Documento acusa ex-presidente de tentar influenciar depoimento do senador Hamilton Mourão no STF
O líder da bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara dos Deputados, deputado federal Lindbergh Farias (PT-RJ), protocolou na última quinta-feira (30) uma representação formal contra o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro junto à Procuradoria-Geral da República (PGR). O documento, obtido com exclusividade por este veículo, solicita investigação criminal por possível obstrução à Justiça , em razão de um telefonema entre Bolsonaro e o senador Hamilton Mourão, ocorrido na véspera do depoimento deste como testemunha no inquérito que apura a existência de uma organização criminosa envolvida na tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
O pedido de providências tem base no artigo 2º, §1º, da Lei nº 12.850/2013, que tipifica penalmente atos destinados a impedir ou embaraçar investigações de infrações penais envolvendo organizações criminosas.
Ligação ocorreu antes de depoimento no STF
No dia 23 de maio de 2025, o senador Hamilton Mourão prestou depoimento ao Supremo Tribunal Federal (STF) como testemunha no referido inquérito. O depoimento foi solicitado pela defesa de Jair Bolsonaro e por generais também investigados no processo.
Na véspera do depoimento, conforme noticiado pela imprensa nacional e confirmado pelo próprio Mourão, Bolsonaro teria ligado diretamente para o senador. Apesar de Mourão classificar a ligação como “genérica”, ele não negou sua ocorrência nem o contexto sensível em que aconteceu.
“A relação entre os envolvidos — ex-presidente e ex-vice-presidente da República, aliados políticos históricos e protagonistas do mesmo governo investigado por tramar contra a democracia — somada à proximidade temporal da ligação e à qualidade da testemunha, revela, no mínimo, a tentativa deliberada de influenciar a versão dos fatos que seria levada ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal”, afirma o texto assinado por Lindbergh Farias.
Acusação: conduta típica de obstrução judicial
Segundo o parlamentar petista, o telefonema configura, em tese, crime de obstrução à Justiça previsto na lei de combate às organizações criminosas. A justificativa está na tentativa de interferência direta na produção probatória, comprometendo a independência do testemunho e violando o dever legal de não interferência.
“A mera tentativa de influenciar a narrativa fática do depoente já configura atuação típica de quem busca desvirtuar o rumo da apuração penal”, diz trecho do documento.
Mesmo sem ameaça explícita, o texto destaca que há “nítido desvio de conduta” por parte de Bolsonaro, especialmente por se tratar de uma figura pública com histórico de condutas consideradas antijurídicas durante as investigações sobre o golpe de 8 de janeiro de 2023.
Risco à lisura do processo
O documento lembra que Bolsonaro é investigado por crimes graves contra o regime democrático, incluindo participação em organização criminosa e incitação à ruptura constitucional. Diante disso, o contato direto com uma testemunha-chave demonstraria disposição de dificultar a reconstrução autônoma da verdade processual.
“A tentativa de interferência junto à testemunha-chave — seu ex-vice — revela nítida disposição de dificultar a reconstrução autônoma da verdade processual.”
Ainda segundo a representação, o simples fato de o telefonema ter ocorrido menos de 24 horas antes do depoimento é grave, pois atinge o princípio da lealdade processual e pode indicar pressão moral ou simbólica sobre o depoente, dada a relação histórica de subordinação política e institucional entre ambos.
Jurisprudência do STF autoriza medidas cautelares
O documento cita precedentes do Supremo Tribunal Federal, como no caso do senador Delcídio do Amaral (Ação Cautelar 4039), em que foi autorizada prisão preventiva para evitar interferência em depoimentos de testemunhas.
“Trata-se de conduta de conteúdo profundamente perturbador não só no plano probatório, mas também no próprio plano da preservação das instituições.”
Com base nisso, Lindbergh Farias pede à PGR que adote medidas cautelares específicas, inclusive com proibição de contato entre Bolsonaro e outras testemunhas arroladas no processo, seja de forma direta ou indireta.
Medidas solicitadas
O deputado requer à PGR:
a) Instauração de procedimento investigativo autônomo ou aditamento aos autos já existentes no STF, com fundamento no art. 2º, §1º, da Lei nº 12.850/2013, para apurar a possível prática de obstrução à Justiça por parte de Jair Bolsonaro;
b) Requisição de registros de chamadas, metadados e eventuais mensagens trocadas entre Bolsonaro e o senador Hamilton Mourão, mediante autorização judicial;
c) Nova oitiva do senador Hamilton Mourão para esclarecer o conteúdo, contexto e possíveis orientações derivadas da ligação recebida;
d) Representação ao Supremo Tribunal Federal para requerer a imposição de medida cautelar diversa da prisão (artigo 319, III, do Código de Processo Penal), com proibição de contato, direto ou indireto, entre Jair Bolsonaro e testemunhas do processo que apura a trama golpista que culminou nos ataques de 8 de janeiro.
Defesa do Estado Democrático de Direito
O texto finaliza reforçando a importância de a PGR agir com firmeza institucional diante de uma denúncia dessa gravidade:
“A sistemática da Lei nº 12.850/2013 reforça a lógica de proteção da investigação penal contra atos de sabotagem e manipulação, especialmente quando o crime investigado é de natureza coletiva, envolvendo múltiplos agentes com poder de articulação institucional.”
“Em um inquérito que investiga a maior trama golpista da história republicana recente, a atuação institucional firme da Procuradoria-Geral da República é imperativa. Qualquer sinalização de tolerância a práticas de embaraço comprometerá a credibilidade do sistema de Justiça e abrirá espaço para impunidade em crimes contra a democracia.”
Próximos passos
Agora, cabe à Procuradoria-Geral da República analisar o conteúdo da representação e decidir se instaura novo procedimento criminal ou encaminha as informações ao Supremo Tribunal Federal, onde tramita o inquérito principal.
Este é mais um capítulo na série de investigações que envolvem o ex-presidente Jair Bolsonaro e figuras centrais de seu governo, num momento em que o país ainda convive com os reflexos dos eventos de 8 de janeiro e as tentativas de desconstrução das instituições democráticas.
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