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Indigenistas dão continuidade ao legado de Bruno Pereira

Orlando Possuelo e Carlos Travassos contam como consolidaram a equipe de vigilância de indígenas concebida por Bruno no Vale do Javari. Um ano após crime, eles alertam que continuam a conviver com ameaças. Publicado em 04/06/2023 Por Laís Modelli DW — Em 5 de junho de 2022, o indigenista Orlando Possuelo aguardava o amigo Bruno […]

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Kenzo Tribouillard/ AFP/Getty Images

Orlando Possuelo e Carlos Travassos contam como consolidaram a equipe de vigilância de indígenas concebida por Bruno no Vale do Javari. Um ano após crime, eles alertam que continuam a conviver com ameaças.

Publicado em 04/06/2023

Por Laís Modelli

DW — Em 5 de junho de 2022, o indigenista Orlando Possuelo aguardava o amigo Bruno Pereira na sede da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), em Atalaia do Norte, Amazonas. Juntos, os dois seguiriam viagem para Manaus, onde comprariam equipamentos para realizar a primeira etapa de uma mega expedição pelos limites da Terra Indígena Vale do Javari, um vasto território de mais de 8,5 milhões de hectares.

Bruno nunca chegou ao destino. Ele e o jornalista britânico Dom Phillips acabaram sendo assassinados no meio do caminho por pescadores ilegais da região.

“Precisávamos de alguém com conhecimento técnico em campo e que conhecesse o Vale do Javari para nos apoiar. Procuramos essa pessoa no mundo inteiro e achamos o Carlos”, conta Orlando.

O geógrafo Carlos Travassos, ex-coordenador de Povos Isolados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), trabalhou com Bruno por seis anos.

“O Bruno logo se destacou na turma dos novos servidores. Ele queria trabalhar lá, queria estar na Amazônia, ao contrário da maioria, que logo pediu remoção para outros lugares”, lembra Carlos.

Em 2016, o geógrafo deixou a Funai e Bruno passou a ocupar o cargo de coordenador de povos isolados no Vale do Javari. Na época, Carlos não imaginava que retornaria à região em 2022, mas dessa vez seria ele quem daria continuidade ao trabalho do amigo.

Neste um ano que marca o assassinato de Bruno e o retorno de Carlos ao Vale do Javari, o trabalho do indigenista não parou naquele 5 de junho de 2022: além de ter sido consolidada a Equipe de Vigilantes da Univaja (EVU), – um grupo de 30 indígenas treinados por Carlos, Orlando e Fabrício Amorim para mapear e monitorar o território contra invasores -, a EVU terá a inclusão das primeiras mulheres indígenas, que serão treinadas na floresta ainda este mês.

Apesar das conquistas, o clima de insegurança e ameaças persiste na região e Orlando também sofre com ameaças de morte.

Confira a entrevista com Carlos Travassos e Orlando Possuelo abaixo.

DW Brasil: Orlando, você e o Bruno foram parceiros de trabalho até o assassinato dele. Quando recebeu a notícia do crime, passou pela sua cabeça que poderia ter sido com você?

Orlando Possuelo: No ano passado, o Bruno recebeu uma carta com ameaças dos pescadores ilegais, onde também citam o meu nome. Essa tinha sido a ameaça mais direta, mas já teve de tudo o que você possa imaginar antes do assassinato. Tivemos uma briga na praça, em Atalaia do Norte, com esses pescadores, que falaram coisas do tipo ‘vou dar um tiro na sua cara’. Todas essas ameaças estão em boletins de ocorrência.

Quantos boletins de ocorrência você já registrou em Atalaia do Norte?

Orlando: Nos últimos dois anos, fiz uns oito boletins de ocorrência. O último foi em dezembro, quando me avisaram que três pistoleiros estavam em Atalaia do Norte para me matar. Prestei depoimento na Polícia Federal na época e saí da cidade por um tempo, mas, que eu saiba, nada foi feito em termos de proteção.

Pouco antes da morte de Bruno, a Univaja tinha um projeto gigantesco de refazer as trilhas que marcam os limites da terra indígena. Como está o projeto?

Orlando: No dia em que ocorreu o crime, estávamos aguardando o Bruno chegar na Univaja para viajarmos até Manaus e comprar o que seria usado para realizar a primeira etapa desse projeto…

É um projeto que vinha sendo planejado desde 2019, de refazer a demarcação física da terra indígena, uma trilha de 410 km de extensão, igual ao que foi desenhado no mapa com a homologação [processo final quando um território indígena é reconhecido pela Funai]. Você literalmente abre um caminho na floresta, com marcos a cada 1 km, para mostrar os limites da terra indígena.

Isso havia sido feito há mais de 20 anos, mas a selva engoliu a demarcação e alguém precisava refazer o caminho. O Bruno ajudou no planejamento desse projeto, fez a logística das expedições que precisaríamos realizar pelo território. Com a morte dele, não conseguiríamos realizar as expedições. Precisávamos de alguém com conhecimento técnico em campo e que conhecesse o Vale do Javari para nos apoiar. Procuramos essa pessoa no mundo inteiro e achamos o Carlos.

Nesse um ano, já fizemos a limpeza de 200 km de trilha, fazendo também o trabalho de mapeamento da terra indígena, com georreferenciamento. Os indígenas da Univaja fazem todo o trabalho com a gente. Então o projeto também se tornou um trabalho social, pois promove o intercâmbio entre os indígenas, levando-os de uma região para conhecer outras dentro do território, alcançando pontos mais distantes e de difícil acesso.

Carlos e Orlando com indígenas da Univaja nos trabalhos de sobrevoo na TI Vale do Javari.Foto: Privat

Carlos, você e Bruno se tornaram amigos enquanto eram servidores da Funai. Como ele era enquanto servidor público?

Carlos Travassos: Quando o Bruno entrou na Funai, em 2010, eu era coordenador em Brasília. Fazia 24 anos que não tinha concurso público para o órgão. O Bruno logo se destacou na turma dos novos servidores. Ele queria trabalhar lá, queria estar na Amazônia, ao contrário da maioria, que logo pediu remoção para outros lugares. O Bruno era um cara diferenciado, era apaixonado pela Amazônia. A gente já sabia naquela época que ele seria um amigo para ficar.

Qual o tamanho da equipe da Univaja?

Orlando: Somos em três não indígenas [o terceiro é o indigenista Fabrício Amorim] e mais todos os indígenas do Vale do Javari, pois todos fazem parte da Univaja. Então, podemos dizer que somos uma equipe de 6,5 mil pessoas (risos). Na equipe de vigilância da Univaja (EVU), especificamente, são 30 indígenas e nós indigenistas.

Há mulheres indígenas na equipe de vigilância da Univaja (EVU)?

No primeiro curso de formação de vigilantes indígenas, nenhuma mulher se apresentou. Depois, elas nos procuraram e disseram que não sabiam que podiam participar. Por isso, este mês teremos a primeira turma de treinamento de mulheres indígenas na EVU. Como a ideia é que o grupo de vigilantes tenha uma formação continuada, vamos abrir um treinamento só com essas mulheres, treiná-las desde o início, para depois inseri-las na EVU e todos ficarem alinhados, terem o mesmo treinamento.

Como é o curso de formação da EVU?

Carlos: Na verdade, é um teste e um curso ao mesmo tempo, porque é um treinamento super puxado, com aulas de sobrevivência na selva, atendimento pré-hospitalar e remoção, utilização de GPS para mapear o território, registro de informação de campo, organização de expedição, planejamento, protocolos de segurança etc. Também avaliamos disciplina e assiduidade. Ao mesmo tempo que é um treinamento rigoroso, temos que ter muita sensibilidade para passar esses conteúdos aos indígenas. São diferentes povos no mesmo território [Marubo, Matsés, Matís, Kanamari, Kulina, além dos grupos de isolados], cinco línguas diferentes, e os indígenas sabem muito sobre a floresta, eles têm muito conhecimento adquirido.

Orlando: Também cobramos algumas habilidades necessárias para o trabalho em campo, como a limpeza das picadas [trilha] nos limites da demarcação. Para chegar nesses locais, temos que fazer expedições. É aí que temos uma carência em pessoas que saibam fazer a logística de uma expedição, que saibam guiar um grupo em selva e que saibam fazer a navegação. Também são habilidades que requerem muito esforço. Tem que caminhar no meio da mata carregando mochila, equipamento.

Como vocês mantêm a comunicação dentro do território com as equipes de vigilância?

Orlando: Tem o sistema de radiofonia, mas agora temos a internet via satélite, bem mais acessível. Para conseguirmos fazer o monitoramento de um território tão vasto, precisamos de tecnologia, precisamos de internet.

Quando foi o primeiro contato de vocês com o Vale do Javari?

Carlos: Trabalhei no Javari pela Funai de 2007 a 2009 e, depois, de 2011 a 2016, como coordenador geral de Povos Isolados. Nessa época, a Univaja já era uma das principais frentes de proteção no Vale do Javari. Quando saí da Funai, continuei em contato com o Javari por meio do Bruno e do Beto Marubo [uma das principais lideranças indígenas da região; ele deu uma entrevista à DW Brasil quando os crimes haviam completado 6 meses]. Retornei para cá logo após a morte do Bruno para dar continuidade ao seu trabalho na Univaja.

Orlando: Conheci o Vale do Javari quando era adolescente, em 1998, e entrei em contato com o movimento indígena*. Em 2004, trabalhei no Javari com a Funai, até que, em 2019, me mudei para Atalaia do Norte para trabalhar na Univaja. Pouco depois, o Bruno foi exonerado** e pediu licença da Funai, e nós o convidamos para trabalhar na Univaja.

* Orlando participou de expedições pelo Vale do Javari com dezenas de indígenas e ribeirinhos liderados pelo seu pai, Sydnei Possuelo, um dos indigenistas mais importantes da história da Funai. Nessa época, Orlando conheceu o pescador local Amarildo Costa de Oliveira, o “Pelado”, que vinte anos depois viria a se tornar o assassino de Bruno.

** Bruno foi exonerado do seu cargo em 2019, 15 dias após comandar uma operação contra o garimpo na TI Vale do Javari.

Como vocês avaliam o trabalho da Funai dentro do Vale do Javari em 2023?

Orlando: Lentamente, estamos construindo um diálogo, já estamos elaborando uma parceria com a Funai, algo que nunca tinha acontecido desde 2019, mas ainda esperamos mudanças da Funai na região. Houve mudanças na gestão do órgão, mas, nas operações em campo, ainda não vimos algo mudar. Igual o Carlos costuma falar, a Funai esteve doente no governo Bolsonaro e agora está se recuperando, mas o processo pode demorar. Sabemos que é um processo complicado, mas estamos aqui, esperando a Funai se recuperar para trabalhar com a gente na ponta.

Carlos: A alta cúpula da Funai mudou. Eles são acessíveis e têm dialogado com o movimento indígena, mas temos que considerar uma cadeia de servidores que entraram na Funai nos últimos anos, durante os governos de Michel Temer e Bolsonaro, e pegaram uma gestão com pessoas muito despreparadas, sem conhecimento técnico. São servidores que receberam orientações muito ruins desde o início e aprenderam o trabalho em campo de maneira errada. Estamos apreensivos com essa parte de servidores no Vale do Javari, pensando qual vai ser a reação deles com a mudança de pensamento e de orientações institucionais da nova gestão da Funai.

Como estão os conflitos na TI Vale do Javari atualmente?

Orlando: Além dos problemas com pesca e caça ilegal, a região leste da terra indígena tem garimpo, e sabemos que esses garimpeiros estão migrando dentro do território. Enquanto isso, a região sul está cada vez mais próxima das cidades. As estradas estão cada vez mais perto. Isso vai trazer invasões, então já sabemos que ali estarão os futuros problemas e conflitos do território.

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