Bolsonaro usa vídeo de governador de NY para inventar nova fake news contra isolamento social

O governador de Nova York, Andrew Cuomo, faz coletivas diárias com a imprensa, para prestar contas das ações de sua administração na luta contra o coronavírus, e responder perguntas de repórteres. Não xinga nenhum jornalista. Não inventa conspirações. Apenas dá informações e estabelece uma comunicação civilizada com a população que paga seu salário.

(Aliás, uma boa resposta que os jornalistas poderiam dar a Bolsonaro, quando eles os insultar, seria lembrá-lo que ele é um servidor público pago com o salário deles, jornalistas; e não é de hoje; Bolsonaro nunca trabalhou no setor privado; seu salário é pago pelos contribuintes desde sempre; assim como os salários de seus filhos).

No dia 6 de maio, Cuomo, como faz todo dia, deu uma coletiva de 44 minutos, onde apresentou as últimas informações sobre o vírus e falou sobre as perspectivas de reabertura da economia.

Os novaiorquinos e seus vizinhos estão, naturalmente, desesperados. São cidades altamente turísticas, que vivem de serviços, que devem ter o maior número de restaurantes, bares, cafés, boates, teatros, lojas, por metro quadrado do mundo inteiro.

Então o governador, apesar das medidas duras de bloqueio econômico tomadas por sua administração, sempre tenta acalmar a população, e apresentar alguma perspectiva de volta da normalidade.

Um dos gráficos mostrados por Cuomo mostra a queda no número de hospitalizações no estado de Nova York.

Essa queda – que só foi possivel em virtude das medidas de isolamento social – é um dos fatores que permitirá ao governo de Nova York decidir pela reabertura do comércio. Mas a curva precisa cair mais, e , sobretudo, os novaiorquinos (e vizinhos) precisam se conscientizar de que, somente com a ajuda de todos, o vírus poderá ser vencido.

“As pessoas precisam voltar a trabalhar, rever seus parentes e amigos, viver suas vidas”, diz o governador.

Para isso, porém, argumenta Cuomo, será preciso que os fatos e os dados sejam valorizados mais que emoções e política.

“Não é uma questão de ser democrata ou republicano. O vírus mata democratas e republicanos. Lide com os fatos. Tome suas decisões com base em informações: número de infectados, mortos, taxa de contaminação, percentual de testes, rastreamento de dados, capacidade hospitalar “, explicou.

Então, ele apresenta uma pesquisa que, segundo ele, teria dados “chocantes”: 66% dos hospitalizados por Covid-19 vieram de “casa”.

A surpresa de Cuomo é uma tolice desculpável, já que ele não podia imaginar a interpretação estúpida que os “amigos do vírus” (vamos chamar assim aos críticos da ciência) dariam aos números.

Se você olhar a pesquisa usada por Cuomo, não há “surpresa” nenhuma. É óbvio que a maioria dos hospitalizados vieram de “casa”.

De onde mais viriam? Da lua? Quase todo mundo mora em… casa (aqui no sentido também de apartamento).

As outras opções são: asilo (nursing home), prisão, sem-teto, abrigos. Como 90% das pessoas, todavia, vivem em “casas” (ou apartamentos), então a maioria vem de… casa.

O contraponto aqui não é entre pessoas que fazem quarentena e as que não fazem. E sim entre aquelas que moram em casas ou apartamentos e as que não moram (abrigos, prisão, rua).

Jair Bolsonaro, o principal amigo do vírus no Brasil, recortou um trecho do vídeo, pôs as legendas, e publicou em suas redes sociais, como prova de que o “distanciamento social” não adianta nada.

A narrativa do presidente é maligna. Sem nenhum tipo de corroboração científica, Bolsonaro tenta apenas insinuar que as pessoas se contaminam mesmo estando em “casa”.

Então para que evitar ficar em casa, não é mesmo? Para que levar a sério os cuidados de distanciamento social?

Só que a pesquisa não diz que as pessoas contraíram o vírus “em casa”.

O próprio governador, logo adiante no vídeo, adverte que não basta ficar “em casa”. É preciso também usar máscaras quando sair para fazer compras, tomar cuidado ao receber visitas, usar gel nas mãos. Em suma, não basta “fingir” que está de quarentena, se não tomar todos os cuidados necessários. A pesquisa é usada para reforçar as medidas preventivas individuais, que estão fora do alcance do governo, e não o contrário!

Os números não significam que isolamento social não adianta, como o amigo do vírus no Brasil, Bolsonaro, sugere, e sim que ele deve ser levado mais à sério!

Ainda na coletiva, Cuomo mostra um gráfico que retrata a desproporção de hospitalizados pertencentes às minorias: negros, latinos, estrangeiros.

Não é preciso ser um gênio para entender – e há diversas reportagens confirmando esse fato – que a contaminação é maior em áreas ou quarteirões mais pobres de Nova York, onde há muita gente morando em pequenos apartamentos, e que, portanto, tem mais dificuldade de praticar isolamento social eficaz.

Ou seja, mais uma prova (uma prova triste, neste caso, mas uma prova) da eficácia do isolamento social.

Cuomo apresenta também um gráfico com a idade dos hospitalizados, onde vemos que a doença está produzindo vítimas em todas as faixas etárias: 39% dos hospitalizados tem menos de 60 anos.

Bolsonaro, mais uma vez, atenta contra a saúde pública. O pior é que ele, com sua campanha de desinformação interminável contra as medidas de distanciamento social, apenas está ajudando a retardar o fim da quarententa!

As medidas de distanciamento social apenas poderão ser relaxadas, como lembrou o governador de Nova York, se houver números favoráveis, como a redução das taxas de hospitalização e contágio, declínio das mortes, etc. Para isso acontecer, é preciso haver, primeiro, medidas duras de restrição.

Entretanto, ficar em casa não basta. Essa é a lição passada por Cuomo. É preciso tomar cuidado MESMO em casa. A preocupação de Cuomo é justamente apressar o fim da quarententa, o que apenas será possível após vencer o vírus, ou pelo menos após um achatamento expressivo da curva de infectados, mortos e hospitalizados.

O vídeo divulgado por Bolsonaro está cortado. Ele não mostra o que vem antes ou depois. Seu objetivo é desinformar e constitui, portanto, um atentado à saúde pública.

O Youtube deveria derrubar esse vídeo. Eu fiz minha parte e o denunciei, clicando em “Report”. Denuncie você também!

Cuomo fala de vários outros temas importantes em sua coletiva. Ele defende que, com base na experiência dramática vivida no combate ao Covid, o sistema de saúde de Nova York deveria ser reformulado, com a criação de um… sistema público e unificado, para que, na “próxima vez”, o estado (e o país) não volte a passar pelos mesmos problemas.

Será preciso criar um sistema de testes e rastreamento, para agora e para o futuro, diz Cuomo.

A organização de uma nova educação pública, com melhor estrutura para aulas à distância, também é discutida pelo governador.

Por fim, Cuomo discorre sobre o uso de novas tecnologias para preparar a “economia do amanhã”, protegendo empregos e renda, tanto para agora como para na eventualidade de uma nova pandemia.

A coletiva mostra uma liderança política usando a ciência, os fatos, a tecnologia, e, sobretudo, a inteligência, para pensar em soluções urgentes e futuras, que não impliquem no sacrifício de nenhuma vida humana, e que prepare a sociedade americana para um mundo novo.

Enquanto isso, aqui no Brasil, o presidente organizou hoje uma “ocupação” ilegal no STF, com um monte de empresários desorientados, que tinha como objetivo pressionar o tribunal a se aliar ao Planalto em sua luta contra a ciência e contra os esforços dos governadores para conter a disseminação do vírus, construir leitos, comprar respiradores e, enfim, reduzir ao máximo o número de vítimas.

O presidente não fala da nova economia digital que emergirá do Covid-19, não fala de educação, não presta contas à sociedade sobre as ações do governo,  não transmite nenhuma segurança à sociedade de que o combate à Covid será feito com inteligência e responsabilidade.

Bolsononaro não faz nada a não ser persistir em sua campanha contra as únicas medidas que podem ajudar a derrotar o vírus.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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