Por que milhões ficam em casa ao invés de sairem às ruas em defesa da democracia no Brasil?

(Foto: Tomaz Silva)

Por Bajonas Teixeira de Brito Junior, colunista de política do Cafezinho

A democracia no Brasil é o período em que a violência policial se abate apenas sobre os pobres e os negros de forma inclemente, resguardando a classe média. Já as ditaduras são aqueles momentos em que a classe média vê suspensas as prerrogativas e privilégios que a resguardam da violência policial (e também judicial) exercida diariamente nas periferias. Assim, é claro, que por mais ‘democrático’ que seja o período que o país atravessa, para os pobres é sempre ditadura.

E esse é o grande motivo pelo qual não se vê nas ruas milhões e milhões lutando pela democracia. Para as periferias, a diferença empírica entre democracia e tirania é muito tênue e, na prática, nula ou desprezível.  Tanto na democracia quanto na ditadura militar, a polícia que as reprime é a mesma: a polícia militar. Ou seja, seu cotidiano permanece sempre militarizado.

Na democracia pré-64, por exemplo, o general Amaury Kruel, que depois viria a ser figura decisiva para a engrenagem do golpe militar, foi chefe de polícia do Distrito Federal (atual município do Rio de Janeiro). Sua gestão foi uma das mais violentas e, ao mesmo tempo, das mais corruptas, de que se tem notícia. Parte da sua história está contada no artigo de Alexandre Leitão para a Revista de História.

Como nos outros momentos da democracia brasileira, a democracia pré-64 era uma ditadura pura e simples para os setores populares. E é talvez uma das tarefas mais importantes para compreender o atual golpe, e a responsabilidades do PT nele, examinar o vínculo de democracia e ditadura no país nessa perspectiva, a exposição à violência policial.

A questão da ditadura policial no Brasil é uma das que mais expõe o sistema de cumplicidade que imobiliza a resistência política no país nas situações de golpe. Como ninguém ignora, tirando Sem Terras e Sem Tetos, que são movidos em parte por instituições, o grosso da população no Brasil não é sujeito político ativo. Embora por diversas vezes, e com graus diferentes, as periferias tenham esboçado gestos de politização, como passeatas, em geral sua ação à repressão policial é pontual, com pequenas explosões de fúria que não vão além de incendiar alguns poucos ônibus.

Isso não é novidade, déficit ou carência brasileira. É o lugar mais comum entre os lugares comuns da história. Em decorrência dele, o espaço da política se encolhe, e seus agentes ficam restritos às classes médias e à ralas presenças vindas de baixo. Nos anos de chumbo, por exemplo, parte da resistência armada foi feita por ex-sargentos que vinha da tradição pré-64, oriundos das classes populares, e jovens de classe média junto com alguns intelectuais.

A classe média como um todo estava longe de ser de esquerda. Era um punhado de seus membros, em parte sensíveis à fascinação internacional do esquerdismo, particularmente sua voga na França (na época a classe média ainda falava o francês, e muito pouco o inglês), e em parte reagindo ao enclausuramento imposto pelo regime militar. A maior porção da classe média, por passividade ou convicção, foi direta ou indiretamente cúmplice do golpe.

Em parte, o segmento da classe média que se opôs ao golpe, o fez contra o avanço da repressão policial sobre ela, até então relativamente protegida. O saldo de 1964 a 1979, segundo o historiador Jacob Gorender, calculado por baixo, foi de “cerca de 50 mil pessoas com passagem pelas prisões por motivos políticos; cerca de 20 mil submetidas a torturas físicas também por motivos políticos; 320 militantes de esquerda mortos pelos órgãos repressivos, incluindo 144 dados com ‘desparecidos’; centenas de baleados em manifestações públicas, com uma parte incalculável de mortos; 8 mil acusados mais 11 mil indiciados em 800 processos judiciais por crimes a segurança nacional; centenas de condenação à penas de prisão; 4 condenações a pena de morte; 130 banidos do território nacional; milhares de exilados; 780 cassações de direitos políticos por dez anos com base em ato institucional, incontáveis reformas, aposentadorias e demissões do serviço público por meios discricionários.”

A maioria desses presos, banidos, torturados e mortos foi de membros da classe média (ao menos entre o final dos anos 60 e inícios dos 70). Esse é o significado preciso, numérico, da suspensão das garantias de que goza tradicionalmente a classe média. Uma matéria do Estadão, órgão não exatamente radical, assinada por Ariel Palacios, contabiliza trinta mil mortos pela ditadura na Argentina. No Brasil, segundo os números acima, foram 320 militantes de esquerda mortos. Ou seja, algo próximo a 1% da quantidade de argentinos (Gorender se refere ainda a “um número incalculável” de mortos em manifestações, mas esses não temos como conferir. O relatório da Comissão Nacional da Verdade, embora eleve aquele número para 434 mortos durante a ditadura militar, cobre um período maior que o analisado por Gorender).

Devemos concluir por esses números que tivemos uma repressão mais branda, mais humana? Quem tenha lido sobre os torturadores Freury e Ulstra, não alimentará essas ilusões. A hipótese mais provável é que a resistência brasileira, medida pela mobilização da classe média,  tenha sido muito menor que a argentina e que isso se reflita no saldo geral do conflito. Mas, se for assim, isso significa uma adesão muito ampla, maior do que se costuma admitir, da classe média ao golpe militar.

O grande problema político brasileiro, é que as identidades de classe no país, em particular as da classe média, se formam pelos privilégios, acessos, prerrogativas, que são negadas aos grupos da parte inferior do sistema, especialmente os negros. Esse é o cabresto, a coleira do cão, que prende a classe média às elites e a torna tão antidemocrática (E não esquecendo que nossos números relativos à violência policial cotidiana assombram o mundo inteiro, e que os comandos dessas polícias saem, em geral, da classe média).

A explosão de ódios nas redes, o ritual repetido com tanta frequência desde o segundo semestre de 2014, quando os crimes de ódio cresceram 84%, e que se vê, por exemplo, no seu último episódio, no ataque sofrido por Preta Gil, é expressão dos privilégios da classe média: negros tem um lugar (“cada macaco no seu galho”), não podem fazer sucesso, ocupar a posição de astros ou estrelas, etc. Se isso é pouco tolerado para os homens negros, o é muito menos para as mulheres negras (Preta Gil, Tais Araújo, Maju, etc.), que segundo a lógica hierárquica aqui vigente, devem ocupar o último degrau da escala social.

O Brasil é um país de privilégios e privilegiados, por isso seu sistema de classes, etnias e gêneros é tão rígido. Negros, índios, mulheres (gays nem se fala) devem ficar em seu lugar. Por outro, a classe média sente-se segura de si, quando sabe que esses grupos estão ferreamente atados aos seus lugares estruturais. É óbvio que há segmentos dentro da classe média que escapam a essa lógica, e inclusive formam vanguardas na luta contra ela, mas são minoritários.

O governo Temer é o retrato da reação, do ódio diante das ameaças de ruptura com esse imobilismo. Ao montar um ministério ficha suja, masculino, branco, e oligárquico, a intenção foi ditada pelo instinto de conservação, o mais rústico que se possa imaginar.

Mas esse movimento, por trágico que seja, é um abalo de superfície. Ele seria impossível sem cumplicidades mais amplas, que unem um espectro muito mais vasto do que a direita de classe média.

Sua localização é justamente a violência policial. O Brasil é um país excludente que liquidou quase todas as vias de comunicação com os párias. Sua linguagem se reduziu quase exclusivamente à violência militarizada (polícia militar), pela qual o pequeno núcleo de privilegiados teceu em torno de si um escudo, uma couraça de chumbo.

De um lado está o privilégio, de outro as vítimas excluídas que devem ser excluídas para que os privilegiados continuem sendo privilegiados. E quem são os privilegiados? É toda a classe média (não é preciso falar dos ricos nem dos bilionários), não só a de direita, mas também a de esquerda, coxinhas e mortadelas. É isso que faz a cumplicidade ser tão vasta.

O resultado disso é a incapacidade de criar uma aliança verdadeira entre a classe média anti-golpe e as periferias, que às vezes estão apenas à distância de centenas de metros uma da outra (como na Zona Sul do Rio de Janeiro). Recentemente, presenciamos dois momentos de  aproximação, ou tentativa de aproximação.

Uma foi em 2013, no episódio do assassinato de Amarildo. No clima dos protestos, uma passeata foi feita da Rocinha até o cemitério São João Batista. Que eu lembre, foi o primeiro ato político de uma ‘periferia’ e só teve lugar em razão de sua articulação com a classe média (a parte da esquerda) que protestava naquele momento.

O outro episódio foi a tentativa, que parece não ter sido bem sucedida, de inserir, através do funk, as favelas nas manifestações de apoio a Dilma, e ocorreu na Zona Sul do Rio na  expectativa de reunir 100 mil pessoas. O comparecimento foi muito menor. A Frente Brasil Popular estimou em 5 mil pessoas, o número de presentes pela manhã no dia 17 de abril.

Qual é a dificuldade maior em realizar essa junção? É o fato de que o divisor de águas entre os dois grupos é a violência policial, que se abate sobre os pobres e os negros e da qual a classe média está relativamente isenta. É seu privilégio. Sua prerrogativa. E, por estar em boa medida resguardada, ela permanece em grande parte insensível, isto é, relativamente cúmplice, senão inteiramente cúmplice, diante da constituição das periferias brasileiras como campos de reclusão.

A repressão aos rolezinhos, por exemplo, inaceitável numa sociedade democrática, encontrou cumplicidade total na classe média em todos os seus espectros políticos, que depois também não questionou o fato de que dois de seus líderes tenham sido mortos em circunstâncias não muito claras.

Enquanto isso a classe média continua gozando de suas prerrogativas e imunidades (prisão especial, acesso à advogados, olhar condescendente de juízes, conversão fácil de penas de prisão em prestação de serviços, etc.).

O PT no poder, longe de compreender essa dinâmica, reanimou uma compreensão colonial de pobres controlados como índios em aldeamentos e missões, fortaleceu imensamente o aparato policial do país. Nunca atentou para o significado político democrático que seria, rompendo o padrão repressivo, construir um amplo diálogo com os excluídos das periferias.

O resultado da cegueira do PT foi a UPP (cujo projeto inicial, inclusive, previa cercar as favelas com muros altos pontuados por guaritas) e o crescimento das milícias. Lembremos que nos últimos tempos, o ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, utilizou de diversas evasivas, após uma denúncia de ação das milícias em áreas do Minha Casa Minha Vida do Rio de Janeiro, e não fez o efetivo combate com o uso da Polícia Federal, alegando que a iniciativa caberia ao PMDB do Rio.

Mas como o PMDB tomaria essa iniciativa se até a própria Globo reconhecia e apontava a ligação do braço direito do prefeito Eduardo Paes (PMDB) com as milícias no estado?

No fundo, tanto no PT quanto na democracia pré-64, a imagem da população sempre foi o de uma turba perigosa que só se disciplina através da violência policial. É, com dissemos, a velha ideia de que o povo deve ser controlado politicamente de cima, tal como os jesuítas faziam com os índios nas missões.

Veja-se a participação de Leonardo Boff no seminário Pax Rocinha, ocorrido em maio de 2013, que saudou o secretário Beltrame e o projeto da UPP nesses termos:

“O que vocês fazem é altamente arriscado, mas é também altamente humanitário. É um trabalho de transformar pessoas em cidadãos, que voltam a ter alegria de viver e conviver, que podem dormir tranquilamente, andar pelas ruas à noite. Pessoas que fazem parte da construção do bem comum”, disse Boff.

O projeto da UPP seduziu profundamente Leonardo Boff. Tanto que ao começar sua intervenção no evento, afirmou para o secretário José Mariano Beltrame: “Eu escutei o secretário com mais atenção do que se o Papa Francisco estivesse aqui. Porque ele não disse somente palavras, disse coisas importantes, convocou a população a trabalhar pelo caminho certo”.

Todas as pesquisas feitas nas comunidades do Rio de Janeiro mostram o contrário disso. Apontam para a presença tirânica de policiais, para os atos de arbítrio e incontáveis violências que passam a fazer parte do dia a dia da população, principalmente dos jovens. Os próprios policiais creem que a população os vê negativamente, e, em pesquisa recente (outubro de 2015), mais de 60% dos entrevistados confirmaram esse diagnóstico.

Veja-se que até a teologia da libertação, um dos horizontes ideológicos do PT, tem seu limite de reflexão dentro da lógica policial concentracionária. Tudo isso vem de longe, do passado colonial, e do zelo missionário que via negros e índios mergulhados no pecado, do qual deveriam ser retirados sob tutela da igreja.

Quando a Frente Brasil Popular espera colocar 100 mil periféricos na praia de Copacabana, e aparecem apenas cinco mil, e talvez nenhum deles propriamente descendo do morro, o que se deveria perguntar é se os anos que o PT promoveu uma política de segurança baseado na repressão não se refletem nesse esvaziamento.

Por que lutariam pela democracia se, como a experiência mostra todo dia, essa democracia permanece uma ditadura policial?

 

Bajonas Teixeira:
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