Menu

A geopolítica da soja

A importância estratégica do agronegócio nas relações internacionais do Brasil. João Campos, novo presidente nacional do PSB e prefeito do Recife, defendeu em entrevista à Folha de S.Paulo uma estratégia política de aproximação com três setores específicos: evangélicos, autônomos e agronegócio. “O mundo ideal é puxar o centro para perto e não jogá-lo para a […]

1 comentário
Apoie o Cafezinho
Siga-nos no Siga-nos no Google News
Divulgação

A importância estratégica do agronegócio nas relações internacionais do Brasil.

João Campos, novo presidente nacional do PSB e prefeito do Recife, defendeu em entrevista à Folha de S.Paulo uma estratégia política de aproximação com três setores específicos: evangélicos, autônomos e agronegócio. “O mundo ideal é puxar o centro para perto e não jogá-lo para a direita”, declarou o político pernambucano.

Os comentários sobre evangélicos e trabalhadores autônomos serão analisados em outra oportunidade. Neste artigo, vamos nos deter sobre a menção ao agronegócio.

O raciocínio de João Campos é válido, e para que essa estratégia funcione, é importante oferecer uma contribuição sobre como a esquerda pode se relacionar com esse setor de forma inteligente e construtiva.

Seria uma pena se o esquerdismo sectário atrapalhasse a chance histórica de o Brasil esmagar a extrema-direita e o golpismo, e acelerar seu desenvolvimento.

A melhor forma de construir essa aliança é através da informação: compreender verdadeiramente o significado do agronegócio para a economia nacional e para a própria vida brasileira. O termo carrega uma semântica política que frequentemente gera preconceitos. A própria palavra, com seu sufixo “negócio”, acaba criando uma associação automática com aspectos puramente capitalistas, gerando resistências que esquecem uma questão fundamental: sem agricultura, não há comida. O segundo equívoco é imaginar que o setor seja composto exclusivamente por grandes produtores, e o terceiro é nutrir preconceitos injustificados contra esses mesmos empresários rurais.

Os números da soja no Brasil em 2024 revelam a dimensão gigantesca deste setor na economia nacional. A cadeia produtiva da soja gerou R$ 650,4 bilhões, representando 5,5% de todo o PIB brasileiro e sustentando diretamente 2,26 milhões de trabalhadores. Nas exportações, a soja e seus derivados foram responsáveis por 15,5% de tudo o que o Brasil vendeu ao exterior.

Não comemos PIB – mas comemos soja. Ela está no leite das nossas crianças, na proteína que sustenta nossas famílias, na base alimentar que permite a existência da vida urbana moderna.

A oleaginosa é a base proteica alimentar do Brasil, da China, dos Estados Unidos e de praticamente todo o planeta. O agronegócio brasileiro sozinho alimenta cerca de 800 milhões de pessoas no mundo, sendo a soja responsável por uma parcela significativa desta capacidade alimentar.

É fundamental desmistificar outro preconceito: a oleaginosa brasileira não é produzida por dois ou três grandes empresários. São mais de 236.000 produtores espalhados pelo país, sendo que 73% dos estabelecimentos produtores possuem menos de 50 hectares, caracterizando-se como pequenas propriedades. Dados da Embrapa revelam que no Paraná, 22% da produção total de soja vem dos pequenos agricultores; em Santa Catarina, 33%; e no Rio Grande do Sul, 20%. Embora a agricultura familiar represente apenas 9% da produção total nacional de soja (em função da forte concentração fundiária do setor), sua participação é significativa em termos de número de produtores e importância social.

O Brasil como potência mundial da soja

O Brasil conquistou uma posição única no cenário mundial da soja, transformando-se no maior exportador global da oleaginosa e superando os Estados Unidos. Entre 2015 e 2025 (segundo previsão do USDA, agência agrícola do governo dos EUA), a produção brasileira saltou de 95,7 milhões de toneladas para 175,0 milhões de toneladas, um crescimento de 83%. No mesmo período, as exportações brasileiras cresceram de 54,4 milhões de toneladas para 112,0 milhões de toneladas, um aumento de 106%. Em contraste, os Estados Unidos, que em 2015 produziam 106,9 milhões de toneladas, devem chegar a 2025 com apenas 118,1 milhões de toneladas (estimativa do governo americano), um crescimento de apenas 11%.

Esta revolução brasileira tem suas raízes no trabalho científico desenvolvido pela Embrapa a partir dos anos 1970. O Brasil realizou um feito inédito na história da agricultura mundial: adaptou uma planta originalmente cultivada em regiões de clima temperado às condições ambientais do país. A soja, tradicionalmente semeada entre as latitudes 35° e 55° norte, passou a ser viável também nas faixas equatoriais e subtropicais, graças ao esforço dos pesquisadores brasileiros.

O Brasil desenvolveu uma vantagem competitiva única: enquanto o hemisfério norte está na entressafra, o Brasil está colhendo, garantindo fornecimento constante ao mercado mundial. Esta complementaridade sazonal transformou o país no principal fornecedor de segurança alimentar global, especialmente para a China, que importa mais de 100 milhões de toneladas de soja anualmente.

A proteína perfeita: o segredo dos aminoácidos essenciais

A soja é o único vegetal que contém todos os nove aminoácidos essenciais em proporções adequadas para a nutrição humana. As proteínas são compostas por 20 aminoácidos diferentes, dos quais 9 são considerados “essenciais” porque o corpo humano não consegue produzi-los sozinho. Enquanto a maioria das proteínas vegetais é considerada “incompleta” por carecer de um ou mais aminoácidos essenciais, a soja representa uma exceção notável, recebendo a pontuação máxima em qualidade proteica. Esta pontuação coloca a proteína de soja no mesmo patamar das proteínas animais consideradas “completas”, como carne, ovos e leite.

Autoestima nacional e tecnologia agrícola

O Brasil precisa reconhecer e valorizar adequadamente suas conquistas tecnológicas. Vivemos em uma sociedade que frequentemente sofre de um complexo de inferioridade, lamentando não produzir celulares, computadores ou automóveis de última geração. Esta visão distorcida ignora uma verdade fundamental: o Brasil domina tecnologias agrícolas que são tão ou mais complexas do que a produção de inúmeros produtos industriais.

Produzir 3.500 quilos de soja por hectare no Cerrado brasileiro exige o domínio de biotecnologia, genética, química do solo, climatologia, engenharia de precisão e sistemas de informação geográfica – um conjunto de conhecimentos científicos extremamente sofisticado.

A agricultura moderna brasileira incorpora tecnologias que estão na fronteira do conhecimento mundial: tratores autônomos guiados por GPS com precisão centimétrica, drones equipados com sensores multiespectrais, sistemas de aplicação variável que ajustam automaticamente a quantidade de sementes, fertilizantes e defensivos conforme as características específicas de cada metro quadrado do campo.

O Brasil desenvolveu e aperfeiçoou uma técnica agrícola que revolucionou a agricultura mundial: o sistema de plantio direto. Para entender sua importância, é preciso saber que tradicionalmente os agricultores aravam e revolviam toda a terra antes de plantar, removendo completamente a vegetação anterior. O plantio direto funciona de forma completamente diferente: as sementes são plantadas diretamente sobre os restos da cultura anterior, sem mexer no solo. Esta “cobertura morta” permanente protege a terra da erosão, conserva a umidade, melhora a fertilidade natural e reduz drasticamente o uso de combustível e maquinário. A técnica, hoje adotada mundialmente, permite que o Brasil produza soja de forma mais sustentável e eficiente. A integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), sistema desenvolvido no Brasil e hoje exportado como tecnologia para outros países, representa uma sofisticação de manejo que combina conhecimentos de agronomia, zootecnia, silvicultura, ecologia e economia rural.

A dimensão geopolítica

A posição do Brasil como maior exportador mundial de soja carrega implicações geopolíticas de extraordinária relevância para o futuro nacional. Com os Estados Unidos perdendo sistematicamente participação no mercado global e a China consolidando-se como principal comprador da oleaginosa brasileira, o país se encontra em uma posição estratégica sem precedentes na história de suas relações comerciais internacionais.

Esta nova realidade torna urgente que o campo democrático brasileiro desenvolva uma compreensão estratégica da importância deste setor para a soberania nacional.

O desenvolvimento de uma cultura política que consiga compreender melhor e de maneira mais estratégica esse setor, sobretudo sua importância geopolítica, é essencial para que o país maximize os benefícios desta posição privilegiada. A soja brasileira não é apenas uma commodity agrícola – é um instrumento de poder que pode determinar alianças, influenciar negociações comerciais e fortalecer a posição do Brasil como potência emergente.

A capacidade de alimentar centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo confere ao Brasil um poder de influência que transcende as relações comerciais tradicionais. Em um mundo cada vez mais preocupado com segurança alimentar, o controle sobre a produção e distribuição de proteínas essenciais representa uma forma de soft power que o país ainda não explorou plenamente.

, ,
Apoie o Cafezinho

Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

Mais matérias deste colunista
Siga-nos no Siga-nos no Google News

Comentários

Os comentários aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do site O CAFEZINHO. Todos as mensagens são moderadas. Não serão aceitos comentários com ofensas, com links externos ao site, e em letras maiúsculas. Em casos de ofensas pessoais, preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, denuncie.

Escrever comentário

Escreva seu comentário

Cláudio

04/06/2025 - 08h35

Texto esclarecedor e importante, ampliar o foco sobre o setor.


Leia mais

Recentes

Recentes