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Cafezinho Literário: A ficção, a verdade e o escritor

O Cafezinho Literário está de volta. Após um período sabático, nossa editoria retorna com uma resenha contundente. Em A ficção, a verdade e o escritor, Gabriela Silva analisa Notas sobre Turíbio Nuñez, escritor caído (BesouroBox), o romance mais recente de Jeférson Assumção. Mais que um estudo, este é um texto que versa sobre – para […]

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Jéferson Assumção
Jéferson Assumção, autor de Notas sobre Turíbio Nuñez, escritor caído

O Cafezinho Literário está de volta. Após um período sabático, nossa editoria retorna com uma resenha contundente.

Em A ficção, a verdade e o escritor, Gabriela Silva analisa Notas sobre Turíbio Nuñez, escritor caído (BesouroBox), o romance mais recente de Jeférson Assumção. Mais que um estudo, este é um texto que versa sobre – para usar palavras da autora – a vida, a escrita e os objetos da escrita.

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Paulliny Gualberto Tort

Editora do Cafezinho Literário

 

A ficção, a verdade e o escritor

Além disso, estou destinado a perder-me, definitivamente, e só um ou outro instante de mim poderá sobreviver no outro.” Borges. O fazedor.

Gabriela Silva*

Em uma narrativa é a personagem que nos faz acreditar no que é dito e vivido dentro da trama. Ela é o cerne de um texto, seja conto ou romance. Quando lemos um livro, mesmo que ele seja muito antigo, que fale de tempos desconhecidos por nós, o movimento da vida de uma personagem, do seu protagonista nos faz querer continuar a leitura, saber mais, ficar mais tempo na companhia daquele sujeito que se torna parte do nosso imaginário.

Turíbio Núñez se tornou uma dessas personagens do meu imaginário. Criação de Jéferson Assumção, Turíbio é o fio condutor das histórias que compõe Notas sobre Turíbio Núñez, escritor caído, publicado pela BesouroBox em 2016. Uma edição bilingue português/espanhol (Turíbio Núñez é argentino, nada mais justo).

Um dia num café em Lisboa, falando sobre a vida, Jéferson me falou do livro novo, da ideia, de quem era Turíbio, da alegria da escrita. Nesse exato momento eu soube que era um grande livro e que eu precisava lê-lo. Além de ser estudiosa de literatura, eu sempre fui fascinada por personagens, por tudo que elas significam. Percebi que Turíbio Núñez significava muito para o seu autor e que assim seria para mim também.

As histórias que formam a obra são diversas e diferentes. Suas diferenças são desde os locais em que se passa, os tempos, as demais personagens e o que Turíbio representa para cada uma dessas personas. O autor é o sujeito que cria e ordena todas as modificações e particularidades que estruturam a vida de uma personagem, seus traços característicos, os episódios de sua vida, seus atos e pensamentos. Jéferson faz isso com maestria (e sabedoria de quem sabe escrever e sabe que efeito quer proporcionar ao leitor): Turíbio oscila de importância, de presença nas histórias contadas.

Já no começo temos a participação de Tabajara Ruas, escritor gaúcho – autor de Netto perde sua alma, ele assina a apresentação de quem é Turíbio. Tabajara firma com Jéferson, com o leitor e com a própria personagem o pacto de ficcionalidade que nos fascina: Turíbio existe, ou existiu. E não são poucas as comprovações ficcionais que ele deixou. Nas dezessete histórias do livro, Jéferson nos apresenta várias narrativas com a presença do escritor, e ele assume as mais diferentes máscaras: garçom, amigo, porteiro, dono de bar num morro do Rio de Janeiro, lembrança amistosa no meio do cenário de uma guerra, ajudante num navio, ex-colega de faculdade num encontro inusitado na praia, pai de família e escritor. Turíbio desdobra-se, multiplica-se, mas não perde a sua essência. É um herói. E por ser um herói é portador das ideias de seu criador, transforma-se de um conjunto de palavras a um individuo com uma vida e um destino a ser cumprido. Turíbio viverá as experiências que irão dialogar com a ideologia do seu autor.

Na mesma conversa lá em Lisboa, num domingo, à tardinha, comentei que eu gosto muito de Bartleby e companhia de Enrique Vila Matas e que esse livro do Jéferson conversava com ele. E conversa e muito. O autor de Notas sobre Turíbio Núñez, escritor caído é filósofo. Para ele nada é em vão, nada na vida passa de uma maneira branca. As coisas, as pessoas, a história, a memória, tudo adquire um significado poderoso, repleto de ideias e de formas de compreensão diferentes a cada nova leitura da vida e do cotidiano. E também da arte. Jéferson não apenas apresenta uma personagem que havia sido escritor, que poderia estar nas mesmas ruas e momento do dia que nós, mas Turíbio representa muitos pensamentos filosóficos e a própria questão da existência e da permanência do que nós somos e no que nos tornamos.

Pelas suas narrativas passam a vida, a escrita e os objetos da escrita; a experiência da vida e suas consequências e influências na vida do escritor; a ditadura e suas marcas na vida de muitas, de tantas pessoas; a loucura, a sexualidade; a frustração com o passado; a epifania e os momentos poéticos da vida que quase param o tempo; a memória que nos permite recuar tanto que conseguimos juntar peças e montar o jogo da nossa própria vida; a literatura e tudo que ela significa; metaficção e verossimilhança; memória; vida e morte. E mais, as personagens que convivem com Turíbio são os mais diversos: homens, mulheres, observadores da vida, filósofos, escritores, soldados, estudantes, e por que não, nós mesmos?

Há tanto nas páginas desse livro, há tudo isso que já comentei e há Heidegger, Sartre, Ortega, Unamuno, Onetti, Cervantes, Borges, vidas de diversas personagens e o destino de uma em particular. E em tudo isso há Jéferson Assumção, um escritor que representa seu tempo, fragmentado para entender tudo que nos forma e delineia; único por nos mostrar que todas essas histórias que combinam a existência de Turíbio são nossas histórias também.

Não entendam Turíbio como um fantasma. Ele é uma possibilidade, como toda personagem bem construída é. É o exercício de um escritor que sabe como provocar o leitor, deixá-lo a pensar sobre a vida, a investigar a percepção humana das coisas.

John Gardner escreve em A Arte da Ficção sobre o jazzing around, que é uma atmosfera, algo que permeia, permanece numa obra. Turíbio e a memória que as personagens tem dele ou o efeito que ele causa em suas vidas é justamente esse movimento de Gardner. Fragmentar uma personagem sem perder em nenhum momento sua natureza original é um trabalho difícil. E Jéferson faz isso. Deixa Turíbio para o leitores, não o segura para si mesmo, mas também não o abandona. E ele é o fio condutor de cada narrativa, esses fragmentos de Turíbio formam o conjunto de contos que lemos como um mapa, uma galeria das máscaras do protagonista.

São essas pessoas, esses escritores que me tornaram estudiosa de literatura, me fascina ao extremo o modo como um ser humano consegue dar vida, imaginar mundos ficcionais, histórias, entrelaçamentos com o mundo real. Jéferson faz isso tão bem que chego a pensar que eu mesma tenha já encontrado Turíbio Núñez em algum café do centro de Porto Alegre.

Jéferson tem outras histórias (que confesso, já li e gosto de todas, mas o Turíbio me inquieta como personagem), é autor de histórias em que a filosofia e o prazer de contar uma boa história andam juntos. Nossa conversa em Lisboa ainda não terminou, ela continua, mas uma pergunta minha foi respondida por Jéferson de uma maneira que me fez gostar do livro antes mesmo de o ler. Perguntei: – Ok, mas ele existiu, ou é ficção? Com um sorriso, o escritor me respondeu: – Talvez seja.

E o que não é Jéferson? Eu sei que ainda vou encontrar Turíbio ou os vestígios dele. Até lá, eu continuarei a reler o livro, porque alguma pista tem que haver.

* Doutora em Teoria da Literatura pela PUC-RS

 

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Paulliny Gualberto Tort

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