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Nepomuceno: a traição de Ortega

Na Carta Maior Daniel Ortega: uma história de traição Um traidor é e sempre será um traidor. Mas há traidores de pior categoria. José Daniel Ortega Saavedra pertence, com méritos, a essa espécie Por Eric Nepomuceno 13/06/2018 15:44 O dia 24 de janeiro de 1980 foi uma quinta-feira. Nesse dia, viajei pela primeira vez à […]

16 comentários
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Na Carta Maior

Daniel Ortega: uma história de traição

Um traidor é e sempre será um traidor. Mas há traidores de pior categoria. José Daniel Ortega Saavedra pertence, com méritos, a essa espécie

Por Eric Nepomuceno
13/06/2018 15:44

O dia 24 de janeiro de 1980 foi uma quinta-feira. Nesse dia, viajei pela primeira vez à Nicarágua sandinista. A revolução que derrubou Anastasio Somoza estava no poder a exatos seis meses e cinco dias.

Tive contato com o único civil que formava parte da Junta de Governo naquele então, o escritor Sergio Ramírez, uma amizade que permaneceu intacta e próxima ao longo de todos estes anos.

Os outros quatro membros vinham da guerrilha que liquidou a dinastia que, durante décadas, saqueou e sufocou aquele belo e ensanguentado país.

Nos nove anos seguintes, meus laços com a Revolução Sandinista se fortaleceram em cada uma das muitas visitas. Eram meus anos jovens, e nós, estrangeiros que defendíamos e apoiávamos a Revolução, tivemos bastante contato com vários dos integrantes do governo. Alguns mais expansivos, outros menos.

Daniel Ortega parecia um homem fechado, de olhar desconfiado, que me comoveu uma única vez, em 1986, quando me falou de seu irmão Camilo, morto em combate com as forças do ditador Somoza, e contou que entre os 15 aos 34 anos ele jamais teve casa: viveu na clandestinidade. Ao ouvi-lo contar que havia vivido clandestino durante mais da metade da sua vida até o triunfo da Revolução, pela primeira e única vez senti algo de humano naquela figura de pedra.

Nosso último encontro foi no Rio de Janeiro, em 1990, numa reunião com artistas e intelectuais, meses depois de sua derrota eleitoral para Violeta Chamorro.

Em meados do ano seguinte, me falaram pela primeira vez sobre a “piñata sandinista”, um saque generalizado, com a ferocidade de abutres. A imagem da piñata – um jogo infantil comum no México e na América Central, que consiste em vendar os olhos da criança e lhe dar um bastão para que golpeie um boneco de papel ou cartolina, pendurado numa corda, até destruí-lo, liberando como recompensa uma cascata de balas e chocolates escondida em seu interior – ficou gravada na minha memória, como um insulto à Revolução, aos que morreram por ela, aos que acreditaram nela.

Tarde muito tempo em aceitar como verdade o que verdade era.

Anos depois, soube mais: que, na verdade, a piñata havia ocorrido ainda antes, quando a Revolução ainda existia e os nicaraguenses mantinham aquele fogo de esperança, enquanto seu país era sufocado por Ronald Reagan por fora, e pelos traidores da Revolução por dentro.

Soube que, por exemplo, o mítico Tomás Borge, último sobrevivente do quinteto que fundou a Frente Sandinista, em 1961, e em cuja casa me hospedei várias vezes – ele gostava de ser amigo de escritores, tanto que a mesma casa recebeu Eduardo Galeano, Jorge Enrique Adoum, Eduardo Heras León, Julio Cortázar e Mario Benedetti – havia sido beneficiado pela piñata antes mesmo da derrota eleitoral de 1990.

Recordo as muitas vezes em que o comandante nos levou – eu, Galeano, Adoum e Benedetti – ao que chamava de “minha churrascaria”, como quando digo eu quando recebo amigos no Rio e os levo ao “meu restaurante”. A diferença é que aquela churrascaria efetivamente pertencia a Tomás Borge, e eu, dos “meus restaurantes”, só tinha a presença.

Também descobri que, ao confiscar propriedades de milionários somozistas e distribui-las a órgãos do Estado, Daniel Ortega reservou para si uma importante quantidade de imóveis em Manágua. Muitas das “casas de protocolo”, reservadas a visitantes estrangeiros, localizadas no luxuoso bairro de Las Colinas, no sul da cidade, eram na verdade propriedades de Daniel Ortega. Então, pensei se nós, escritores que apoiávamos a Revolução, não havíamos sido hóspedes dele e não do governo.

A Revolução Sandinista foi a última da minha geração, e talvez a última da história seguindo esse modelo. Em muitos momentos, senti, sentíamos, que os sandinistas conduziam os nicaraguenses a algo muito próximo de realizar sonhos impossíveis, de tocar o céu com as mãos. Guardarei para sempre, no melhor lugar da minha memória, alguns momentos vividos naqueles anos de esperança, que pareciam ser de uma luminosidade absoluta.

Finalmente, a Revolução que poderia ter sido (e que em vários momentos foi) viva e formosa, acabou sendo traída de forma vil, imperdoável.

Aquela esperança que derrotou a dinastia dos Somoza foi sucedida por outra dinastia, igualmente perversa, abusadora: a dinastia de Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo.

Recentemente, faleceu o cardeal Miguel Obando y Bravo, que foi bispo de Manágua e um inimigo feroz daquele processo, em claríssima aliança com os somozistas derrotados e com os latifundiários e o empresariado que se opunha aos sandinistas – e que se revelou mais que um crítico impecável, um costumaz manipulados da verdade.

A certa altura da guerra aberta entre os grupos chamados “contra”, patrocinados por Washington, e o governo dos sandinistas, Miguel Obando y Bravo chegou a ser nomeado integrante do “governo no exilio”, anunciado pelos que arremetiam contra Daniel Ortega e seus companheiros. Do alto do seu púlpito, foi o mais eficaz porta-voz da contrarrevolução.

Mas depois de tanto tempo, Obando se transformou em um muito fiel aliado do mesmo Ortega, esse que se instalou no governo apoiado pela direita mais feroz e pelo empresariado mais mesquinho. E que, desde 2006, se elege e reelege em eleições claramente manipuladas.

Este é o Daniel que encabeça hoje uma nova dinastia, a dinastia de um casal que mata e trucida jovens estudantes como era o seu irmão Camilo quando foi assassinado pela dinastia anterior, a dos Somoza.

Desde abril, jovens nicaraguenses, todos ou quase todos nascidos depois do final daquela Revolução que deixou de ser, são mortos por um governo isolado e que carece de qualquer vestígio de legitimidade.

Um traidor é e sempre será um traidor.

Mas há traidores de pior categoria.

José Daniel Ortega Saavedra pertence, com méritos, a essa espécie.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Comentários

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euclides de oliveira pinto neto

07/07/2018 - 13h14

Acho muito estranho os comentários sobre o Daniel Ortega. Mas acredito que deve haver alguma coisa não explicada no contexto.
Ortega foi eleito em dezembro de 2016, com mais de 72% dos votos !!! A Nicarágua produz 90% dos alimentos que consome. A economia cresce mais de 4% ao ano há muitos anos, mesmo na época da depressão, iniciada em 2008/9. As “revoluções populares” começaram quando o Governo propôs uma alteração no custeio da Previdência, projetando uma majoração nos encargos previdenciários, a fim de atender às despesas com as pensões de inativos. A “revolução” foi inciada numa Universidade, que não seria o local mais adequado, e espalhou-se pelo país, com manifestações contrárias. O Governo retirou o projeto, entretanto as “manifestações contrárias” se intensificaram, com ataques a prédios públicos e ônibus, agora exigindo novas eleições e a renúncia de Ortega !!! Ou seja, este roteiro segue os ditames da nova política de desestabilização de governos, promovida pela CIA com apoio de ONGs e utilizada há algum tempo nos países do Oriente Médio (Iraque, Iran, Libia, Siria), Norte da África (Egito) e América do Sul (Argentina, Uruguai, Paraguai, Venezuela, Brasil, Chile)…será coincidência ??

    Ari

    08/07/2018 - 09h58

    Realmente tenho visto análises bem diversas desta matéria, todas de fontes confiáveis

Rogerio Faria

07/07/2018 - 06h37

Uma revolução só tem sucesso quando tem dia para começar e dia para terminar. Quando fica ligada umbilicalmente ao poder se corrompe e se deslegitima diante ao povo.
A história é carregada de eventos desta natureza.
Ainda assim, as revoluções são necessárias.

Mordaz

06/07/2018 - 19h10

Comparar Ortega com Somoza é muito baixo. Esse artigo está sintonizado com a atual campanha de desestabilização da Nicarágua. Não é possível que o Miguel do Rosário esteja alheio a isso.

    Miguel do Rosário

    07/07/2018 - 07h24

    Não estou alheio, mas confesso que estou partindo do zero na questão da Nicarágua. Queria lançar o debate.

      luiz-sc

      08/07/2018 - 17h31

      Miguel, há muito, foi cooptado.

    Elena Osawa

    07/07/2018 - 13h01

    É isso aí, Mordaz! Estão querendo desestabilizar o governo Ortega para derrubá-lo e isso faz parte do desejo do Tio Sam.http://operamundi.uol.com.br/conteudo/geral/49278/igor+fuser+golpismo+nicaraguense+tira+a+mascara.shtml

      Elena Osawa

      07/07/2018 - 13h02

      Tio Sam está por trás disso.

Juan Carlos

06/07/2018 - 12h34

Sim Badaró,o Brazil tá bom pra carái!!!
Ainda bem que estamos livres desses malditos comunistas e na mão de homens bons com Temer Aécio e Cunha…

Badaró

06/07/2018 - 08h22

É sempre assim Miguel e não aconteceu só com Daniel Ortega. Lembre-se de Fidel Castro, que prometeu democracia ao derrubar Fulgêncio Batista e se tornou um ditador até morrer. E Mao, na China? E Pol Pot, no Camboja? E Idi Amin que, dizem, comia até o coração de suas vítimas? Fora os ditadores do mundo Árabe.

Sabe o que todos esses tem em comum? São admirados pela esquerda. Lula sempre admirou gente do tipo Ortega e Fidel. Chamou Muamar Kadafi de grande irmão.

Acho que você não vai publicar meu comentário. .

    Jochann Daniel

    06/07/2018 - 14h29

    Caro “Badaró”
    Acho que você
    é ingênuo mesmo,
    mal informado
    (pela Grande Mídia,
    que serve
    aos nossos inimigos)
    Por isso
    vou lhe passar
    o que sei
    sobre os personagens
    que você maldiz.
    1 Fidel Castro:
    Tirou Cuba da merda
    (era um país de merda,
    um Brasil à época,
    até 1958).
    Apesar
    da feroz perseguição econômica
    dos Estados Unidos,
    hoje Cuba é um país civilizado.
    Não é uma merda de primitivismo,
    pobreza, miséria, ignorância,
    criminalidades e horrores.
    Que nem o Brasil.
    Fidel foi tão bom
    para o povo cubano
    que vencia todas as eleições
    com 98% dos votos
    (obviamente
    a Mídia
    esconde tudo isto….)
    2. Mao Tse Tung
    Tirou a China da merda
    (a China era uma merda de país,
    era um Brasil à época,
    até 1950).
    Em 25 anos de governo
    tirou a China da merda que era
    e criou
    uma fantástica infraestrutura,
    que permitiu a criação
    do sistema econômico
    social capitalismo
    em 1976,
    o qual levou a China
    a ser a segunda maior
    economia do Mundo,
    em vias de se tornar
    a primeira economia mundial,
    à frente dos Estados Unidos.
    3. Khadafi
    Tirou a Líbia da merda
    e tornou este país
    o mais avançado
    e civilizado país da África.
    Até ser
    criminosamente massacrado
    e pilhado
    por aqueles
    que controlam
    a Mídia ocidental
    e usam as forças armadas
    dos Estados Unidos
    para seus saques
    e pilhagens dos países
    (incluindo o Brasil, óbvio…)
    Não sei
    sobre Pol Pot e Idi Amin.
    Mas, se são malditos
    e satanizados
    pela Mídia Ocidental
    devem ter feito alguma coisa de bom
    para seus países……

Antonio Passos

06/07/2018 - 03h08

Desculpe mas senti um tom “lavajatiano” no artigo. Talvez porque eu esteja traumatizado com o fundamentalismo puritano que ela incutiu na mente dos brasileiros, e que está destruindo o Brasil. Longe de mim defender Ortega, mas rejeito um certo tom de condenação da revolução pelos motivos apresentados. Seres humanos não são santos em lugar nenhum e nem precisam ser, para merecerem respeito e um julgamento justo de suas obras. A realidade é complexa e não pode ser estudada com reduções.

    Badaró

    06/07/2018 - 08h24

    O que você sentiu foi inveja. Inveja de Lula não ter feito aqui o que Ortega fez na Nicarágua, Fidel em Cuba e Chavez na Venezuela.

    Felizmente a gente acordou a tempo (aliás, deveria ter sido bem antes) e enxotou a pupila. A Lava Jato fez o resto.

      Jochann Daniel

      06/07/2018 - 14h36

      Caro “Badaró”
      Como eu disse acima
      você tem a cabeça envenenada
      pela Grande Mídia,
      que trabalha
      para nossos inimigos.
      Talvez um dia
      você descubra
      que a GM faz você
      de idiota,
      bem como
      o resto das pessoas
      que pensam politicamente
      como você….

      Ulisses

      06/07/2018 - 22h47

      É seu badaró. Segundo o comentarista do programa global gravado os States, Cuba só deu certo na segurança, na saúde e na educação!!!! E agora a Farsa a Jato terminou o serviço aqui. Levou o país a falência e entregou tudo para os gringos. Parabéns seu badaró. você venceram. Fizeram um país virar uma grande M…….. Quero ver o futuro dos seus descendentes. O meu tá fugindo para o Canadá. Isto por que ele tem mestrado em TI. A grande maioria mesmo vai virar peão, faxineira ou prostituta.


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