Menu

“Narcos: México”, drogas, entretenimento e softpower

Nos últimos anos, com o avanço da Netflix no Brasil, assistir séries tornou-se um dos principais hábitos culturais da classe média brasileira. Somos o terceiro maior mercado mundial do serviço, com cerca de 10 milhões de assinantes. Numa estimativa conservadora, considerando uma média de três pessoas assistindo cada ponto, são mais de 30 milhões de […]

2 comentários
Apoie o Cafezinho
Siga-nos no Siga-nos no Google News
Teresa Ruiz (interpretando a perigosa Isabella Bautista)

Nos últimos anos, com o avanço da Netflix no Brasil, assistir séries tornou-se um dos principais hábitos culturais da classe média brasileira.

Somos o terceiro maior mercado mundial do serviço, com cerca de 10 milhões de assinantes. Numa estimativa conservadora, considerando uma média de três pessoas assistindo cada ponto, são mais de 30 milhões de brasileiros conectados diariamente aos conteúdos da gigante americana.

Promover “boicotes” a um serviço de streaming me parece ingênuo e inútil. É como boicotar o uso de celular. Muito mais consequente e realista, se quisermos não ser engolidos culturalmente, é desenvolver ferramentas críticas que preparem nossos concidadãos, em especial a juventude, para consumir seus produtos.

Além do mais, não se trata mais apenas de Netflix. O serviço de Prime Video, da Amazon, também está crescendo, juntamente com a Hulu.

Num país tão aberto como o nosso, a única maneira de “combater” a invasão cultural é aprender e ensinar a consumir, de um lado, e a produzir, de outro.

Em outras palavras, é preciso desenvolver uma cultura de crítica e debate desses serviços de streaming, que é o que, humildemente, ensaiaremos fazer aqui no Cafezinho.

***

“Eu vou lhes contar uma história. Mas serei franco. Ela não tem um final feliz”.

A frase abre a quarta temporada de Narcos sem medo do famigerado “spoiling”. Baseada em fatos reais, o eixo mais atraente da série não está no fator surpresa, e sim na voluptuosidade da reconstituição histórica do México dos anos 80, com suas músicas, festas, políticos corruptos e cartéis nascentes.

A série relata o início dos grandes cartéis mexicanos, em especial de Guadalajara, liderado por Miguel Ángel Félix Gallardo, El Padrino, o chefe dos chefes, interpretado na obra por Diego Luna.

Diego Luna interpreta El Padrino, o traficante Miguel Ángel Félix Gallardo

A estrutura é parecida com a das temporadas anteriores: há o núcleo dos vilões, os traficantes e seus associados na polícia e no governo do México, e o dos mocinhos, que são os agentes da DEA, o então recém criado departamento antidrogas do governo americano.

Também assim como as temporadas anteriores, o ponto-de-vista narrativo é inteiramente norte-americano, e esse é um ponto um pouco irritante na obra, embora seja uma característica com a qual, infelizmente, o espectador brasileiro já se habituou. A narrativa olha para o México (assim como olhava a Colômbia) de cima para baixo.

A história dessa temporada começa em Sinaloa, província agrícola no litoral pacífico, onde no início dos anos 80 se concentrava a maior parte das plantações de maconha do México.

Diferentemente do dionisíaco, emotivo e popular Pablo Escobar, o traficante principal da quarta temporada, Miguel Felix Gallardo, é um sujeito metódico, frio, discreto, mas disposto a enfrentar os maiores riscos em prol da consolidação e expansão de seus negócios. É assim que Gallardo, sem um aval muito claro de seu chefe, organiza o primeiro “sindicato” ou “cartel” de drogas do México. Em seguida, assume o lugar de seu chefe e, ao poucos, se torna o maior traficante do país, inicialmente operando apenas com maconha; mas logo assumindo o transporte da coca colombiana para os EUA.

Os personagens de Ernest “Don Neto” Fonseca Carrilo (Joaquin Cosío) e Rafael Caro Quintero (Tenoch Huerta), principais amigos e associados de Gallardo, compensam a frieza do chefe com altas doses de loucura, paixão e violência.

A montagem fotográfica é muito dinâmica, alternando-se entre deslumbrantes paisagens naturais e urbanas e cenas minimalistas.

Os americanos são muito espertos. Toda vez que eles torram alguns bilhões de dólares em guerras fracassadas, eles conseguem recuperá-los, em seguida, fazendo filmes sobre elas.

É o caso, pelo menos, da guerra às drogas. Se, na vida real, a guerra às drogas sangra o contribuinte americano, na ficção ela gera muito dinheiro para a economia do país.

Segundo reportagem do Washington Post do ano passado, o “Plano Colômbia”, que previa ajuda financeira de Washington ao governo colombiano no combate ao tráfico de drogas, consumiu mais de 11 bilhões de dólares desde que foi assinado, em 2000.

Apenas em 2017, o serviço de streaming Netflix, com 109 milhões de assinantes no mundo, registrou um faturamento de… 11 bilhões de dólares.

Segundo estimativas oficiais, a indústria criativa dos EUA movimentou em 2017 cerca de 735 bilhões de dólares, e deve chegar a 830 bilhões em 2022.

Isto é que é softpower!

Alguém mostre esses valores ao governo Bolsonaro, para ele entender a importância da cultura para geração de empregos e divisas em qualquer país.

Para efeito de comparação, uma estimativa recente calculava que as vendas mundiais de cocaína em meados dos anos 2000 giravam em torno 88 bilhões de dólares.

Os EUA, maior consumidor mundial de drogas ilícitas, registra atualmente um índice de uso de cocaína correspondente a 2,3% da população (3,0% entre homens), contra 1,0% no Brasil. Os dados são do Escritório de Drogas e Crimes das Nações Unidas.

Quanto à maconha, a mesma fonte estima que os americanos são os mais ávidos consumidores do mundo: 16,5% da população consome marijuana, contra 2,5% no Brasil.

Os EUA podem gastar muito importando drogas ilícitas, mas compensam esses gastos produzindo, para dentro e fora do país, filmes e séries sobre… drogas

O filme ainda dá uma dica sobre o tema da próxima temporada, se houver. Um dos contratados por Gallardo é um rapaz chamado Joaquín, apelido El Chapo… Quando Gallardo for preso, na vida real, e começar a perder o controle sobre seus negócios, após uma série de guerras sangrentas, El Chapo se tornará o maior traficante do México, quiçá do mundo.

Tanto Gallardo como El Chapo hoje estão presos. O último foi extraditado para os EUA.

Apoie o Cafezinho

Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

Mais matérias deste colunista
Siga-nos no Siga-nos no Google News

Comentários

Os comentários aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do site O CAFEZINHO. Todos as mensagens são moderadas. Não serão aceitos comentários com ofensas, com links externos ao site, e em letras maiúsculas. Em casos de ofensas pessoais, preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, denuncie.

Escrever comentário

Escreva seu comentário

Paulo

19/11/2018 - 21h46

Falando em drogas, hoje li que a China executou dois acusados de tráfico de drogas, num “espetáculo público” que contou até com a presença de crianças (executou por fuzilamento). Aí, eu me pergunto: qual a intenção do Governo chinês, com isso? Inibir o tráfico, para não se “contaminar” com o mal do Ocidente? Ou será que se trata mesmo de um tipo de espetáculo macabro, à semelhança dos produzidos há 2 mil anos no Coliseu romano, para entreter uma população ensimesmada e carente de alegria?

brasileiro

19/11/2018 - 18h57

Os anglo-saxões na verdade nunca fizeram guerra às drogas. A intenção sempre foi tomar o controle sobre o tráfico. Começou com a guerra do ópio da Inglaterra sobre a China, e não pararam até hoje. Um grande exemplo histórico dos norte americanos foi a Guerra dos Contras. E não vamos esquecer das drogas convencionais que os donos do mundo nem tocam…


Leia mais

Recentes

Recentes