Marcio França X Guilherme Boulos: análise de uma acirrada disputa por uma vaga no 2o turno

Dentre os temas relacionados às eleições em São Paulo, um dos mais interessantes – e um pouco perigoso, para o analista, por expô-lo à fúria dos canceladores – é a disputa entre Guilherme Boulos e Marcio França por uma vaga no segundo turno.

Não é preciso ser um gênio da análise política para desconfiar que a história de “derrotar o fascismo”, ou “varrer o bolsonarismo” perdeu um bocado de força nas eleições paulistas, visto que o candidato de Jair Bolsonaro, Celso Russomano, revela-se, mais uma vez, um pangaré velho, com alguma pegada apenas nos primeiros metros da corrida. Mesmo que, desta vez, Russomano passe a barreira do primeiro turno, chegará exausto politicamente, e será facilmente derrotado no segundo.

Bruno Covas é um prefeito com avaliação razoável, que não pode ser chamado de “fascista” ou mesmo “bolsonarista”. A narrativa para vencê-lo, portanto, precisa ser diferente.

Essa nova dinâmica atrapalha um pouco a narrativa escolhida por Guilherme Boulos, de nacionalizar a campanha. Alguns poderiam afirmar que isso poderia ser previsto desde o início. Mas é preciso recordar dois fatores.

Primeiro, Russomano iniciou a campanha com liderança isolada. No único debate realizado até agora, Russomano não conseguia esconder a satisfação (um tanto pueril, conforme agora se constata) e arrogância diante de sua posição nas pesquisas, a que ele parecia atribuir (equivocadamente) a sua proximidade com Bolsonaro.

Segundo, o mais importante capital de Boulos era ter se tornado, desde o primeiro dia da campanha de segundo turno nas eleições presidenciais de 2018, um campeão político na luta contra Bolsonaro.

Nada mais natural, portanto, que a estratégia Boulos se concentrasse em nacionalizar a campanha para a prefeitura paulistana, mesmo que um analista um pouco mais frio e experiente observasse que a ideia não fosse tão boa, em virtude da necessidade de obter votos também de eleitores de Bolsonaro (visto que o presidente ganhou na cidade com 60% dos votos válidos).

Por outro lado, Bolsonaro aparentemente não tem mais em São Paulo o capital político que tinha em 2018. Ele se desgastou politicamente, sobretudo na classe média. Isso gerou então um brecha para Boulos adotar uma estratégia algo arriscada, mas possível: reunir em torno de si toda a oposição a Bolsonaro, chegar ao segundo turno e, com um discurso fundamentado numa contagiante empolgação juvenil, ganhar as eleições. Os desafios subsequentes, os obstáculos que necessariamente tentariam impedi-lo de fazer uma administração revolucionária da cidade, seriam igualmente arrostados com intensa e constante mobilização popular.

A ideia tem um fundo talvez romântico demais. Mas e daí? Diante da profunda depressão cívica que os últimos anos tem oferecido à classe média progressista, especialmente às suas franjas mais jovens e mais politizadas, desesperadas por uma bandeira, uma esperança, uma possibilidade de superação desse cenário sombrio, um pouco de romantismo talvez seja mesmo necessário!

A estratégia, porém, tem falhas importantes. E apontá-las traz o risco, para o analista, de fazer o papel de um tio chato que revela às crianças que papai noel não existe. A primeira falha é que Bruno Covas, o prefeito, desde sempre com um lugar quase garantido no segundo turno, já tinha se descolado de Bolsonaro há tempos. A polarização da campanha, portanto, não o atinge. Ao contrário, beneficia-o, na medida em que a polarização empurra, em sua direção, todos os eleitores de Bolsonaro que, com uma outra estratégia, poderiam torcer o nariz para um tucano que é visto por muitos como inimigo declarado do presidente. Ao mesmo tempo, como Covas não é bolsonarista, tampouco “fascista”, ele também não tem dificuldade para atrair os votos dos eleitores que não aprovam Bolsonaro, desde aqueles que votaram e se decepcionaram, até aqueles que nunca gostaram nem votaram no presidente.

Aí entra o plano de Marcio França, muito diferente, até mesmo contrário a de Boulos.

França se preocupou em se afastar, desde o início, da estratégia de Boulos. Seu encontro casual com Bolsonaro, no meio da rua, produziu uma verdadeira hecatombe no meio da esquerda, que até hoje o acusa de ter “flertado” com o presidente. A foto do encontro tem sido publicada nas redes, desde então, por militantes de esquerda inflamados, sempre que querem provar que o flerte existiu. Houve uma crise inicial, de fato, que pode ter prejudicado França, apesar dele tê-la neutralizado em boa parte explicando que foi apenas solicitar publicamente, ao presidente da república, que abrisse um espaço num dos aviões da FAB, para levar doações reunidas por ele, França, e sua esposa, às famílias de Beirute prejudicadas pela explosão ocorrida por lá, que destruiu quase metade da capital do Líbano.

Com o tempo, todavia, a acusação de “flerte com Bolsonaro” se diluiu, porque não houve nenhum outro sinal de França. Ao contrário, sua campanha passou a ser vista, cada vez mais, como tendo uma plataforma progressista e social bastante coerente com as propostas do partido do candidato, o PSB, e com a parceria firmada com o PDT, que ocupa o lugar de vice com um quadro ideológico, o sindicalista Antonio Neto.

Se as últimas pesquisas, que mostram o crescimento gradual e firme de França, se consolidarem numa tendência, então a sua estratégia terá se revelado inteligente. Seu encontro com Bolsonaro serviu justamente para dissociá-lo de Guilherme Boulos, ou da imagem de um candidato de esquerda “radical”, o que bloquearia qualquer entrada no eleitorado conservador ou evangélico. Como Boulos vinha com muita força na esquerda, Marcio França seria completamente esmagado caso não conseguisse manter ao menos uma parte desse eleitor conservador. Por outro lado, suas propostas, sua campanha, seu “lugar de fala” como representante de dois partidos sólidos de centro-esquerda, lhe garantiram também uma parte do eleitor progressista.

Hoje, Marcio França tem condições políticas de crescer tanto à esquerda quanto à direita. Segundo o último Datafolha, com pesquisas realizadas entre os dias 3 e 4 de novembro, e cujo relatório completo foi divulgado hoje, França não apenas foi o candidato – dentre os que fazem oposição ao atual prefeito, Bruno Covas – que mais cresceu, subindo três pontos, como, e isso é o principal, se tornou aquele que mais deve receber os votos de Russomano.

Confira a tabela abaixo, divulgada hoje pelo Datafolha: ela mostra que, entre os eleitores de Russomano, 27% poderiam migrar para Covas, 24% para Marcio França, e apenas… 1% para Boulos. Até Jilmar Tatto tem melhores condições de herdar os eleitores de Russomano,  recebendo 3%.

Caso o eleitor de Bruno Covas mude de ideia, e resolva mudar de candidato, o principal herdeiro é… Marcio França, que receberia 24% desses votos, ao passo que apenas 6% iriam para Boulos.

Interessante notar ainda que os próprios eleitores de Boulos, se decidissem mudar de voto, uma maioria de 30% escolheria… França. Apenas 2% dos eleitores de Boulos migrariam para Jilmar Tatto, por exemplo.

Já Boulos não recebe votos de ninguém. Nem mesmo de França. Na verdade, Boulos pode receber parte (25%) dos desgarrados de Jilmar Tatto, mas mesmo assim perde para Bruno Covas e fica bem próximo de França, que recebem, respectivamente, 27% e 19% dos eleitores do candidato do PT.

Essa vulnerabilidade de Boulos justifica a tese  – confirmada já por três pesquisas, Ipespe, Ibope e Datafolha – de que ele teria atingido um “teto”, ao mesmo tempo que pode ser ultrapassado, a qualquer momento, por França, o qual seria o herdeiro natural dos votos de Russomano.

Percebendo o perigo de perder a vaga no segundo turno para França, a campanha de Boulos iniciou ataques mais diretos ao candidato, mas os efeitos disso são muito limitados, porque não devem atrapalhar o principal fluxo de votos que chegam a França, que vem de Russomano, cujo eleitorado não é afetado pelas narrativas excessivamente ideológicas da campanha de Boulos. Ironicamente, podem até acelerar o fluxo de migração de eleitores de Russomano na direção de França, na medida em que ajudam França a se diferenciar de Boulos. Os ataques de Boulos a França martelam na tecla de que “ele não é de esquerda”, mas isso visa antes estancar a sangria, ou perda de eleitores que já estão com Boulos, e que poderiam migrar para França como tentativa de fazer um “voto útil”. Um ou outro eleitor de esquerda, que tenha se decidido a votar em França, talvez mude de ideia, diante dos ataques do PSOL, mas esse movimento não deve ser significativo. O eleitor progressista de França não me parece o tipo que se deixe levar por ataques ou narrativas com esse viés puramente ideológico.

Outro ataque ainda mais inútil a França vem do PT.  Um dos quadros mais influentes do PT paulista, Breno Altman, resumiu a reação do PT ao crescimento de França nas pesquisas: “com Russomano agonizando, a direita pretende evitar que seu voto vá para Boulos ou Tatto. França precisa ser descontruído”.

É curioso acompanhar Altman. Quando havia a sensação de que França não tinha mais chances de chegar ao segundo turno, a hostilidade ao candidato refluiu imediatamente, e ele passou a ser aceito no grupo de “candidatos de centro-esquerda”, em contraposição aos de “esquerda pura”, que seriam os do PSOL e PT. Agora que há possiblidade de Marcio França ultrapassar Boulos e conquistar uma vaga no segundo turno, ele tem de ser “descontruído”.

Um dos argumentos para descontruir Marcio França é sua participação no governo Alckmin, na qualidade de vice-governador. É um bom argumento, que certamente não contribui para o “selo de pureza” que alguns acham que é uma qualidade fundamental para um candidato receber o voto progressista. Por outro lado, é bem possível que uma parte importante do eleitorado não veja dessa maneira, e entenda que a experiência de França junto ao PSDB talvez seja uma excelente qualidade, que lhe ajudará a governar uma cidade onde o PSDB ainda tem tanta força na sociedade, incluindo aí na câmara de veradores. Além do mais, não consta que a posição de vice numa chapa implique em participar integralmente dos valores do titular, pois neste caso teríamos igualmente que qualificar Michel Temer de “petista”, pois foi vice, por dois mandatos, da presidenta Dilma.

Temos falado sobre o crescimento de França e estagnação de Boulos nas pesquisas, então agora vamos tratar de números, concentrando-nos na sondagem mais recente, feita pelo Datafolha.

No próprio resumo do Datafolha, publicado no site do instituto, temos um trecho que trata de Boulos e França:

“(…) O candidato do PSOL passou de 15% para 23% entre quem tem de 25 a 24 anos, aproximando sua preferência nessa faixa à anterior, de 16 a 24 anos, na qual oscilou de 27% para 29%. Nas demais, o desempenho de Boulos cai e fica em 12% na faixa de 35 a 44 anos, em 9% entre quem tem de 45 a 59 anos, e 5% na faixa de 60 anos ou mais. Boulos também recuou entre os mais ricos, de 28% para 21%, mas continua mais competitivo nos segmentos de renda alta e média (também tem 24% na faixa de 5 a 10 salários e 16% entre quem tem renda familiar de 2 a 5 salários) do que entre os mais pobres (8% entre quem tem renda de até 2 salários).

Marcio França avançou com mais intensidade entre eleitores de 35 a 44 anos (de 9% para 16%), além de ter conseguido ganhar pontos em todos os segmentos sociodemográficos.”

Na matéria do G1 sobre a pesquisa, vemos com mais detalhes a variação de Boulos e França nas últimas pequisas.

Elas mostram que Boulos caiu (ou oscilou para baixo) nos seguintes estratos: homens (-1 ponto), eleitores com 35 a 44 anos (- 4 pontos), 45 a 50 anos (-2), mais de 60 anos (-1), com ensino médio (-3), até 2 salários (-1), mais de 10 salários (-7), religião católica (-1), evangélicos (-1), raça/cor preta (-3).

Boulos continuou avançando em alguns estratos, sobretudo entre mais jovens, mais escolarizados e com maior renda. Mas essa alta foi neutralizada pela queda nos setores apontados acima.

Já Marcio França, além de não ter caído em praticamente nenhum segmento, experimentou alta (ou oscilação positiva) nos seguintes: homens (+1 ponto), mulheres (+4), 25 a 34 anos (+2 pontos), 35 a 44 anos (+7), 45 a 50 anos (+1), mais de 60 anos (+5), até ensino fundamental (+4), ensino médio (+4), renda até 2 salários (+3), 2 a 5 salários (+2), 5 a 10 salários (+3), mais de 10 salários (+6), católicos (+2), evangélicos (+5), brancos (+4), pardos (+3), raça/cor preta (+1).

Alguns gráficos bastante ilustrativos:

Conclusão: nas pesquisas a serem divulgadas nos próximos dias, poderemos confirmar se as tendências registradas nesses gráficos irão se consolidar ou se reverter. Como último ponto, acho importante destacar ainda uma outra fragilidade na narrativa da campanha de Guilherme Boulos, que é se concentrar excessivamente na questão de “chegar ao segundo turno”, como se esse fato constituísse, por si, a vitória final. O campo progressista precisa tomar cuidado com esse tipo de mediocridade. Sem deixar de lado os aspectos utópicos de qualquer campanha, sem recair no pragmatismo frio e decadente da velha política, é preciso desenhar estratégias que levem em consideração vitórias no segundo turno, pois em caso contrário estaremos apenas apostando no isolamento político. A classe média educada pode até se satisfazer com essas campanhas românticas, mas as enormes e sofridas periferias das grandes cidades não querem saber de vitórias “simbólicas”. Elas precisam desesperadamente de vitórias reais, urgentes, que signifiquem um pouco de oxigênio para que possam sobreviver, inclusive fisicamente, e continuar lutando por dias melhores.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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