Sem canais de confiança e com negociadores inexperientes na relação bilateral, as duas maiores potências mundiais caminham para mais um impasse, mesmo com um encontro de cúpula no horizonte
É um roteiro de relacionamento fadado ao fracasso. “Manipulação , gaslighting, obstrução, generalizações excessivas”: o diálogo atual entre os Estados Unidos e a China exibe todas as marcas de uma “relação tóxica e disfuncional”.
Há meses, as duas maiores economias do mundo oscilam perigosamente “entre tréguas temporárias e escaladas explosivas”. A tensão é tanta que os últimos atritos ameaçam comprometer os planos para um encontro crucial entre Donald Trump e Xi Jinping, previsto para uma cúpula multilateral na Coreia do Sul no final de outubro.
Por enquanto, o encontro parece estar de pé. Conversas preparatórias estão agendadas para a Malásia, por volta de 25 de outubro. Ainda assim, nos bastidores de Washington e Pequim, as esperanças de qualquer avanço real são mínimas. A expectativa é, na melhor das hipóteses, mais uma frágil trégua.
O motivo principal não é necessariamente a falta de vontade política, mas algo muito mais fundamental: a completa precariedade dos canais de comunicação.
Durante o primeiro mandato de Trump, a relação, embora caótica, tinha uma porta dos fundos funcional: o “canal Kushner”. Para a frustração de diplomatas de carreira e autoridades de segurança americanas, Trump frequentemente negociava através de um caminho paralelo, operado por seu genro, Jared Kushner, e Cui Tiankai, o então emjovembaixador da China em Washington.
Na época, os críticos na China reclamaram que isso frustrava seus planos. Mas, segundo outras fontes internas da Casa Branca, foi essa tática heterodoxa que “ajudou a pavimentar o caminho” para as duas primeiras cúpulas entre Trump e Xi e, por fim, para o acordo comercial de “fase um” assinado em 2020.
Desta vez, essa porta dos fundos está trancada. Não existem canais paralelos confiáveis.
E as negociações oficiais, a porta da frente, estão atoladas. Lideradas por Scott Bessent, Secretário do Tesouro dos EUA, e pelo vice-primeiro-ministro chinês, He Lifeng, as conversas parecem ter chegado a um impasse após quatro rodadas desde maio. Os dois lados “têm tido dificuldades para chegar a um acordo sobre o resultado das negociações anteriores”, quanto mais para fechar um novo pacto comercial.
A frustração é tanta que Bessent chegou a criticar publicamente o principal assessor de He, chamando-o de “desequilibrado”.
O problema não é falta de calibre. Bessent é um ex-gestor de um grande fundo de hedge; He é um administrador experiente. Ambos “gozam da confiança de seus respectivos chefes”. O que falta é a quilometragem diplomática específica: eles têm “relativamente pouca experiência em negociações com o lado oposto e carecem de um conhecimento profundo dos sistemas políticos e econômicos um do outro”.
Falta a eles, crucialmente, o “entrosamento profissional” que Robert Lighthizer, representante comercial de Trump, desenvolveu com Liu He, o principal conselheiro econômico da China na época.
Com Kushner agora focado em questões do Oriente Médio, houve uma busca frenética por novos intermediários. Alguns dos líderes empresariais mais poderosos do mundo foram cogitados, incluindo Elon Musk (Tesla), Jensen Huang (Nvidia) e Stephen Schwarzman (Blackstone).
Alguns deles podem até ser “capazes de transmitir mensagens entre os dois líderes”. No entanto, nenhum é considerado próximo o suficiente de ambos os lados para servir como um canal confiável para negociações mais amplas.
A própria política interna envenena o poço. Nos EUA, defensores de melhores relações com a China “são frequentemente denunciados como traidores ou comunistas”. Do lado chinês, a extrema concentração de poder nas mãos de Xi tornou os funcionários paranoicos “com a possibilidade de parecerem fracos” em qualquer negociação.
O caos é interno em ambos os lados. Em Pequim, a recente e misteriosa demissão de dois diplomatas com bons contatos em Washington, Qin Gang e Liu Jianchao, só aumentou a apreensão. O atual embaixador chinês não tem as mesmas conexões nos EUA nem a mesma influência sobre Xi. A aposentadoria de Wang Qishan como vice-presidente em 2023 também fechou um canal vital que ele mantinha com magnatas de Wall Street.
Em Washington, a situação é igualmente disfuncional. O Sr. Trump “desmantelou o Conselho de Segurança Nacional (CSN)”, criando uma “escassez de especialistas em China” e dificultando a coordenação entre agências. Além disso, ele não demonstrou interesse em replicar o canal de comunicação direto que existiu entre 2023-2024 (na era Biden) entre o conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan e o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi.
O resultado são os “impulsos contraditórios” do governo, como define Sarah Beran, ex-diretora para a China do CSN. Ao mesmo tempo em que o Departamento de Comércio impõe novas e rigorosas medidas contra Pequim, a Casa Branca pressiona o país “a comprar mais soja e aviões comerciais”.
Beran acrescenta que as divergências públicas sobre o que foi negociado sugerem que as equipes nem sequer “definiram a linguagem das declarações públicas” — um erro básico que impede que funcionários de escalões inferiores deem seguimento às discussões.
Nada ilustra melhor o impasse do que a recente divisão dentro do próprio campo de Trump, especialmente entre os falcões da segurança nacional e os líderes da indústria de tecnologia.
O potencial intermediário pego nesse fogo cruzado foi Jensen Huang, o chefe da Nvidia. Ele se encontrou com Trump diversas vezes este ano e também tem boas conexões na China, onde se reuniu com autoridades, incluindo o próprio He Lifeng.
Seu lobby pareceu dar resultado durante o verão, quando Trump suspendeu restrições à venda de alguns chips de IA da Nvidia para a China.
Mas a lua de mel acabou rápido. Primeiro, a China “ficou assustada com as sugestões” de funcionários da Casa Branca de que o objetivo era torná-la dependente da tecnologia americana. Em setembro, Pequim reagiu e “proibiu suas principais empresas de tecnologia de comprarem chips de IA da Nvidia”.
Para piorar, Huang provocou uma reação furiosa nos EUA após sugerir em uma entrevista que o termo “falcão da China” (usado para descrever críticos ferrenhos de Pequim) era um “símbolo de vergonha”. A resposta de Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, foi imediata: Huang “deveria ir para a prisão”.
Do lado chinês, a confusão sobre com quem falar é total. “A equipe Trump 2.0 é mais um clube de lealistas do que uma unidade coesa, ao contrário da equipe 1.0, que contava com alguns burocratas veteranos e de personalidade forte”, resumiu Da Wei, da Universidade Tsinghua. Segundo ele, é difícil até “identificar quem falava em nome de Trump” entre os defensores de políticas de segurança.
O desespero em Pequim é tanto que eles reativaram recentemente o Sr. Cui, o embaixador aposentado do “canal Kushner”, para “tentar contatar aliados próximos ou familiares do presidente”.
Progressos mínimos, como o acordo de setembro para colocar as operações americanas do TikTok em mãos americanas, ainda são possíveis. O problema fundamental, no entanto, é o choque de estilos diplomáticos.
Como afirma Chris Johnson, ex-analista da CIA, Trump está confiando em seu próprio “magnetismo e habilidades de negociação” para fechar um acordo pessoalmente com Xi. O problema? “Não é assim que os chineses operam”. Xi acredita em procedimentos e dificilmente fará algo “sem uma agenda clara definida com antecedência”.
Sem uma reformulação completa dos canais de comunicação – seja ressuscitando um canal paralelo com Kushner ou forçando Bessent a se apoiar na experiência de diplomatas de carreira – o progresso parece limitado a questões menores. E mesmo que um acordo mais amplo seja milagrosamente alcançado, o risco é que ele se “desfaça rapidamente”.


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