Paulo Ricardo Barbosa: Ciro Gomes erra onde jamais poderia errar

Crédito: Bruno Todeschini / Agencia RBS

Por Paulo Ricardo Barbosa de Lima

Em 28 de abril de 2021 escrevi um artigo intitulado “É hora de repensar, Ciro”, publicado em um site trabalhista. A ideia inicial era escrever três textos para discutir os entraves da candidatura Ciro Gomes, bem como os desafios da retomada da tradição trabalhista no cenário político brasileiro. 

Escrevi apenas o primeiro. Desisti dos demais. 

A vírgula cuidadosamente posicionada no título expressava o espírito da coisa: era hora de Ciro Gomes repensar os rumos de sua estratégia política. Hoje, às vésperas das eleições 2022, penso que a vírgula desapareceu, saiu de cena. Hoje, não é Ciro que deve repensar, são seus eleitores. 

É hora de repensar o próprio Ciro, é hora de repensar se vale a pena seguir com Ciro.

Como mestrando, surfei na empolgante onda que o ex-ministro causou nas Universidades nos anos de 2016 e 2017. Naquela época, Ciro – inteligentíssimo e bem articulado – vociferava contra o golpe branco aplicado pela Lava-Jato e iniciava um importante debate em torno da necessidade de um Projeto Nacional de Desenvolvimento (PND).

Trabalhei, portanto, desde os primórdios pela candidatura de Ciro, pelo ressurgimento do trabalhismo na cena política brasileira e pela renovação política que se aproximava do PDT. O partido de Leonel Brizola parecia respirar novos ares com milhares de jovens universitários atraídos pela possibilidade de pensar o Brasil.

Em 2018 coordenei a primeira campanha eleitoral de Gabriel Cassiano, o jovem e promissor economista que disputou uma vaga de deputado estadual por São Paulo. Em sua primeira campanha, mesmo numa eleição tão adversa, Cassiano obteve 10.338 votos, e Ciro atingiu 16,70% no fundão da zona leste de São Paulo, onde atuamos.

Todavia, aquilo que parecia ser um belo processo de renovação política e partidária não passou de uma ilusão. O partido não conseguiu se renovar, velhos caciques boicotaram o processo, brigas internas e um persistente fisiologismo fizeram com que tudo escorresse por água abaixo. No fim das contas, sobrou Ciro falando para seu próprio público incapaz de furar a bolha, nem mesmo com a ajuda de João Santana.

Ciro tem razão em muitas coisas. 

Ciro tem razão quando acusa o PT de empobrecer o debate intelectual. Ciro tem razão quando aponta a necessidade de um Projeto Nacional de Desenvolvimento articulado com a realidade contemporânea. Ciro tem razão quando critica o tripé macroeconômico. Ciro tem razão quando bate contra o teto de gastos e diz que o PT não rompe com o setor financeiro. Ciro tem razão quando diz que os governos petistas não realizaram reformas estruturais. Ciro tem razão quando diz que a democracia brasileira deve ser energizada por plebiscitos e referendos. 

Ciro tem razão, sobretudo, quando diz que seu PND deve ser concretizado por uma coalizão de centro-esquerda capaz de ditar os rumos da empreitada.

Mas Ciro erra dentro de sua própria razão. 

Foi Lula e não Ciro quem viabilizou essa ampla coalizão. Ou seja, Ciro se ressente de que Lula tenha seguido sua cartilha e conseguido, na prática, o que ele só esboçou na teoria.

Sim, é verdade que o PT agiu pesadamente nos bastidores contra Ciro. Sim, é verdade que o PT se movimentou fechando portas para Ciro. Mas isso não está dentro das regras do jogo? Pois bem, está. 

Ciro hoje grita contra o apoio de Henrique Meirelles a Lula. Tem suas razões. Mas Ciro aceitaria o apoio de Meirelles, assim como procurou o apoio do DEM, de ACM Neto ou de Luciano Bivar. 

Ciro critica o PT pelo vice de Lula ser Alckmin. Mas procurou Alckmin e aceitou com entusiasmo Kátia Abreu como sua vice em 2018.

É a vida. 

Ciro escreveu um belo livro, “Projeto Nacional: O Dever da Esperança”, que merece ser lido e discutido. E é seu próprio livro que sugere habilidade política para viabilizar o complexo conjunto de ideias que defende. Essa habilidade política, porém, na prática foi exercida por Lula, que saindo da cadeia construiu um amplo leque de alianças e mobilizações de base que lhe permitem hoje margear a vitória em primeiro turno. 

Ciro criticou com razão o PT de 2018 que insistiu em Haddad, quando ele, Ciro, encontrava-se em melhor posição nas pesquisas para vencer o inominável. Hoje, a coisa inverteu: as pesquisas apontam que Ciro seria derrotado num eventual segundo turno contra a claque que governa o Brasil. Mas o pau que bateu em Chico, em 2022 parece não bater em Francisco.

Agora, às vésperas de uma eleição contra o campo fascista, Ciro comete o maior erro de sua carreira: erra justamente onde não poderia errar de jeito nenhum.

Caetano Veloso, seu amigo e eleitor histórico, declarou publicamente apoio a Lula nessa semana. Tico Santa Cruz, eleitor convicto de Ciro também. Mas Ciro, intelectualmente brilhante, infelizmente hoje, pensa com o fígado. Criticou os dois artistas ao invés de minimamente escutá-los

Mas isso não é recente. 

Quando escrevi o texto defendendo que Ciro repensasse a sua estratégia política, já havia percebido um certo viés autoritário da coisa, agravado pelos assessores que o cercaram. Um PDT burocratizado, cheio de caciques envelhecidos brigando por espaços internos sem nenhuma conexão com a realidade afastou a possibilidade de renovação política. Na prática, restou um partido sem votos e sem alianças de peso.

É claro que o próprio Ciro já mencionou publicamente que sua tarefa é reerguer o trabalhismo, criando uma corrente de pensamento capaz de influenciar o debate brasileiro. Mas nem isso está claramente posto, visto que tanto o candidato quanto seu partido perderam sustentação popular afastando os novos militantes, além de não conseguir reverter boas ideias em votos concretos. Em 2018, Ciro bateu no famoso teto de 12% e esse ano pode terminar atrás de Simone Tebet, com menos de 5%.

Diante de conjuntura tão adversa, e principalmente diante da seríssima ameaça fascista ao país, um grupo de intelectuais latino-americanos escreveu uma carta pública a Ciro pedindo a renúncia de sua candidatura em nome do país e da democracia. 

Qual foi a resposta de Ciro?

Dizer que Lula e o PT são fascistas igualando mais uma vez a esquerda com Bolsonaro – o que é um completo e total absurdo. Em seguida, lançou uma peça publicitária intitulada “a fábula dos dois ladrões”, sugerindo mais uma vez que Lula e Bolsonaro são iguais, o que é contraditório em relação às antigas declarações do candidato. 

Lula e o PT considerados fascistas, logo, Ciro teria então sido ministro de governos fascistas? 

Para vergonha de Ciro, até o Portal G1 percebeu que enquanto Brizola atacava Lula pela esquerda, Ciro o faz pela direita.

Será que Ciro pretende um PND à direita? à la General Médici? 

Assim fica muito difícil, já que um projeto nacional autoritário é tudo o que rejeitamos, principalmente nós, os periféricos. Não é à toa que mais de 30 filiados ao PDT na região de Itaquera, periferia de São Paulo já estão se mobilizando para romper formalmente com o partido.

O problema central é que enquanto a candidatura Ciro faz água, a postura dele insufla uma turma que é essencialmente autoritária e que está lá encastelada no PDT que se recusou à renovação. Tem de tudo, até militar candidato que fez live com General Heleno para discutir nacionalismo (pasmem!!!) passando por uma garotada alienada que quer ressuscitar Getúlio em retrato preto e branco achando que essa estética ultrapassada vai colar, além de uma turma mais perigosa que deseja perseguir comunista como nos piores tempos do velho Vargas, tirando do bueiro movimentos de cunho integralista

É ruim engolir, mas a realidade é que o “Cirão da Massa” não tem massa nenhuma! E não tem justamente porque escolheu ser mal assessorado pela turma que está lá, agarrada a um partido envelhecido, cheio de egos. 

Perdeu o bonde da história e dificilmente irá reavê-lo. 

A saída mais honrosa seria uma renúncia de candidatura acompanhada de indicação de voto crítico em Lula. Caberia até mesmo uma promessa de oposição a um futuro governo petista. Tal posição marcaria um recuo eleitoral mas um imenso passo político. Um salto, eu diria. 

Claro que o que se espera da campanha petista seria um igual gesto de grandeza. O ideal mesmo seria Ciro 2026 sucessor de Lula, com o PDT na cabeça de chapa. Por mais que publicamente Lula não possa fazê-lo, o que é compreensível dado os problemas da governabilidade, Lula poderia firmar esse compromisso de forma privada, é claro. O PT, por sua vez, em gesto de grandeza poderia firmar compromisso público com pautas do PND de Ciro – o que é plenamente viável.

Hoje, Ciro deseja criar uma corrente de pensamento. Ciro é um homem do pensamento, ele tem prazer na reflexão teórica, mas sabe que não está disputando uma vaga de professor universitário e tem experiência suficiente para saber que seu PND só decola mediante uma ampla frente de apoios. Não seria o tempo de colocar o PND na mesa para que Lula entenda que sua vitória em primeiro turno passa por essa importante aliança?

Mas aí, de fato, pelos sinais da realpolitik esperar tais gestos de Lula e do PT seria esperar demais. Nada disso anula o fato de que Ciro mancha sua biografia ao insistir numa candidatura por pura pirraça, quando tudo aponta para sua inviabilidade. E mancha, sobretudo, porque do outro lado não se encontra um adversário político qualquer, mas o mortal inimigo chamado fascismo – este que deseja nossa aniquilação, inclusive a do campo trabalhista e do próprio PND.

É final de Copa. É o último pênalti e Ciro está se posicionando como R. Baggio em 1994, ou seja, sua tendência é chutar fora, isolar a bola. Não percebe que fazendo isso vai isolar junto com ele o PND, uma real necessidade brasileira. A postura de Ciro hoje definirá seu futuro, o do PDT e do PND. 

Espera-se a vitória de Lula no primeiro turno para se evitar uma crise sem precedentes. Espera-se a vitória de Lula para que Bolsonaro seja riscado do mapa. Um segundo turno hoje, será um balde de água fria capaz de fornecer um impulso para a extrema-direita. O que é pior: colocará em xeque pela primeira vez, o sistema eleitoral brasileiro.

Muita coisa em jogo.

Ciro tem razão ao lembrar a lambança do PT em 2018. Mas, se de fato, Ciro se julga um estadista, fará mesmo a sua própria lambança? Brizola faria isso? Tenho minhas dúvidas.

Seguir com uma candidatura que, na prática, não têm chance alguma de segundo turno, impulsionará indiretamente a extrema direita e ainda abrirá possibilidade real de colapso da credibilidade do sistema eleitoral. Isso não é um erro qualquer. É um erro fatal, justamente onde não se pode errar. 

PAULO RICARDO BARBOSA DE LIMA é advogado, bacharel em direito pela Universidade Mackenzie, mestrando em filosofia política pela Universidade Federal do ABC. Atualmente advoga em São Paulo, Capital.

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