não devem nos ludibriar pela forma.

E por forma, não me refiro nem à questão da parcialidade das investigações, de sua seletividade na escolha dos alvos ou da utilização excessiva e irregular da prisão provisória como instrumento de chantagem, barganha e tortura. Estes elementos medonhos da “Lava-Jato” são apenas resultantes de seu princípio ativo.

Segundo os ditames do Processo Penal, quando acusação, juízo e investigação se confundem, há uma regressão automática à situação processual do medievo.

Nesse sentido, enquanto na Idade Média prevalecia o modelo inquisitorial, onde a autoridade investigava não um sujeito de direitos, mas um objeto a ser escrutinado (inclusive pela tortura), a modernidade legou à civilização o tal do actum trium personarum (o processo composto por acusação, defesa e juízo, com funções distintas e incomunicáveis).

Assim, as aspas colocadas acima para a “equipe” de policiais, procuradores e juiz, na “Lava-Jato”, é um modo de chamar atenção para o descalabro e para a ilegalidade de um processo que, ao não seguir os elementos básicos do Processo Penal pátrio, deveria e ainda pode sofrer anulação ex-tunc (desde o começo) [isto se a Constituição voltar a ser aplicada pelo STF…].

Mas qual o seu sentido profundo? O que anima a continuidade de um processo judicial tão anômalo? É somente porque investe contra os poderosos? É pelo fato de querer limpar o Brasil?

Na verdade, a “Operação Lava-Jato” tem apenas duas fases. Ela se realiza para alcançar dois grandes objetivos gerais. Um está quase lá e o outro ainda encontra lugar de resistência. A “Lava-Jato” é uma estratégia nova do “entreguismo” brasileiro. Entreguismo expresso, por exemplo, na teoria da dependência de FHC, que subalternizava o desenvolvimento do Brasil aos interesses dos EUA.

As finalidades básicas da “Lava-Jato” são acabar, em termos sociológicos, com a infra e a supra-estrutura nacionais.

Ela atinge a Petrobrás como símbolo da autonomia e da potência energética do país. Criminaliza as empreiteiras responsáveis pela ativação da economia produtiva, por tornar possível não só a Copa (e, agora talvez, as Olimpíadas), mas a política de pleno emprego. Com a prisão do primeiro banqueiro, atinge de morte o sistema financeiro nacional, já que o BTG não é somente um banco, mas um conglomerado de relações financeiras.

A “Lava-Jato” atinge de morte a autonomia econômico-financeira nacional. Este objetivo possibilita a abertura do nosso mercado para o capital estrangeiro, para as empresas multinacionais de construção civil, para o desmonte da política de conteúdo nacional.

Mas o objetivo maior, o objetivo fundamental da “Lava-Jato” talvez o mais difícil, é o de atingir de morte a Democracia. Com isto, ela finalizaria a tal da “entrega da rapadura”.

Conclusão mezzo pessimista

Este complexo conjuntural deixa entrever que a nossa tradição se constituiu entrelaçada com o antiliberalismo.

Isto significa dizer não somente que a forma burguesa do Direito, que tem nas normas jurídicas escritas a possibilidade da estabilização de expectativas (certeza e segurança jurídicas) o seu alicerce mais básico, é descartável.

Dizer isto representa a negação do funcionamento do Estado através da lei, e de sua submissão a ela. Negar a regra do Direito como parâmetro necessário de convivência social é rechaçar o Estado de Direito.

Mas a nossa tradição não está somente acostumada a contornar a regra jurídica por conveniências variadas, ou mesmo a desconhecê-la, com a finalidade de reafirmar o direito como instrumento de opressão de classe, retirando o seu caráter de universalidade.

Nós fomos forjados em um caldo cultural que não só se reproduziu historicamente de exceção em exceção, mas que se locupletou das hierarquias sociais e dos variados hiatos democráticos.

Sim. Somos autoritários na origem, no processo e estamos longe de afastar a autocracia como horizonte de expectativas. A derrocada política do Parlamento, o papel de queima da Constituição realizado pelo STF e o protagonismo da “Lava-Jato” representam hoje, e infelizmente, o coração deste processo secular.

Ele nos faz lembrar que, no fundo, entendemos diferentemente de liberais como Bobbio, para quem as leis garantem e possibilitam a democracia. Acreditamos piamente que as instituições devem ser as sombras alongadas dos homens e mulheres que as controlam, exatamente como os reacionários do século XIX entendiam.

O que me faz concluir que a revolução democrática brasileira ainda não se realizou e provavelmente não verá a luz do sol tão cedo. Isto não significa obviamente o impeachment da Dilma. Isto significa que a disputa política entorno do impeachment da Dilma será apenas o menor dos nossos problemas.

Redação:
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.