Uma análise sobre o artigo de Luciano Huck

Gilberto Maringoni, quadro importante do PSOL, fez um alerta para a esquerda: Luciano Huck está tentando se posicionar como o anti-Bolsonaro. Maringoni baseia esta opinião no artigo que o apresentador de TV publicou na Folha no último dia 5, para o qual pede muita atenção.

Sigamos o conselho do Maringoni e analisemos o escrito.

No antelóquio (acabei de descobrir a existência desta peculiar palavra) do texto, Huck conta a história trágica de Douglas, morador de uma favela do Rio de Janeiro. O apresentador inicia o segundo parágrafo dessa forma: “Estávamos no alto da Favela do Quarenta (…)”, uma evidente tentativa de mostrar-se inserido na periferia e conectado à população marginalizada. É uma estratégia que não surpreende, considerando as incursões de Huck por lugares pobres do Brasil no seu programa semanal, o “Caldeirão do Huck”. Depois de creditar o infortúnio de Douglas à desigualdade social, pauta histórica da esquerda, ele explicita sua estratégia: “Como apresentador de TV, passei as ultimas (sic) duas décadas vendo, ouvindo e compartilhando as histórias de pessoas que vivem em favelas, em regiões remotas e em outras áreas degradadas. Como cidadão ativo e empreendedor social, estive e continuo procurando maneiras de contribuir para dar oportunidades e destravar o potencial de dezenas de milhões de brasileiros em situações de pobreza.”

No parágrafo seguinte, mais apontamentos sobre a desigualdade, com um trecho que poderia ter saído da boca de um membro do Partidão: “(a desigualdade é) legado do desdém cínico de uma elite pelos mais pobres”. Na verdade, um comunista diria “a elite” e não “uma elite”. Descendo algumas linhas no artigo de Huck se entende porque ele usou o artigo “uma”. Reparem na seguinte frase: “No Brasil, os milionários pagamos menos imposto sobre a renda e o patrimônio do que nos países democráticos mais desenvolvidos. Enquanto isso, o modelo impõe uma carga duríssima de impostos indiretos sobre os mais pobres.”
Huck quer se apresentar como integrante de um suposto setor da elite que se importa com os pobres e, naturalmente, se descolar do setor que não se importa. Mesmo sendo um milionário, Huck acha injusto que os milionários paguem proporcionalmente menos imposto que pessoas de baixa renda. O discurso contra o sistema tributário regressivo brasileiro é outra bandeira histórica da esquerda que o apresentador da Globo resolveu balançar.

Avançando no artigo, lê-se que para diminuir a desigualdade são necessários “avanços drásticos na cobertura e na qualidade do sistema público de ensino básico”, mais uma pauta tradicional da esquerda abraçada por Huck. Suas propostas mais concretas, embora ainda um tanto vagas, para a melhoria do ensino público são “investir com mais critério, priorizando o treinamento e a promoção dos professores, ensino da primeira infância, continuidade com qualidade nos ciclos seguintes, valorização do ensino técnico e currículos antenados com o século 21”.

Nada sobre o que talvez seja a grande questão: a atratividade da carreira de professor do ensino básico. Para que tenhamos um ensino público de qualidade é necessário que a carreira dos que ensinam seja atrativa. Se a carreira de professor fosse tão recompensadora quanto a de médico, em termos de salário e status, haveria uma multidão de mentes brilhantes investindo na ideia de dar aulas. Também não há, no texto, nenhuma linha falando sobre mais investimento na estrutura física das escolas (salas de aula, mesas, cadeiras, lousas, computadores modernos, internet de qualidade), outro ponto fundamental para uma melhoria consistente do ensino público — o próprio Huck reconhece a discrepância entre as escolas privadas e as públicas: “Os mais ricos têm o privilégio de pagar por escolas de ponta, enquanto crianças mais pobres, como o Douglas, têm acesso a um aprendizado de menor qualidade(…)”. Na verdade, o articulista é contra a construção e inauguração de prédios novos (!): “Em vez de construir e inaugurar prédios novos, o foco deveria ser investir com mais critério(…)”.

Eis o busílis: o quase-candidato simplesmente não pode defender maior investimento no ensino público. Seu limite é o “investir com mais critério” porque seu programa econômico é o liberal, para o qual investimento público é blasfêmia. O próprio Huck não deixou margem para dúvidas quanto às suas ideias sobre linha econômica ao afirmar para uma plateia de executivos, em setembro do ano passado, que a agenda econômica do governo Bolsonaro é correta. A mesma linha de raciocínio serve para a sua proposta de aperfeiçoamento da rede de proteção social: “Inteligência artificial e tecnologias da informação, além de empenho administrativo”. No essencial — direcionar uma maior parte do orçamento público para a área — Huck não toca.

É blasfêmia.

Um liberal raiz não pode cogitar, por exemplo, uma simples auditoria da dívida pública, que consumiu 40,66% do orçamento do país inteiro em 2018 (fonte: Auditoria Cidadã da Dívida), ou a bagatela de 1,065 trilhão de reais. Para sermos justos, há setores importantes da esquerda que, faz um bom tempo, deixaram de falar sobre esse verdadeiro monstro devorador de orçamentos, como as principais lideranças do Partido dos Trabalhadores. Dilma Rousseff chegou a vetar, no auge das movimentações pró-impeachment, um projeto de lei que determinava a auditoria da dívida e, sabe-se lá como, havia sido aprovado pelo congresso. Vai ver foi o temor da Santa Inquisição do Liberalismo Econômico, que joga na fogueira quem ouse questionar seus dogmas.

Decerto não passa pela cabeça de Luciano Huck enfrentar a Inquisição político-econômica moderna, seja porque concorda com os dogmas liberais, seja porque mesmo que divergisse, não poderia fazê-lo sem perder o apoio de setores importantes da elite econômica para sua empreitada. Por isso suas propostas são esta mixórdia de pautas vinculadas à esquerda, que afinal soam bem para um candidato, com a austeridade insana da direita. O resultado são platitudes como as sugestões de “mais critério” nos investimentos ou “currículos antenados com o século XXI”, quando é evidente que para começar a resolver os problemas do ensino público é dramaticamente necessário mais investimento… público.

Na parte final do texto, Huck afirma que o país precisa de novas lideranças e se coloca como uma alavanca para o seu surgimento, mencionando o Agora e o RenovaBR, respectivamente um “movimento” e uma “escola apartidária para treinar potenciais líderes políticos”. Se sua ambição presidencial é um fato, e tudo indica que é, o apresentador parece estar recrutando um exército de candidatos a cargos eletivos para criar uma base política dentro das instituições suprapartidária. “O Brasil precisa”, afinal, “de uma ampla coalizão política para enfrentar a desigualdade de oportunidades, replicando as boas experiências e as boas práticas, sejam elas da direita ou da esquerda”, escreve Huck. É aquela piada que ficou até manjada nos últimos ano: falou que não é de esquerda nem de direita, já sabemos que é de direita.

Não quero afirmar que todas as práticas da direita são descartáveis — se procurarmos bem devemos achar algo útil à sociedade — mas na dicotomia entre Estado que investe no país e Estado que, como um tesoureiro ranzinza, só propõe cortar gastos, há que se escolher um lado. O malabarismo retórico não tem o poder de materializar as propostas “esquerdistas” de Huck sem aumentar o investimento público.

De qualquer forma, em que pese a facilidade com que se pode desconstruir as ideias de Huck, tem razão de ser a preocupação de Maringoni. É um discurso bem engendrado para seduzir incautos com as ideias fantasiosas de que Huck pode unir o país e acabar com a disputa entre direita e esquerda. A(s) esquerda(s) precisa pensar e discutir suas estratégias para o enfrentamento que se avizinha. Como o presente texto já se estendeu um pouco, deixo esse debate para um próximo.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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