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Alguns cenários e perspectivas para 2022

A volta de Lula ao jogo eleitoral de 2022, após o STF anular seus processos e restituir seus direitos, provocou uma reação em cadeia no mundo político. Até então, havia um cenário no qual Bolsonaro tinha um lugar assegurado no segundo turno, representando a direita; a esquerda e o centro disputavam a outra vaga. Agora […]

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Bloco Comuna que Pariu apresenta em seu samba enredo forte crítica à homofobia - Foto: PCB

A volta de Lula ao jogo eleitoral de 2022, após o STF anular seus processos e restituir seus direitos, provocou uma reação em cadeia no mundo político.

Até então, havia um cenário no qual Bolsonaro tinha um lugar assegurado no segundo turno, representando a direita; a esquerda e o centro disputavam a outra vaga.

Agora o jogo se inverteu. A entrada de Lula fecha a outra porta. Presidente duas vezes do país, com uma popularidade ainda muito expressiva, sobretudo entre as camadas mais humildes da população, Lula parece ter um lugar garantido no segundo turno.

Então os olhos se voltam para a outra vaga, aquela que, até então, parecia assegurada para Bolsonaro.

A preços de hoje, o cenário é este: lulismo X bolsonarismo. Esquerda contra direita.

Essa fórmula repete 2018, mas com uma diferença fundamental: tanto Lula quanto Bolsonaro estão ainda mais fortes. Em 2018, Lula estava preso. Hoje está livre. Em 2018, Bolsonaro era um outsider. Hoje é presidente da república, e empunha a caneta mais poderosa do país.

Entretanto, a mudança nas peças não muda o tabuleiro, nem as regras do jogo. Alguns atores disputariam com as peças brancas, e agora terão que disputar com as peças pretas.

O grande desafio, para todos os jogadores do xadrez político nacional, ainda é conquistar a preferência da classe média.

Neste sentido é que se pode falar, sem ofender ninguém, em “polarização” entre extremos. É claro que Lula não é extremista, à diferença de Bolsonaro, que é um representante de uma extrema-direita de tendência obscurantista e autoritária.

Entretanto, ambas as forças, lulismo e bolsonarismo, hoje enfrentam uma rejeição expressiva em setores influentes da sociedade, especialmente junto a essa faixa de eleitores mais instruídos que, através das redes sociais, domina a narrativa das redes sociais.

Bolsonaro se elegeu em 2018 com uma fortíssima sustentação junto este setor, que se confunde com a classe média brasileira.

Este segmento social tem mais poder hoje do que jamais teve na história política do Brasil, por duas razões.

A primeira razão é que ele cresceu. Para o Datafolha, por exemplo, os eleitores com renda familiar menor que 2 salários representam cerca de 50% do total do eleitorado; aqueles com renda entre 2 e 5 salários correspondem a 25% dos eleitores, e os outros 25% ganham mais de 5 salários. Então metade do eleitorado ganha mais de 2 salários e pode ser classificado, a grosso modo, como “classe média”.

A segunda razão é a consolidação das redes sociais, abertas e fechadas, como principal meio de informação da sociedade brasileira. A classe média, que domina os códigos e símbolos do debate político, por seu nível maior de instrução, exerce a mais absoluta hegemonia nesses espaços de interação.

Diante deste novo cenário, é praticamente impossível um grupo político ganhar uma eleição no Brasil sem apoio da classe média, e se ganhar, terá muita dificuldade para governar com um mínimo de estabilidade e eficiência. Sem apoio deste setor, sobretudo, não será possível executar nenhum projeto audacioso de transformação social. Ou seja, o Brasil está condicionado, de uma forma ou outra, a seguir as orientações de uma classe média empoderada e que adquiriu, há alguns anos, um grau de consciência de classe suficiente para derrubar ou eleger governos.

A saída desse impasse, naturalmente, é a política, entendida aqui em sua acepção mais nobre e mais antiga, ou seja, como instrumento de persuasão, transformação e esclarecimento.

Isso significa que o campo progressista não pode mais hostilizar a classe média como classe inimiga; ao contrário, terá que ouvi-la, respeitá-la, compreendê-la, e mesmo amá-la, pois é um casamento eterno. Quando a confiabilidade da classe média for reconquistada, será preciso trabalhar, de maneira respeitosa, e sempre com muita honestidade, pela “conversão ideológica” da classe média para o campo progressista. Para isso, será preciso deixar de lado as narrativas – que na verdade sempre foram um tanto forçadas, para não dizer oportunistas – de tratar a classe média como uma “elite” egoísta, fascista, racista, e considerá-la objetivamente como ela realmente é: formada majoritariamente por famílias de cor parda, renda modesta, nível de instrução pouco acima do analfabetismo, com virtudes e defeitos muito parecidos com a das famílias mais pobres.

Se a classe média tem alguns valores conservadores, não é porque os herdou da “elite” acima dela; ao contrário, são valores que emergem de baixo, das faixas mais pobres. Muitas vezes, o que setores liberais da esquerda consideram “conservadorismo” são, na verdade, técnicas de ascensão social: um apego muito forte à família (cuja estabilidade, entre famílias mais pobres, é fundamental para sua segurança alimentar, econômica e profissional), ética extremamente rígida (a conquista de empregos melhor remunerados depende necessariamente, para o trabalhador, de conquistar a mais absoluta confiança do patrão de que se é uma pessoa honesta) e o abandono de ambições culturais ou intelectuais que não signifiquem segurança econômica (o filho de um trabalhador dificilmente poderá ter ambição de se tornar cineasta, por exemplo; daí a criação de uma certa animosidade contra a “esquerda intelectual”, tão bem explorada pelo bolsonarismo).

Quando o filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, vem às suas redes falar que Bolsonaro representa o fim de décadas de comunismo no Brasil, a reação do campo progressista é sempre de escárnio. Mas o fato é que Eduardo Bolsonaro foi eleito em 2018 com 1,84 milhão de votos, o que o torna o deputado mais votado da história do Brasil.

Por que isso?

Para mim, isso se explica pela vitoriosa narrativa do grupo político liderado por Jair Bolsonaro de se tornar o representante máximo dos valores da classe média brasileira.

Para entender o significado disso, reitero, é preciso jogar no lixo todos os clichês sociológicos que a esquerda inventou às pressas, nos últimos anos, para explicar a perda de apoio político desse segmento.

Na verdade, a esquerda acabou por ver as coisas pelo avesso, e isso foi um erro que vemos a esquerda cometer também em outros países, que consistiu em permitir a construção, para si mesma, de uma imagem de “elite intelectual”, o que gerou um movimento automático de repúdio, muito emotivo, carregado de um fortíssimo complexo de inferioridade, a tudo aquilo que essa “elite intelectual” representa.

Assim, torna-se “comunismo” tudo aquilo que se tornou, por várias razões (inclusive razões erradas) antipático aos valores tradicionais da classe média, e que a esquerda intelectualizada tanto preza, como a crítica às virtudes familiares, o amor à alta cultura, o respeito à laicidade, os insultos (um tanto pueris) à meritocracia, o culto ao ócio criativo.

A extrema-direita, naturalmente, também aprendeu a explorar muito bem o principal medo do cidadão de classe média, que é descer os degraus da escada social e se tornar um “excluído”.

Esse é um fenômeno sociológico muito comum, e que sempre foi, de fato, o aspecto mais facilmente manipulável das classes médias ao longo da sua história. Toda a publicidade que vemos nos canais populares não são destinados às faixas mais pobres, justamente por serem estas excluídas do consumo. As empresas anunciam nos grandes meios de comunicação para vender às classes médias, que formam o grande público consumidor, especialmente daqueles produtos vendidos por empresas dotadas de capital suficiente para pagar os altíssimos custos de publicidade. Por aí se montam os instrumentos de controle ideológico com os quais a elite financeira dirige e manipula a classe média a seu gosto.

Este é um fenômeno com raízes históricas já antigas. Um grupo político consegue manter o poder sem apoio de suas classes médias apenas por pouco tempo, ou então com uso de extrema violência. As forças revolucionárias europeias obtiam vitórias e derrotas políticas conforme seu prestígio junto às classes médias oscilavam para cima ou para baixo. Na China, a revolução comunista teve que apelar ao terror, na chamada “revolução cultural”, quando começou a perder o apoio de sua intelectualidade. Foi um período de trevas e excessos autoritários na China, que colocou em risco a própria revolução, com instituição de censura a milhares de livros de literatura e mesmo a doutrinas científicas consolidadas. A teoria da relatividade, de Einstein, para se ter uma ideia, foi considerada “subversiva” e seus professores e teóricos na China foram censurados, e, em alguns casos, punidos severamente. Felizmente, foi um surto obscurantista relativamente breve (para os parâmetros de tempo do país), embora tenha produzido danos à evolução tecnológica do regime – para não falar de seu prestígio no exterior – que só foram corrigidos décadas mais tarde. Na Rússia, a revolução comunista foi liderada por uma “classe média” de intelectuais e operários especializados, e se tornou totalitária quando seu prestígio declinou nesses segmentos.

Mas voltemos ao debate sobre as perspectivas políticas para 2022. Para isso, é preciso retornar um pouco a 2018.

Uma pesquisa de intenção de voto, feita às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, informava que Bolsonaro tinha 55% dos votos dos eleitores com renda familiar entre 2 a 5 salários, contra 20% de Haddad; entre famílias com renda entre 5 e 10 salários, Bolsonaro tinha 61%, contra 12% de Haddad.

Esses números são a prova cabal de que Bolsonaro não apenas teve uma vitória eleitoral expressiva em 2018, mas sobretudo uma vitória política ainda mais determinante. Também podemos olhar pelo outro lado, a esquerda obteve uma derrota esmagadora na opinião pública, na medida em que perdeu votos justamente entre o eleitorado mais instruído e com mais domínio dos códigos políticos, ou seja, aquele eleitorado que assiste debates na TV, tem mais informação sobre os programas dos candidatos, em suma, um eleitorado mais politizado. A derrota da esquerda apenas não foi mais completa porque o lulismo obteve uma votação muito expressiva junto a ao eleitor de pouca instrução, o qual, naturalmente, é tão digno como o eleitor com doutorado na melhor universidade do mundo, mas é um eleitor que, numa democracia de massas onde as redes sociais se tornaram a grande arena de disputa das narrativas, tem muito menos poder de fogo.

Perder a classe média significa derrota política, é a lição que a esquerda já deveria ter compreendido há muito tempo. Foi assim em 1954, 1964, 2016, 2018, 2020 e será em 2022, caso não se tome as devidas providências para mudar a estratégia do jogo.

O lulismo ainda encontra obstáculos importantes para recuperar apoio na classe média.

Segundo uma pesquisa Datafolha realizada em março, 57% dos brasileiros acham que a condenação de Lula foi justa. Entre famílias com renda acima de 2 salários, todavia, este percentual sobe para 65%.

Entretanto, o potencial destrutivo ou criativo de uma força tem de ser julgado pela existência ou não de contra-forças similares. Hoje se sabe que um simples átomo detêm uma quantidade inacreditável de energia. A força eletromagnética somada dos prótons localizados no núcleo dos átomos que formam o nosso corpo seria suficiente para nos transformar em gigantescos ímãs, caso cada próton não fosse devidamente neutralizado pela contra-força de um elétron.

Aí entra o fator que pode ajudar o lulismo em 2022, que é o crescimento da rejeição a Bolsonaro junto às classes médias, um movimento que vem sendo detectado em todas as pesquisas, e que pode ser observar igualmente a “olho nu” nas redes sociais, nos programas de TV, nas votações do Big Brother, nos canais de youtube, e em toda a parte. O apoio ao bolsonarismo tem se marginalizado cada vez mais, e aumentou muito sua dependência de processos artificiais, com uso de robôs, para disfarçar essa perda de prestígio.

Eu fiz uma tabela com esses dados, para servir de apoio ao raciocínio que procuro expor aqui.

Uma pesquisa do Datafolha realizada entre os dias 15 e 16 de março de 2021 traz a seguinte pergunta aos entrevistados:

“Na sua opinião, pelo que fez e está fazendo pelo país, o presidente Jair Bolsonaro tem ou não tem capacidade de liderar o Brasil?”

A pergunta me pareceu a mais apropriada para se avaliar o verdadeiro apoio ao governo, ou pelo menos é melhor do que atribuir o apoio apenas às notas ótimo/bom, e a rejeição às notas ruim/péssimo, jogando todos os eleitores que dão nota regular para debaixo do tapete. Me parece bastante óbvio que nem todo o eleitor que dá nota regular a um governo, ou a um presidente, deve ser classificado como um não-apoiador. Na verdade, diante da polarização, se dá inclusive o contrário. O regular deveria ser visto como um apoiador tímido.

Pois bem, usando essa pergunta, a pesquisa apurou que 42% dos eleitores consideram que Bolsonaro tem, sim, “capacidade de liderar o Brasil”, ao passo que 56% responderam que não, que Bolsonaro não tem essa capacidade.

Consideremos o apoio a Bolsonaro, portanto, em 42%. É um número alto, o que nos dá a vantagem de fazer uma análise conservadora, ou seja, sem cair no erro de subestimar a força do presidente.

Volto à nossa metáfora extraída da física: é um apoio expressivo, mas anulado pelos 56% que acreditam que ele não tem capacidade de liderança.

Entre as famílias com renda entre 2 a 5 salários, as quais, como já mostramos, representam hoje cerca de um quarto do eleitorado, e detém hegemonia das redes sociais, o apoio a Bolsonaro sobe para 46%; anulado todavia em parte por uma rejeição de 53% nesse mesmo segmento.

Agora precisamos identificar tendências. A rejeição a Bolsonaro tem crescido de maneira particularmente acelerada junto às camadas mais instruídas da população. Entre eleitores com ensino médio, 54% responderam que Bolsonaro “não tem capacidade de liderar o Brasil”, percentual que sobe para 62% entre aqueles com ensino superior.

Dada a tendência das famílias de classe média de seguir a orientação das camadas imediatamente acima, em nível de renda e de instrução, podemos inferir que Bolsonaro deve continuar perdendo prestígio junto a esses segmentos.

Daí chegamos à última parte da nossa análise: há espaço para uma “terceira via”, ou seja, para uma alternativa à polarização entre lulismo versus bolsonarismo? Podemos identificar, nas pesquisas, algum sinal disso?

Essa polarização é “dura”, no sentido eletromagnético do termo: elas se atraem. É difícil descolar uma da outra, e isso gera inclusive uma tendência de negação a qualquer possibilidade. Lulistas e bolsonaristas dominam o debate e ambos rechaçam a possibilidade de uma alternativa, até porque intuem que sua vida ficaria infinitamente mais complicada se tivessem que disputar com um candidato mais ao “centro”. Bolsonaro perderia o argumento do “antipetismo”, e Lula perderia o argumento de vitória contra o “fascismo”, ou contra o “genocida”.

As pesquisas sobre rejeição podem trazer às vezes dados contraditórios. Por exemplo, houve uma pesquisa recente do Ipec (ex-Ibope) que trazia Lula como o candidato menos rejeitado. Mas é um fato consolidado que Lula ainda tem hoje uma rejeição bastante alta junto a classe média, e isso ficou bastante claro nas eleições de 2018, e as urnas superam, em valor estatístico, qualquer pesquisa.

Há, sim, espaço para uma terceira via, mas a nova dinâmica política criada pela volta de Lula ao jogo sinaliza que ela hoje tem mais espaço para vir pela direita, ou seja, pela ocupação do espaço que Bolsonaro vai, paulatinamente, deixando em aberto, conforme perde prestígio.

A candidatura de Lula, apesar dos problemas que identificamos, como essa rejeição dura junto a alguns setores importantes, tem uma solidez que deriva das características sócio-econômicas de seus eleitores. O ex-presidente tem apoio de um setor popular que é relativamente blindado contra as flutuações políticas e emocionais tão comuns nesta classe média hiper politizada, usuária intensiva de internet. Naturalmente, essa blindagem não é absoluta. Em 2018, ao contrário, o bolsonarismo entrou fortemente em setores populares, sobretudo no Sudeste, roubando muitos votos do lulismo. Pelas pesquisas recentes, porém, temos a impressão de que Lula, se ele mesmo for o candidato, consegue recuperar uma parte desses votos.

Os partidos que romperam com Bolsonaro, mas que desejam igualmente, por razões várias, seguir um caminho independente do PT, já começaram a entender o novo rearranjo das forças, daí a sucessão de reuniões entre PDT, DEM, PSDB e outras legendas, para discutir a viabilidade de uma candidatura única que representaria essa “terceira via”. Essas legendas experimentaram muitas alianças eleitorais em 2020, e isso com certeza ajuda nessas conversas. Hoje foi publicada mais uma matéria na grande imprensa, na Folha, sobre as dificuldades – em especial nos estados – que se apresentam para esses partidos se unirem numa candidatura única. Na matéria, o presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, avalia que as “divergências nos estados não devem ser um entrave para uma composição da sigla com partidos da centro-direita no plano nacional”.

Será um acerto difícil, sobretudo porque o único candidato desse grupo que tem um potencial maior de votos, por ter ficado em terceiro lugar nas eleições de 2018, é um candidato muito à esquerda para o gosto dos outros. Além do mais, se o objetivo é ocupar o lado direito do espectro, ou seja, a vaga de Bolsonaro, o discurso social e desenvolvimentista de Ciro Gomes, muito parecido com o que Lula provavelmente vai assumir em 2022, não ofertará um “contraste” nítido com o discurso petista.

Por outro lado, Ciro Gomes, aparentemente, seria o único candidato com potencial de agregar alguma densidade e emoção política ao centro, além de oferecer a possibilidade – e esse é seu maior trunfo – de penetrar também no eleitorado progressista, que parece emergir desse período sombrio da era Bolsonaro com um vigor próprio muito maior do que tinha tempos atrás. Se a eleição de Bolsonaro é o resultado de uma classe média reacionária que “saiu do armário”, a oposição a Bolsonaro também está fazendo aparecer uma classe média progressista e militante que igualmente parecia intimidada nos últimos anos com a crise do petismo e a ascensão do movimento conservador.

Ciro, todavia, cometeu erros políticos extremamente graves desde que começou sua nova caminhada em 2019, após o início do governo Bolsonaro: destruiu pontes com o centro e com os liberais, sobretudo por ocasião dos debates da reforma da previdência, quando ele e Lupi aderem à fracassada narrativa sindical, que tinha princípios nobres, importantes, mas que usou uma linguagem radicalizada demais para o momento.

Apesar da narrativa apocalíptica da esquerda, a Previdência Pública sobreviveu. Quem o diz não sou eu, mas a economista Laura Carvalho, ex-coordenadora econômica da candidatura presidencial de Guilherme Boulos, em sua coluna na Folha de São Paulo.

Carvalho lembrou que a reforma aprovada ficou “anos-luz” do original no que tange ao impacto sobre os mais pobres.

O PDT, provavelmente por causa de seus laços ainda importantes no movimento sindical, preferiu expulsar a sua estrela mais brilhante, Tábata Amaral, a romper naquele momento com a narrativa polarizada imposta pela esquerda.

Em 2018, a polarização entre bolsonarismo e lulismo já tinha empurrado, na direção de Ciro Gomes, nacos importantes do centro político, incluindo aí muitos economistas liberais, que vinham fazendo uma caminhada gradual à esquerda, diante do agravamento do quadro social brasileiro.

A decisão de jogar a Tábata na fogueira do linchamento ideológico decepcionou muitos liberais progressistas que admiravam a coragem de Ciro em oferecer uma proposta da previdência, e, sobretudo, de fazer um debate sobre economia política baseado menos em paixões e mais em argumentos.

Depois disso, Ciro decide queimar as pontes com setores importantes da esquerda, inclusive aqueles bastante críticos ao petismo, mas que ainda mantinham laços de afeto com o partido. Ao fazer isso, o pedetista acabou ajudando o petismo a se unificar, pois se havia críticas ao PT, elas puderam ser varridas para debaixo do tapete em nome da luta contra Ciro, “o parisiense, o traidor, o anticristo”.

Hoje a esperança de Ciro se viabilizar vem pelos setores “esclarecidos” da direita e pelos liberais “progressistas”, justamente com os quais Tábata Amaral poderia servir de ponta de lança na articulação. A chance de Ciro ganhar densidade depende do colapso do bolsonarismo, o que, como já vimos, não é mais um sonho impossível.

Então assim estamos. Todos os principais candidatos, Bolsonaro, Lula e Ciro têm graves problemas a resolver.

Sobre Bolsonaro, não há palavras para descrever a magnitude de seus crimes na luta contra a pandemia, nas ameaças à democracia e na falta de respeito com uma sociedade plural. Um presidente tem de respeitar todo o eleitorado, mesmo quem não votou nele, e que pensa diferente. Bolsonaro não respeitou isso, e hoje não é considerado mais favorito para vencer as eleições em 2022. Hoje tem mais rejeição do que apoio, acumulou um passivo de crimes que se tornarão cada vez mais letais para seu prestígio à medida que a oposição, a imprensa, e essa classe média hoje majoritariamente contrária a ele, forem filtrando, explicando e distribuindo os fatos.

Caso a rejeição de Bolsonaro continue se deteriorando, especialmente nesses setores muito influentes, pode-se criar as condições de um colapso, que seria, na prática, o bolsonarismo se reduzir a seu núcleo duro, de uns 10%, e ficar fora do segundo turno. Isso acontece quando se torna tão difícil defender o candidato, em vista de sua rejeição crescente, que acaba ocorrendo uma reação em cadeia, ou migração em massa do eleitorado em outra direção. Vimos isso acontecer com Lula em 2005, na crise do mensalão, que o presidente conseguiu reverter mais tarde. Dilma também passou por isso em 2013; ela igualmente se recuperou o suficiente para se reeleger em 2014, mas obteve uma vitória com pouca densidade política, e praticamente não conseguiu governar o segundo mandato, sendo derrubada com pouco mais de um ano de governo.

Lula desponta novamente como favorito, mas ainda tem uma importante vulnerabilidade política, que é a enorme rejeição, em especial na classe média, nas grandes cidades, no Sul, no Centro-Oeste e no Sudeste. A rejeição a Lula nesses segmentos ainda é superior a de Bolsonaro e, conforme a dinâmica se desenvolver, pode até mesmo empurrar a classe média de volta para o bolsonarismo. Outro erro de Lula e do petismo é uma impressionante e assustadora arrogância, que se revela num clima de “já ganhou” completamente fora da realidade, sobretudo se olharmos o histórico de derrotas do partido nos últimos anos. Além disso, o petismo ainda se mantém preso a narrativas obsoletas sobre o papel das classes médias, e não parece ter mudado sua preferência a vencer o debate pela cooptação, ou pela violência simbólica (como acusar o outro de ser de “direita”, ao mesmo tempo em que se alia à direita e implementa programas conservadores), ao invés de fazê-lo pela persuasão democrática. Com isso, pode até ganhar eleições, mas continuará a gerar animosidade e rejeição, abrindo caminho para um novo ciclo de instabilidade política.

Ciro, por sua vez, parece ser o destruidor de pontes mais talentoso da história política brasileira. Transformou a necessária crítica ao PT, que todos queriam ouvir (incluindo os petistas), mesmo que discordando de um ponto ou outro, numa verborragia exagerada que acabou por ter o efeito contrário, ou seja, gerou um movimento de solidariedade ao petismo, e deu oportunidade para os petistas terem um adversário que os unificasse. Ao mesmo tempo, também cometeu exageros, conforme dissemos acima, no debate econômico. Com receio pueril de ser empurrado para a direita pelo petismo, acabou fazendo movimentos radicais à esquerda completamente desnecessários, começando pelo debate sobre a reforma da Previdência.

Mas o jogo está sendo jogado. É leviano prever resultados, sobretudo porque a temperatura política segue muito baixa, tanto por estarmos no momento mais distante de eleições, seja por causa da pandemia, que nos mantém todos assustados e com movimentos restritos. Essa baixa temperatura leva a uma inércia natural do processo.

A CPI da Covid, por outro lado, pode agitar o cenário político, e acelerar esse movimento de perda de prestígio de Bolsonaro junto aos formadores de opinião.

Uma coisa é certa. O brasileiro morre de fome, de Covid, de violência nas ruas, mas jamais de tédio!

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Comentários

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Rui Batista Martins

14/04/2021 - 18h05

Gostei da análise do atual cenário político nacional. Imparcial e inteligente. Doa a quem doer.
Forte abraço!

Gilmar Tranquilaço

14/04/2021 - 06h31

18:47…. 18:41….. 18:36…..18:35…. 18:30…18:24

Ô bozolóide desesperado!! kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Pedro

14/04/2021 - 04h00

Voto em Lula sem dúvidas.. qualquer um que tire o Genocida do poder

Alexandre Neres

13/04/2021 - 23h34

Não vou perder meu tempo debatendo com o Miguel do Rosário meritocrata ou seus tatibitates, folgo em reconhecer que voltaram à cena as análises ponderadas, em detrimento do proselitismo político.

Durante os últimos 4 anos n’o Cafezinho vi o Ciro atacar incessantemente o PT e Lula, até a Bolsonaro deu trégua um tempo e disse que o bozo não representava risco à democracia. Inclusive, foi misógino ao atacar a Dilma no Dia Internacional da Mulher, em ato típico desses valentões que a gente se acostumou a ver por aí.

Ciro mais uma vez se equivocou em suas estratégias, meteu os pés pelas mãos e agora tem que correr atrás do prejuízo. Cavou o abismo com os próprios pés. Quem ele deveria ter mirado era o “minto”, como todos nós do campo progressista que compreendemos desde o início que ele era o adversário a ser batido. Reconheço até que o método tinha sua razão de ser, pois o PT é muito grande e para ele conseguir um lugar ao sol teria que pegar um naco do partido.

Porém, por uma conjunção de fatores, tivemos uma chance rara de ver a reparação de uma injustiça e ver Lula recuperar seus direitos políticos. A volta do cipó da aroeira. O efeito Lula foi devastador no cenário político e provocou uma série de alterações, diminuindo consideravelmente a chance de diversos candidatos. Alguns bons cientistas políticos avaliam que Lula tem tudo para estar no segundo turno ano que vem, já Bolsonaro pode ser destronado, ou seja, a segunda vaga estaria em disputa. Disse aqui anteriormente que gostaria de ver o segundo turno sendo disputado por CiroxLula para o bem da democracia, mas hoje tenho lá as minhas dúvidas. De Bolsonaro é natural esperar um comportamento infame, isso é próprio dele. Porém, é doloroso ver Ciro adotar táticas e discursos muito próximos aos de Bolsonaro ao vociferar contra Lula e o PT. Será sinal dos tempos? Então, confesso que seria desgastante ouvir aquela verborragia insensata, pois desmereceria o campo progressista como um todo. Aqueles ataques abaixo da cintura pegam mal e o antipetismo que ele repercute é prejudicial ao campo democrático e popular. O Ciro lançou todos aqueles impropérios e agora até invoca uma composição, vem falar em Cristina Kirchner. Será que entendi direito? Chego a sentir vergonha alheia. Que despudor!

Quando comecei a frequentar este blogue, era um dos blogues sujos e progressistas, mas com o passar do tempo mudou. Hoje é um blogue cirista. É bom que tenhamos blogues para todos os gostos, tem espaço para todos, o que acho inadmissível é que este blogue recorrentemente tenha incitado à cizânia entre o campo progressista, para que ficasse digladiando entre si, em pleno desgoverno Bolsonaro. Atacou sistematicamente o PT com aleivosias enquanto os dispositivos midiático e jurídico-policial juraram o partido de morte, praticaram abusos e lawfare. Incentivou o ódio que hoje paira no ar e o tornou pesado. Alguns espertinhos antiéticos tentaram herdar o legado do partido e se aproveitar do momento de fragilidade. Quanto a mim, me sinto leve e feliz, pois mantive meu compromisso comigo mesmo. Não abandono meus amigos, aliados, enfim, qualquer um que sofra injustiça em um momento de dificuldade, se precisar apanho junto. Já senti muita gente me virando a cara por defender veementemente minhas posições e na base do argumento.

Vejo também comentaristas que ante o momento adverso se escafederam, estão sumidos e na moita. Lógico que tem as exceções de praxe. Fazer o quê se tem gente que olha e não vê? Tem um que sinto até pena, só resta a ele conclamar uma tal terceira via, a mesma de Clinton, Blair, FHC e Marina que levou todos para o buraco. Por fim, mas não menos importante, para dar a ele a chance de descobrir a qual papel se presta, em qual segmento do espectro político está situado e não ter que citar jornalistas chinfrins a cara dos tempos atuais como Malu Gaspar, vou transcrever um trecho da biografia de um dos maiores jornalistas que já tivemos cujo papel foi fundamental para o trabalhismo, ou seja, Samuel Wainer:

” Da Barão de Limeira, sede da Folha, Samuel lançou uma flecha no campo de batalha. Era 1º de maio de 1980: ‘A utilidade de Lula’. Ainda tinha bambu para dar. No caso, saía em defesa de Luiz Inácio Lula da Silva, o líder de toda a balbúrdia, que se encontrava encarcerado, enquadrado na Lei de Segurança Nacional. ‘Se há algo que nunca faltou a Lula, o metalúrgico, foi uma simpática publicidade pessoal. Mal lançado às primeiras linhas do colunismo sindical em São Paulo, Lula saltava logo para as manchetes dos grandes jornais e revistas. Agora, eis o inverso. Nada mais de incenso. É pau de todos os lados.’ O tiro dos militares saíra pela culatra. Ao prender Lula, eternizavam sua imagem. Percorrendo as primeiras páginas, o retrato de um homem do povo, com uma placa do Dops pendurada no pescoço, de número 12712. Para Samuel, Luiz Inácio Lula da Silva representava o passo adiante no sindicalismo da era Vargas. O sindicalismo sem Estado, forjado no chão de fábrica – ou o ‘novo sindicalismo’, como preferiam os jornais. Sua Última Hora, fundada com a graça de Getúlio no longínquo 1951, fora o braço do trabalhismo na grande imprensa por duas décadas. Tantos anos depois, encarnado em sua última reinvenção pessoal, Samuel parecia querer retomar a briga:

‘Ligue-se o rádio. Lá estará o ex-governador Abreu Sodré carpindo o fim melancólico do líder sindical e o enterro prematuro do ex-futuro líder político. Aperte-se o botão da televisão. E lá estará o atual governador Paulo Maluf decretando a morte de Lula como líder sindical e afirmando que o PT não passará daqui por diante de uma piada. E assim todo mundo sente-se autorizado a lançar sua pá de cal sobre o túmulo do mais moderno e, sem dúvida, mais importante dirigente sindical surgido no país depois de 1964.'”

    Redação

    14/04/2021 - 11h20

    Neres, você é o exemplo clássico do erro de considerar qualquer crítica como “ataque”, sobretudo quando todos sabem como sempre me esforcei para fazer uma crítica respeitosa e democrática. Isso sem falar na minha luta contra o lawfare e as arbitrariedades cometidas contra o ex-presidente Lula, mesmo no momento em que mais estava irritado com ele por razões políticas.

    É inacreditável. O que você considera “cizânia”, não seria apenas embate democrático? Quanto ao epíteto de ser um “blog cirista”, acho apenas pueril, pois qualquer linha que seguíssemos seria necessariamente marcada politicamente. É normal. Me preocupe, no entanto, o tom de preconceito desse comentário. Você pode não concordar com uma ou outra análise, mas essa tentativa insistente de atacar a moral, a ética, a independência do blog, me parece simplesmente preconceituosa.

    Saudações

    NZ

    14/04/2021 - 13h54

    Você é o típico petista burro que acha que é inteligente. Puta merda, que cara burro

Alberto Jorge

13/04/2021 - 23h22

Incrível! Ciro Gomes? Ainda com essa conversa?

    Redação

    14/04/2021 - 11h21

    Sim, Ciro, Lula, Bolsonaro. Procuro analisar o cenário completo.

Kleiton

13/04/2021 - 22h31

Os brasileiros votam no nome e quem decide as eleições é o povão.

Bolsonaro tem nome, representa o brasileiro médio e é o atual Presidente da República. Lula é um pilantra, faz parte da história há anos e não será candidato. Ciro Gomes é uma piada ambulante. Os outros pseudo candidatos ou nada são a mesma coisa.

Fim.

Paulo César Cabelo

13/04/2021 - 18h47

Parei de ler na ética rígida da classe média.
Os homens de classe média vivem bêbados e espancando as mulheres e os filhos , não que os pobres ou ricos sejam diferentes.
O Miguel vive no país da fantasia aonde Ciro vai tirar votos de Bolsonaro bajulando conservadores.

    Miguel do Rosário

    14/04/2021 - 11h10

    Prezado Paulo, eu escrevi que a ética rígida é uma virtude – utópica, naturalmente, como toda a virtude – da classe trabalhadora, que transborda para as famílias de classe média que vem de baixo.

    Quanto a Ciro, escrevi exatamente o contrário. Que ele terá muita dificuldade de obter votos deste eleitorado conservador.

Hilario

13/04/2021 - 18h41

O cenario da esquerda é o da foto mesmo…

Gedeon

13/04/2021 - 18h36

Levem Lula em praça publica Bibas para fazer uma pesquisa…

Luan

13/04/2021 - 18h35

Quem estava na rua ainda esses dias eram os apoiadores do governo…a unica “manifestaçào” de esquerda que a gente viu de 2019 pra cà foi aquela palhaçada imunda dos torcedores do Corinthians em SP.

O cenario para 2022 é bastante claro…o resto é ilusào.

Efrem Ventura

13/04/2021 - 18h30

Escreveram isso tudo para dizer que Bolsonaro nao tem adversarios viavéis…? Bastavam muitas poucas palavras.

Jacson Oliveira

13/04/2021 - 18h24

Bolsonaro tem 40% dos votos válidos, Lula outros 40%. Não sobra nada pra dissertar.


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