Uma resposta a Pablo Ortellado

(Foto de manifestantes pró-impeachment. É sempre bom lembrar o tipo social que se empoderou com o sucesso do golpe).

O pesquisador Pablo Ortellado publicou um texto em seu Facebook, no dia 3 de março, com críticas às iniciativas universitárias de criação de cursos sobre o golpe de 2016. Eu respondo ao artigo com observações em negrito e entre colchetes, intercaladas ao texto. Sei que esse método traz riscos de injustiça, ao comentar trechos e não o texto inteiro, mas eu me esforçarei ao máximo para contornar esse problema atendo-me, sempre, ao sentido geral do artigo.

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Texto publicado no Facebook de Pablo Ortellado

É compreensível a difusão de disciplinas sobre o “golpe” nas nossas universidades em resposta e em desafio à absurda interferência do ministro da educação na oferta de uma disciplina na UnB. Torço aqui para que essas disciplinas sejam uma oportunidade de reflexão crítica — entendendo por “crítica”, a análise crítica do objeto e não apenas a crítica política do impeachment.

[A “crítica política do impeachment”, que poderíamos chamar também, para iniciar esses comentários de forma provocativa, de “crítica política do golpe”, não é um objetivo menor, ou menos nobre, ou mesmo diferente, do que uma “reflexão crítica”. O autor, na verdade, faz uma insinuação algo maliciosa, sobre os riscos de uma “crítica política” de viés partidário. Não sei se deliberadamente, mas Ortellado se insere numa tradição autoritária, já antiga, mas bem intensificada nesses tempos pós-golpe (embora muito disfarçada, por conta exatamente do tipo de golpe em curso), segundo a qual a universidade deve se manter equidistante de qualquer posicionamento político existente na sociedade, o que, na prática, sabemos, atinge especialmente o pensamento crítico ao status quo dominante, visto que é esse que provoca incômodo. Quero dizer, se as disciplinas criadas tivessem como tema a “crise e o declínio da esquerda latino-americana”, haveria talvez alguma chiadeira, de setores da própria esquerda que se sentissem atingidos, mas não haveria, jamais, creio eu, esse tipo de cobrança antipartidária. A disciplina poderia fazer a “crítica política” que fosse necessária, porque é assim o processo de conhecimento: dialético. A crítica política do impeachment gera, em seu bojo, a crítica da crítica, e assim por diante, de maneira que esse tipo de observação me parece apenas uma maneira delicada de dizer: “cuidado com o que falam!”]

O tema, embora quente, merece investigação. O processo é ainda muito obscuro e não encontro razão para aceitar como uma verdade auto-evidente a resposta sumária de que setores conservadores descontentes com as políticas petistas teriam promovido um golpe parlamentar para apear o partido do poder.

[A pequena frase adversativa “embora quente” esconde um preconceito e um medo. Por que “embora”? A resposta, sabemos, está implícita. Temas “quentes” são mais difíceis de serem analisados. Uma quantidade enorme de variáveis nos escapam. Mas… puxa vida, que covardia! Um país consumido pela mais dolorosa crise política de sua história não deve refletir sobre essa própria crise? Ao invés de “embora quente”, deveríamos usar a expressão “justamente por ser tão quente, merece investigação”. Quanto ao fato do processo ser obscuro, acho que isso pode ser aplicado a qualquer campo do conhecimento humano, mormente sobre fatos históricos e políticos. Não há nada, absolutamente nada, tanto em história quanto em política, que não seja profundamente obscuro. Para lidar com isso, alguém começou a filosofar, há alguns milhares de anos. A expressão verdade auto-evidente, depois da física quântica, não é válida nem mais para matemática. Não há verdade “auto-evidente”, da mesma forma, sobre as razões pelas quais os nazistas ascenderam ao poder na Alemanha dos anos 30, mas isso nunca foi impeditivo para que as universidades estudassem o fenômeno sob os mais diversos ângulos. Os professores que criaram as referidas disciplinas em universidades federais entendem, do alto de sua liberdade acadêmica, de um lado, e ancorados em seus próprios currículos, de outro, entendem que houve um golpe em 2016, e que esse fato merece ser amplamente discutido. Pablo Ortellado menciona uma “resposta sumária”, segundo a qual “setores descontentes com as políticas petistas teriam promovido um golpe parlamentar para apear o partido do poder”, mas isso é uma invenção da cabeça dele. Aliás, essa é uma tática manjada, de criar um adversário fictício, cheio de “respostas sumárias”, e tomar partido contra esse boneco simplório, ao invés de enfrentar os adversários de carne e osso, ou seja, professores e cidadãos com opiniões complexas e sofisticadas sobre fatos históricos frequentemente obscuros e contraditórios. ]

As questões são inúmeras e vou apenas listar algumas para as quais eu gostaria de ter boas respostas.

Por que os principais atores do establishment (FIESP, AmCham, PSDB e a maior parte dos meios de comunicação) foram contra o impeachment durante todo o ano de 2015, no auge da primeira onda de protestos e só começaram a mudar de posição no final do ano? O que gerou essa mudança de posição? Foi a determinação de Eduardo Cunha de fazer o impeachment tramitar, criando uma situação de fato? Ou foi a demonstração de descontrole do Congresso pela presidente Dilma Rousseff que não conseguiu conter as pautas-bomba, mostrando que não conseguia mais administrar a crise fiscal?

[Aparentemente, o professor Pablo Ortellado quer criar a sua própria disciplina sobre o golpe. Para isso, porém, terá que ir um pouco mais fundo, e problematizar suas próprias asserções. Quem disse que Fiesp, PSDB e meios de comunicação foram contra o impeachment em 2015? Na minha opinião, e com todo o respeito, isso não é verdade. Deu-se exatamente o contrário. Entretanto, mesmo que assim o fosse, em que isso muda o conceito de “golpe”?  Ora, um golpe acontece justamente quando setores poderosos do status quo mudam de posição em relação a um governo eleito e passam a trabalhar para derrubá-lo.  Quanto à “demonstração de descontrole do congresso pela presidente Dilma Rousseff que não conseguiu conter as pautas-bombas”, temos aí uma teoria um tanto cínica de Pablo Ortellado. Cínica e injusta. Em primeiro lugar, as “pautas-bombas” de Eduardo Cunha e seus comparsas foram criadas exatamente já com a disposição de derrubar o governo. Ou seja, essas iniciativas reforçam a ideia de golpe. Em segundo lugar, Dilma conseguiu sim conter as pautas-bombas, todas vetadas por ela e, em seguida, vencidas no parlamento. A “crise fiscal”, por sua vez, não veio das “pautas-bombas”, mas sim da profunda recessão provocada pela paralisação da construção civil, por causa da Lava Jato. A operação liderada pelo juiz Sergio Moro, ao paralisar as atividades das principais empreiteiras do país, não apenas deflagrou um processo de destruição de postos de trabalho poucas vezes visto, em igual magnitude, na história do mundo, como fez a receita fiscal sofrer um impacto violentíssimo. Os comentários de Pablo Ortellado comprovam que ele precisará assistir algumas aulas das disciplinas sobre o golpe criadas por seus colegas. Aparentemente, Ortellado andou se injetando, excessivamente, com a heroína semiótica dos jornalões golpistas.]

Que há uma estratégia política na condução da Lava Jato, parece que não há dúvida. Mas qual exatamente ela é? Em que medida essa estratégia é particularmente antipetista e em que medida ela é antigoverno, numa estratégia que pode ser de autoproteção, como tem sugerido Marcos Nobre? Temer e o MDB parecem ter sofrido um intenso ataque da operação em 2016 e 2017 e o fato de nenhum peixe graúdo emedebista estar preso parece dizer mais sobre sua capacidade de se defender do que sobre a intenção da procuradoria e da polícia federal.

[Cáspite! Tá de brincadeira, né, Pablo? Você aí ofendeu a lógica. A Lava Jato até andou latindo para Temer, MDB, e mesmo – fraquinho – para o PSDB, mas foi a Lava Jato que, ao debilitar politicamente o PT, ajudou a levar Temer, PMDB e PSDB a assumirem um poder quase absoluto no país! A “capacidade de se defender” de Temer e MDB não teria antes a ver com o fato deles assumirem políticas favoráveis à mesma plutocracia que é dona da grande mídia e domina o aparelho judicial? Por acaso você concorda com as teses de Merval Pereira, de que a Lava Jato é a favor do povo porque prendeu “poderosos”? Neste caso, volto a insistir que vá à Brasília assistir às aulas de Luis Felipe Miguel, ou assista-as pela internet. Aliás, na USP também foi criado uma disciplina para estudar o golpe, não? Assista aí mesmo. Um verdadeiro filósofo nunca pára de estudar. ]

E qual tem sido neste processo o papel da imprensa em geral e da rede Globo em particular, tanto no impeachment, como nas denúncias contra o presidente Temer? O que a teoria contemporânea da recepção nos diz sobre a capacidade de uma emissora de televisão de criar um movimento de protesto? Seu papel foi mesmo decisivo, como tanto a própria emissora, como seus críticos parecem acreditar? Por que o movimento “Cansei” de 2007 que recebeu destaque na cobertura da emissora não decolou? E por que a postura ultra-crítica depois do furo da gravação do Joesley não produziu um movimento anti-Temer, embora fosse patente o empenho editorial dos jornais da Globo?

[“Teoria contemporânea da recepção”… Ao invés de ajustar as teorias à realidade, Ortellado quer fazer o contrário, quer ajustar a realidade às teorias. Ora, Pablo, o que a concentração de renda no Brasil, de longe a pior do mundo, somada a uma concentração midiática monstruosa, pode influenciar essa “teoria contemporânea da recepção”? Se você admite que o movimento “Cansei” de 2007 recebeu apoio da Globo, então você admite que ela vem tentando derrubar o governo desde então. O fato do movimento não ter decolado na época é explicado – é constrangedor ter de explicar isso para você – pelas circunstâncias políticas da época: situação econômica melhor, nível de desgaste menor do governo e do PT, e, sobretudo, inexistência de uma operação politicamente tão poderosa como a Lava Jato. ]

Nós temos alguma evidência empírica que não seja altamente especulativa de que interesses estrangeiros desempenharam papel relevante seja nos protestos que pediam o impeachment, seja na concepção e no desenrolar da operação Lava Jato?

[Bem, se você ler o Cafezinho, verá que os Estados Unidos se tornaram os maiores exportadores mundiais de derivados de petróleo, e, depois do golpe, o Brasil foi o país, de longe, que mais aumentou suas importações de óleo diesel. Aliás, óleo diesel é o principal produto importado pelo país. De uns anos para cá, a América Latina, Brasil à frente, passou a absorver quase 70% das exportações norte-americanas de óleo diesel. Estou tentando ser objetivo, ou seja, apresentar dados empíricos. O papel do Wilson Center, think tank financiado pelo congresso americano e controlado pela comunidade de inteligência do país, também me parece importante. Se você, Pablo, pôr de lado, por um momento, seu preconceito evidente contra blogs progressistas, e se, ao invés de nos comparar à esgotosfera anônima e pueril da extrema-direita, com seus fake news cada vez mais idiotas, e ler nossos artigos, que são assinados, que apresentam números, que trazem links, talvez você saia dessa bolha confortável, cheirando a Folha de São Paulo, em que você parece estar preso. ]

Será que os movimentos de protesto desempenharam efeito político significativo para o impeachment, para além de conferir legitimidade às movimentações dos grandes atores? Eles merecem o protagonismo que certas interpretações lhes conferem?

[Tem umas perguntas de Pablo que parecem até ser feitas de má fé. Os movimentos pelo impeachment foram monstruosos, e receberam amplo financiamento de todo espectro da direita e extrema-direita: partidos, Fiesp, governo de SP (que liberou servidores e deu gratuidade ao metrô), grandes meios de comunicação, organizações financiadas do exterior. Mas foram orgânicos também, e é óbvio que tiveram “efeito significativo” para o impeachment! Isso é tão intuitivamente evidente que, acho eu, devemos nos concentrar em outros aspectos, mais obscuros.]

As políticas liberais antecipadas pelo documento “Ponte para o futuro” foram mesmo a motivação oculta do impeachment ou pode ser que tenham sido uma estratégia de sobrevivência do governo Temer que tenta governar forjando uma aliança entre os interesses anti-Lava Jato do Congresso e os interesses econômicos do mercado?
Por fim: as políticas liberais do governo Temer são mesmo tão distantes das de Dilma Rousseff? Uma comparação entre as propostas de cortes orçamentários, teto de gastos e reforma da Previdência dos dois governos mostram diferenças marcantes? E a diferença é de qualidade ou é de grau?

[A “motivação oculta” do impeachment, como o próprio nome diz, é oculta, e assim permanece. Cabe a nós, que tentam pensar o Brasil, entendê-la. Para isso estão sendo criadas disciplinas sobre o golpe. As teses de Ortellado sobre “estratégia de sobrevivência do governo”, “interesses anti-lava jato do congresso”, “interesses econômicos do mercado” apenas revelam que ele, como todos nós, está desorientado com o curso dos acontecimentos. Fatos políticos, já ensinava Tocqueville, não são guiados apenas por interesses bem definidos. O acaso, as pequenas vaidades humanas, o egoísmo pessoal, a inveja, tem sua parte. Além disso, há sempre enormes contradições em qualquer processo histórico. Sobre as “políticas liberais do governo Temer”, Pablo, são diametralmente opostas às de Dilma Rousseff. A presidenta deposta tentou, sim, fazer uma inflexão conservadora e neoliberal, mas o que estamos vendo, seja honesto Pablo!, é um desmonte brutal do Estado e das leis sociais! Não tem, nem de longe, comparação ao que Dilma tentou (equivocadamente, na minha opinião) fazer com Joaquim Levy. Lembrando que Levy saiu do governo e houve uma tentativa, antes do fim, de consertar os estragos econômicos e políticos provocados por ele. As diferenças são de qualidade e de grau! Mais importante: com Dilma havia espaço para debate, não era um governo inteiramente dominado pelo mercado, como o governo Temer. ]

Todas essas perguntas não são óbvias e não são simples. Elas merecem uma investigação crítica que poderia ajudar a qualificar o debate público e a compreensão da difícil conjuntura brasileira. Torço aqui para que as disciplinas que estão sendo montadas nas nossas universidades enfrentem alguns desses problemas.

[Também torço, Pablo! É importante observar, todavia, que nenhum estudo sobre o golpe de 2016 implica em desconhecer os erros dos governos petistas. Foram tantos erros políticos, morais, econômicos, jurídicos etc! Se o PT não tivesse cometido tantos erros, não haveria golpe. Isso também é óbvio. O golpe explorou os erros do governo. Mas os erros não foram o motivo do golpe. O que parece realmente ter motivado o golpe foram os acertos dos governos petistas, a saber, políticas de inclusão social, distribuição de renda, inserção mais soberana na geopolítica internacional, além de decisões estratégicas no campo dos investimentos em desenvolvimento tecnológico e em infra-estrutura. E, sim, Pablo, foi golpe! Um golpe sórdido contra o povo brasileiro, que elegeu Dilma Rousseff porque queria ser governado por um grupo politico minimamente comprometido com os interesses populares e nacionais. Com todos os seus problemas e contradições, assim era o grupo político de Dilma. E assim, definitivamente, não é o grupo político que deu o… golpe.]

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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