Comentários sobre o novo capítulo da Vaza Jato

Ministério da Justiça/Isaac Amorim – 11.jun.2019

É importante mensurar a importância da entrada da Folha na cobertura do escândalo apelidado de “Vaza Jato”. A Folha é o maior jornal do país, com mais assinantes e mais audiência. Apesar dos fãs extremados de Jair Bolsonaro consideram-no uma publicação “petista”, a Folha é, na verdade, um jornal conservador, de centro-direita, e que foi, ao longo de toda a era petista, um dos principais cabos eleitorais da oposição.

O apoio da Folha ao impeachment de Dilma foi talvez o mais incisivo e duradouro de toda a imprensa brasileira. A seção Poder do jornal exibia, permanentemente, desde que se começou a falar da possibilidade de impeachment, um enorme “banner” com link para uma página voltada inteiramente à explicação do que era o impeachment e como ele poderia ser levado adiante.

A Folha, porém, ao contrário do Globo, Estadão e outros órgãos de imprensa, que expurgaram quase que integralmente qualquer indício de esquerdismo e/ou petismo em suas páginas, ou pelo menos de suas editorias mais importantes, manteve alguns jornalistas importantes de esquerda, como Monica Bergamo e Janio de Freitas, na linha de frente do jornal. Além do mais, sob o contraste da brutalidade política do governo Bolsonaro, o neoliberalismo aristocrático da Folha – apesar de defender quase que as mesmas pautas econômicas do atual governo – ganha ares progressistas, e são estes ares que enfurecem a militância de extrema-direita que dá sustentação nas redes sociais a Jair Bolsonaro.

Entretanto, mais importante que tudo isso é que a Folha, à diferença da Globo, que pode se dar ao luxo de viver de entretenimento, e usar o jornalismo como uma ferramenta política, depende de um modelo de negócio que depende visceralmente de seu trabalho jornalístico. A Folha, ao contrário da Globo, do SBT e da Record, precisa de assinantes.

A entrada da Folha, portanto, na cobertura da Vaza Jato dá início a uma outra etapa desse que podemos chamar da primeira grande crise política do governo Bolsonaro, e que atinge aquele que era, até então, o seu ativo mais importante: o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.

A primeira grande contribuição da Folha é que ela comparou mensagens trocadas entre procuradores e repórteres do jornal e atestou a sua integridade.

Analistas políticos hoje tem opinião quase consensual de que a relação entre Moro e Bolsonaro se inverteu: se antes era o ministro que ajudava a sustentar um presidente visto como incompetente; hoje é Bolsonaro que sustenta o seu ministro, cujo trabalho como juiz imparcial é posto de em cheque pelas revelações da Vaza Jato.

Não podemos, todavia, recair no erro da embriaguez política, e repetir o erro do “não vai ter golpe”, “fora Temer”, e outro cântico que descobri agora no filme da Petra Costa, Democracia em Vertigem, “Não vai prender” (referindo-se a Lula).

Já temos um cientista político, o mesmo que preconizava diariamente a derrota de Bolsonaro nas eleições, anunciando percentuais de probabilidade da queda do ministro Sergio Moro.

Moro pode cair. Ou não. Mas certamente não será derrubado com tiradas oportunistas e superficiais.

A Vaza Jato é um escândalo que, hoje, constrange a comunidade jurídica, especialmente as suas correntes mais progressistas, ou de formação garantista. Mas ainda não tem estofo para atingir o grosso da classe média e o povão, que não entendem direito o que pode ter de errado em um juiz conversar com procuradores, se o objetivo é prender o bandido.

A audiência de Sergio Moro no Senado, não nos deixemos enganar, revelou um fenômeno: os senadores se fechando num apoio duro, quase incondicional, a Sergio Moro, pressionados por este núcleo do eleitorado que é o único que parece meter medo no parlamentar de hoje: o eleitorado de classe média ativo nas redes sociais.

Por isso mesmo, acho que seria estratégico fazer a cobertura da Vaza Jato sem triunfalismo, sem palavras de ordem, sem cânticos (“não vai ter…”) delirantes, sem sensacionalismos ou exageros.

O que os diálogos vem mostrando, até o momento, são provas contundentes de que o então juiz Sergio Moro agia de maneira parcial, e deveria se dar por “suspeito”, porque, segundo o nosso Código do Processo Penal (CPP), ele aconselhou uma das partes.

O CPP é muito claro:

Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes:

I – se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles;

II – se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia;

III – se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes;

IV – se tiver aconselhado qualquer das partes;

Entretanto, as armadilhas políticas que temos à nossa frente são muito perigosas, e isso vai requerer um grau de inteligência e estratégia, por parte da oposição, que receio ainda não temos.

Além disso, a decisão do Intercept de revelar os diálogos a conta gotas não cria dificuldades apenas para o governo e para os nomes diretamente envolvidos, especialmente Sergio Moro. Também complica um pouco o trabalho da oposição, que, sem ter noção do que está por vir, não consegue montar uma estratégia satisfatoriamente assertiva.

Vamos às armadilhas: com os escândalos de corrupção revelados pela Lava Jato ainda muito presentes na memória popular, qualquer iniciativa que pareça, aos olhos da opinião pública, como um movimento hostil à luta contra a corrupção e, mesmo que indiretamente, favorável aos corruptos, tende a ser impopular. Parece claro, óbvio, que o governo de Jair Bolsonaro tentará maximizar essa impressão e colar na esquerda o rótulo de amiga da corrupção e ele, o governo, como o grande inimigo da corrupção.

Paradoxalmente, como vimos na audiência de Moro no Senado, o escândalo da Lava Jato ajuda o governo Bolsonaro a recuperar apoios que andavam dispersos, ou mesmo iniciavam movimentos de independência, de setores sociais importantes que não se identificam com a agenda ultraideológica do governo (loas à ditadura militar, flexibilização do posse de armas, submissão excessiva aos EUA, escola sem partido, guerra à Venezuela), mas que ainda estão presos, inexoravelmente presos, à narrativa lavatista da luta contra a corrupção.

A esquerda, como tem sido sua tradição, comete o erro de avaliar a conjuntura a partir de suas bolhas: a bolha de militantes partidários, a bolha da comunidade jurídica progressista, a bolha da militância internacional. Todas essas bolhas são importantes e, somadas, geram uma pressão mais ou menos forte, a depender do momento e do seu inchaço momentâneo.

Mas se não foram suficientes para interromper um golpe de Estado, no momento em que a esquerda estava no poder, essas bolhas também não serão suficientes para derrubar o ministro Sergio Moro ou o governo Bolsonaro.

As revelações da Folha de hoje trazem outros diálogos entre Sergio Moro e Dallagnol, reforçando ainda mais as acusações de que Moro aconselhava uma das partes (acusação). Juristas da comunidade progressista, ou simplesmente leais à Constituição e ao Código do Processo Penal, irão escrever nova onda de artigos indignados, dar uma série de entrevistas, mas receio que ainda não há nenhuma onda política com força suficiente para causar mais estragos aos já causados à reputação de Moro.

A esta altura, a sociedade brasileira está novamente dividida entre os que apoiam Moro e os que não apoiam. E os eleitores de Bolsonaro estão entre aqueles que apoiam. Enquanto os vazamentos mostrarem apenas conversas entre juiz e procuradores, que revelam a sua parcialidade, e que, num ambiente mais democrático e, digamos, de mais respeito à Constituição, levariam à nulidade imediata de todos os processos que passaram pelas mãos desse juiz e desses procuradores (o que produziria um terremoto político no país, mas que também nos levaria, no médio e longo prazo, a uma conjuntura de mais confiança nas instituições jurídicas e, portanto, ajudaria a estabilizar e pacificar o país), mas ainda não trouxerem evidências mais pornográficas de desonestidade profissional, os eleitores de Bolsonaro, que são a maioria da população, não irão abandonar Sergio Moro.

Como romper este ciclo vicioso?

Só tenho uma resposta: com paciência, estratégia e inteligência, virtudes que, infelizmente, parecem ser muito escassas hoje na oposição, especialmente na oposição de esquerda, que se mostra sempre impaciente, desatinada e sem muito interesse em inteligência. Isso sem falar em suas franjas ostensivamente paranoicas e esquizofrênicas, em que uns acreditam estar o Intercept à serviço do imperialismo e outros que fazem a mesma acusação à lideranças partidárias da própria esquerda.

A paciência é necessária para não se deixar iludir de que será possível “derrubar” o governo ou o ministro Sergio Moro a golpe de análises exageradas, feitas para satisfazer o ego da militância.

Os crimes de Sergio Moro, Dallagnol e da Lava Jato precisam ser denunciados sem sensacionalismo, com linguagem sóbria, ponderada, voltada para fora das bolhas. O objetivo não pode ser “derrubar” o governo Bolsonaro, nem “libertar” Lula, embora estas sejam consequências positivas se a denúncia do Intercept for bem compreendida e assimilada pela opinião pública e pelas instituições jurídicas brasileiras. O objetivo, e para isso servem os conceitos de estratégia e inteligência, deve ser aprimorar o combate à corrupção e dar maior estabilidade jurídica e política ao país, visto que nenhuma nação conseguirá promover o desenvolvimento econômico sob um regime jurídico instável, politizado, em que juízes e procuradores tenham poder de destruir políticos e empresas de que não gostem.

Para isso, a oposição e, sobretudo, a esquerda deveriam oferecer à sociedade a sua própria narrativa de combate à corrupção, com um projeto de governo neste sentido. Não basta ser reativo. Não basta atacar a Lava Jato. A esquerda precisa ser vista como interessada, sobretudo, na geração de empregos e na estabilização econômica do país, o que apenas será possível se o governo Bolsonaro for sucedido por uma administração que tenha compromisso real com um processo de desenvolvimento socialmente sustentável.

Eu tenho considerado a Lava Jato, aqui no Cafezinho, desde que a operação teve início, como uma operação de inteligência sem precedentes na história do Brasil, quiçá do mundo. O nível de destruição que ela promoveu só é comparável com a de invasões militares.

Atacá-la, por isso mesmo, não é trivial. Se o ataque for mal feito, ele se reverte em favor do governo, ou então o sistema (Bolsonaro se vende como antissistema, mas é o representante mais submisso e caricatural dele), se assim achar melhor, descartará Moro e Bolsonaro, mas encontrará outros fantoches parecidos.

Como a Lava Jato conseguiu se instalar na consciência popular como sinônimo da luta contra a corrupção, a melhor maneira de combatê-la, a mais efetiva e consequente, é oferecendo ao país um projeto alternativo contra a corrupção. Aliás foi isso que o PT tentou fazer, ao final de 2013, na tentativa de combater a onda de oposição que se levantou contra o governo a partir das jornadas de junho. Só que a solução do PT foi… reforçar o lavajatismo, ou mesmo criá-lo, através da sanção de leis apressadas, nomeações pouco refletidas para tribunais superiores e, sobretudo, a ausência absoluta de uma estratégia de inteligência, em que fatores como soberania, estado de direito, comunicação social, estivessem no centro do debate da luta contra a corrupção.

É chegado o momento da esquerda liderar um debate sério sobre o combate à corrupção no país, para matar, na raíz, a estratégia do governo Bolsonaro, a única, quiçá a última, que lhe resta, que será empurrar a esquerda para o lado daqueles que são a “favor a corrupção” e “inimigos da Lava Jato”. Para isso, naturalmente, será necessário uma autocrítica, não apenas em relação aos escândalos de corrupção que estouraram em seu governo, mas também em relação à maneira pouco inteligente, reativa, medrosa, para não dizer cúmplice, com que lidou com a Lava Jato, repetindo os erros que já tinha cometido por ocasião do julgamento do mensalão, em que alguns “companheiros”, como Henrique Pizzolato e José Genoíno, para não falar nos publicitários e todos os réus não-petistas, igualmente cidadãos merecedores de julgamento justo, foram tragados pelo fogo de operações midiático-judiciais com pouquíssimo compromisso com fundamentos básicos do Estado Democrático de Direito e do Código do Processo Penal.

Ao invés de festivais de música, a esquerda poderia muito bem organizar um seminário internacional cujo tema principal fosse o combate a corrupção dentro dos marcos do Estado Democrático de Direito. Mas teria de ser um seminário realmente suprapartidário, e mesmo supraideológico, em que o foco fosse o combate à corrupção, porque este é o tema mais popular. Entretanto, o objetivo do seminário seria estabelecer os fundamentos para que a luta contra a corrupção no país se desse sem prejudicar a democracia, sem dar superpoderes a burocracias autoritárias e também corruptas, sem destruir empresas estratégicas. Ou seja, como transformar o combate à corrupção numa política pública integrada às outras grandes estratégias de desenvolvimento nacional, como a luta contra a desigualdade e o esforço para reindustrializar e modernizar a infra-estrutura de nosso país.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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