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“Meu Tio José”: a ditadura ainda é uma rica fonte de histórias

Na manhã do dia 30 de maio de 1983, no bairro de Vitória, em Salvador, Bahia, o brasileiro José Sebastião de Moura foi covardemente baleado por pessoas desconhecidas, provavelmente integrantes de um dos esquadrões da morte vinculados à ditadura militar. É muito difícil reviver o espírito do tempo, sobretudo suas emoções. A imprensa tradicional, especialmente […]

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Na manhã do dia 30 de maio de 1983, no bairro de Vitória, em Salvador, Bahia, o brasileiro José Sebastião de Moura foi covardemente baleado por pessoas desconhecidas, provavelmente integrantes de um dos esquadrões da morte vinculados à ditadura militar.

É muito difícil reviver o espírito do tempo, sobretudo suas emoções. A imprensa tradicional, especialmente num país em que ainda havia censura, não costuma ser uma boa fonte.

Essa é uma das grandes qualidades de “Meu Tio José”, animação de 90 minutos do diretor Ducca Rios. Com algumas pinceladas geniais, ele consegue evocar com vivacidade a atmosfera dos últimos dias de um regime decadente e desmoralizado.

Naqueles primeiros anos da década de 80, duas forças contrárias tensionavam o regime.

De um lado, nota-se o ódio surdo de todos os apoiadores da ditadura, que viam os louros da história escorrerem, como água, de suas mãos. Até poucos anos antes, eles eram os vencedores, os triunfantes guardiões da ordem e da pacificação social. Agora, com a ditadura cada vez mais isolada politicamente, eles se sentiam humilhados e vulneráveis e, por isso mesmo, se tornavam frequentemente perigosos e violentos.

Do outro lado, famílias como a de Rios, pertencentes a uma classe média com ideias progressistas e democráticas, olhavam para o futuro com esperanças não apenas maiores, mas ancoradas em avanços reais! A família Rios é a protagonista da animação: suas lembranças, angústias, sofrimentos e esperanças são a tinta que o autor usa para descrever um trecho particularmente doído e complexo da história brasileira. 

A Lei da Anistia fora assinada em 22 de agosto de 1979, e os exilados já tinham quase todos retornado ao Brasil. Um deles era Leonel de Moura Brizola, que pisou novamente nas terras do sabiá em 6 de setembro de 1979, encerrando o mais longo exílio de um político brasileiro.

Entre os exilados que retornavam, estava José Sebastião, o Tio Zé, que voltava de um longo exílio de dez anos, passados a maior parte do tempo na França, e tentava se readaptar a seu país, ajudado por sua família, com quem foi morar. 

Enquanto isso, a agitação democrática não parava de crescer, até que, em 31 de março de 1983, houve a primeira manifestação pública em favor de eleições diretas, realizada no município de Abreu e Lima, região metropolitana de Recife.

O assassinato de Zé Sebastião foi, portanto, o lado negativo daquele período: o brilhante sol que se via nascer no horizonte ainda não havia expulsado todos os demônios criados à sombra do moribundo regime de exceção.

Há algumas semelhanças irônicas entre a primeira metade dos anos 80 e os dias atuais.

Assim como em 1983, é possível sentir hoje a tensão entre forças antidemocráticas em declínio, de um lado, e uma crescente esperança por melhores dias, de outro. Dessa vez não foram 21 anos de regime militar, mas as violências que vimos se avolumar a partir das conspiratas midiático-judiciais da operação Lava Jato (culminando com um impeachment sem crime, a prisão ilegal de um ex-presidente, e a eleição de um sociopata entusiasta da tortura), causaram apreensão a muita gente de que as forças inimigas da democracia haviam encontrado uma maneira diferente, mais sutil, de amordaçar as liberdades conquistadas e impedir novos avanços sociais. 

Não faltaram sequer assassinatos políticos nos últimos anos, como vimos com a vereadora Marielle Franco, morta covardemente em 14 de março de 2018, num crime até hoje não completamente esclarecido. E isso sem falar nas chacinas constantes perpetradas por forças policiais, como a que testemunhamos no Jacarezinho, no dia 6 de maio de 2021.

Em números absolutos, seguramente mata-se hoje mais do que em qualquer outra época da nossa história. Mas assim como nos anos 80, pode-se notar, agora, um cansaço crescente como toda essa violência, e o início de um processo de tomada de consciência sobre a importância de defendermos valores democráticos fundamentais. Sempre soa algo “naïf”, ingênuo, falar em esperança, mas a avassaladora força da mais ingênua esperança nunca deve ser subestimada. 

A animação de Ducca Rios, portanto, chega em bom momento. Para nos alertar, de um lado, e nos dar esperanças, de outro. 

A ascensão ao poder de forças políticas extremistas, conspiratórias e favoráveis ao regime militar nos mostrou, além disso, que ainda temos um longo trabalho para ensinar, às novas gerações, a versão democrática de que aconteceu no Brasil nos anos 60. A função da arte também é essa.  

A qualidade da obra foi atestada há pouco por um acontecimento de grande importância para uma animação: ela foi selecionada para competir no Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy, o maior e mais importante do mundo, que acontecerá entre os dias 14 e 19 de junho!

Nós, do Cafezinho, torcemos muito pelo sucesso dessa obra tão bonita e tão profunda e dolorosamente brasileira!

Quando o filme estiver disponível nas plataformas comerciais, depois que fizer o périplo dos festivais, faremos questão de anunciá-lo aqui. 

Abaixo, o trailer. 

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Comentários

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Paulo

24/05/2021 - 22h11

E de novo a analogia com o futebol. Parece até a simbiose União Soviética e esportes olímpicos…Com todo o respeito ao Tio José, que ele deve merecer…Parece, também, “O Pagador de Promessas”, o drama de Dias Gomes trabalhado por Anselmo Duarte. Com o tempo, o que era novidade se torna clichê. Ponto para Gomes e Duarte…


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