A crônica de Veríssimo sobre o filme Legalidade

No Estadão

Piratini
Brizola não aceitou o veto ao cunhado e transformou o Palácio Piratini num centro de resistência da legalidade ao golpe

Luis Fernando Verissimo, O Estado de S. Paulo

22 de setembro de 2019 | 03h00

O filme Legalidade, em cartaz, reconstrói com fidelidade os dias agitados que se seguiram à renúncia de Jânio Quadros da presidência da República em 1961. Para quem não se lembra ou não era nascido: Jânio alegou que “forças ocultas” o impediriam de governar – as mesmas “forças ocultas”, deduziu-se, que tinham levado Getulio Vargas ao suicídio – e deu no pé. Pela lei, seu substituto seria o vice-presidente Jango Goulart, que a direita e os militares não aceitavam. Leonel Brizola, então governador do Estado Rio Grande do Sul, com sede no Palácio Piratini, era cunhado de Goulart, eleito vice-presidente com grande votação (independentemente da votação menor do Jânio, naquele tempo era assim). Brizola não aceitou o veto ao cunhado e transformou o Palácio Piratini num centro de resistência da legalidade ao golpe.

Os militares não estavam brincando. Foi dada a ordem de bombardear a sede do governo gaúcho e acabar com a resistência e com o Brizola. Nunca se ficou sabendo se os sargentos da aeronáutica realmente furaram os pneus dos aviões que atacariam o Piratini, partindo da base aérea de Canoas, perto de Porto Alegre, e impossibilitando o ataque. Ou se era verdade que nenhuma das armas que defenderiam o palácio do ataque aéreo tinha munição. O fato é que Brizola também não estava brincando. Até onde iria na defesa da legalidade, não se sabe. Os militares piscaram primeiro. Aceitaram o Jango no poder, mas com muitas condições e pouco poder. Houve um meio golpe, que em 64 se completaria com a queda de Jango e o começo dos 20 anos de arbítrio que o Bolsonaro diz que nunca existiram.

Em 1961 houve outro acontecimento, menor, mas pertinente e talvez decisivo na história daqueles dias. Começou a atuar nos bailes estudantis da cidade o “Renato e seu Sexteto”, do qual eu fazia parte, tocando saxofone. Sabino Loguercio, então estudante de medicina e “crooner” do conjunto, hoje respeitado médico, me lembrou que a ameaça do bombardeio pairava no ar na noite em que nos convidaram para tocar na TV Piratini, cujos estúdios ficavam num dos morros que rodeiam a cidade. Diziam que os pilotos da aeronáutica poderiam ter dificuldade em localizar o Palácio, já que tinham pouca experiência com alvos urbanos, “Olhem só!” – exclamou o Sabino, quando chegamos à TV. Apontava para o grande sinal luminoso que anunciava a presença ali da TV, e guiaria os ataques de pilotos agradecidos. Uma razão forte para tapar o luminoso era que, com os estúdios da TV arrasados, não teríamos onde nos apresentar. Era preciso tapar o luminoso com qualquer coisa, e com urgência. Ajudamos a estender uma faixa sobre o luminoso sem ver o que dizia. Só mais tarde vimos que dizia “Brizola!”

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