Regulamentação da mídia, má literatura e o grito de guerra

Na coletiva que antecede os trabalhos da CPI da Pandemia, um repórter perguntou hoje ao senador Renan Calheiros (MDB-AL) o que ele achava da postagem de Lula em favor da “regulamentação da mídia”. Visivelmente constrangido, Renan respondeu que permaneceria sempre ao lado da liberdade de imprensa.

Em editorial publicado hoje, intitulado “A ideia fixa de Lula”, a Folha faz uma dura crítica à fala do ex-presidente sobre regulamentação da mídia. O subtítulo diz tudo: “Com fala que soa a tentação autoritária, petista insiste na regulação da mídia”. 

Os defensores da regulamentação da mídia reviram os olhos diante dessas reações. O próprio Lula, já as antevendo, disse que não queria uma regulamentação ao estilo cubano ou chinês. Seu modelo seria a Inglaterra.

“Não é censura. Não é censura”, repetem os defensores da regulamentação. E não é mesmo.   

A base social do ex-presidente, por sua vez, trata o tema como uma espécie de “grito de guerra”. 

Já publicamos, há alguns dias, uma análise sobre isso, mas permaneceu um pouco de confusão sobre o que pensamos. Alguém falou que estaríamos adotando uma posição “conservadora e pragmática”.

Não gosto dessa associação automática de pragmatismo a conservadorismo, porque dá a entender que o espírito revolucionário não deva ser também pragmático, e não vejo nada que possa ser mais idiota. 

O Brasil precisa experimentar profundas transformações, naturalmente para melhor, porque o grau de deficiência de nossa educação e de nossa desigualdade, para mencionar apenas de dois pontos, é um insulto ao bom senso. 

O que são transformações profundas? São exatamente o que por vezes se chama de… revolução.  

Uma revolução que melhorasse a educação, a mobilidade urbana, a pesquisa científica, o respeito ao meio ambiente, e que desse mais  segurança à renda do trabalhador, seria muito bem vinda!

Na época em que vivemos, todavia, não será possível realizar nenhuma transformação importante em nossa sociedade sem uma revolução – ou transformações profundas – também no campo da comunicação. 

Entretanto, se existe enorme convergência social de que o Brasil precisa promover avanços revolucionários em algumas áreas, o mesmo conceito, quando aplicado ao problema de mídia, esbarra em terrível hostilidade. 

Há uma razão bastante concreta para isso. Com o declínio do bolsonarismo, já derrotado moralmente, embora ainda muito forte e perigoso do ponto-de-vista político e eleitoral, está claro que sobrevivem apenas duas grandes forças políticas organizadas no Brasil.

São dois grandes partidos: o Partido da Mídia, de um lado, e o Partido da Esquerda (hegemonizado pelo PT, mas que é um campo muito maior do que esse partido), de outro. 

As duas primeiras décadas do século atual foram marcadas por uma guerra política violenta entre esses dois campos, cujo desfecho foi uma derrota histórica do Partido da Esquerda, no golpe de 2016, confirmada em 2018, com a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro. 

No atual momento, o partido da mídia tenta um “armistício”, ou um “acordo de paz” com o Partido da Esquerda,  em virtude de um inimigo comum: Bolsonaro.

Esse acordo de paz se dá também porque o Partido da Mídia se vê num momento de enorme vulnerabilidade, em virtude dos ataques que sofre do governo Bolsonaro, ao mesmo tempo em que o Partido da Esquerda, depois de anos de derrotas, voltou a ganhar algumas batalhas (venceu a Lava Jato, por exemplo) e a crescer socialmente. 

É nesse aspecto que a defesa, pelo presidente Lula, de um projeto de “regulamentação da mídia”, é interpretado por alguns como um erro político, por afastar um aliado tático importante na luta contra o fascismo bolsonarista. 

Mas o que eu enxergo aqui, além disso, é uma grande confusão, e explico porque. 

Há um certo consenso de que um dos flancos mais vulneráveis dos últimos governos do Partido da Esquerda foi a sua péssima comunicação.  

Lula ainda conseguiu suprir as carências informacionais do governo através de sua grande capacidade de se comunicar diretamente com as massas. Com Dilma, porém, a vulnerabilidade ficou exposta, e o governo foi derrubado.

Parte da militância de esquerda, quando escuta a expressão “regulamentação da mídia”, portanto, entende que se trata de um grito de guerra contra o inimigo, o Partido da Mídia, considerado o principal responsável direto pelo golpe e pela eleição de Bolsonaro.

O entendimento de que, por trás desse debate, há uma guerra partidária, está mais ou menos claro tanto na mensagem de Lula e de quem defende a regulamentação, como na reação agressiva, ou medrosa, de quem a teme.  

As pessoas que defendem a regulamentação da mídia, em suas redes sociais, não parecem preocupadas em apresentar um conjunto de propostas claras. Diz-se que “o mundo inteiro” regula, o que é a mesma coisa que não dizer nada. O que se pretende fazer no Brasil de hoje?

E o “hoje” é fundamental, porque um projeto de regulamentação da mídia que seria válido em 2010, teria que ser atualizado em 2021. 

Não sendo, portanto, um projeto claro e atualizado, a regulamentação da mídia é apenas um grito de guerra.

Minha crítica principal, contudo, é que se trata de um péssimo slogan político. 

Slogan ruim e má literatura. 

Pra início de conversa, não tem apoio popular. Para tê-lo, teríamos que ajustar o slogan para algo mais simples, como “Globolixo”. Só que aí estaríamos usando as mesmas palavras do bolsonarismo.

É necessário, naturalmente, que o campo progressista tenha propostas audaciosas de políticas públicas para o setor de comunicação social.  

Entretanto, para que essas propostas ganhem adesão das classes mais instruídas, de um lado, e do povo, de outro, elas precisam ser verbalizadas e articuladas da melhor maneira possível. 

Além disso, é preciso separar as coisas:

  • De um lado, temos a necessidade de discutir políticas públicas de comunicação que visem corrigir distorções históricas do mercado brasileiro de informação, como a ausência de um forte jornalismo político regional, que possua independência política dos governos estaduais.  Hoje devemos discutir – e talvez seja necessário levar esse tema a fóruns internacionais – a necessidade de pressionar as plataformas para que aumentem a transparência de seus algoritmos. A participação cada vez maior de sistemas de inteligência artificial na gestão das plataformas digitais também exigirá, por parte dos governos e da sociedade civil, um grande esforço de vigilância democrática, senão quisermos nos tornar, literalmente, personagens de uma distopia de ficção científica, escravizados por computadores espertos. 
  • De outro lado, um governo progressista precisa desenvolver ferramentas de comunicação que ajudem a explicar suas escolhas ao público. Todo governo enfrentará momentos difíceis, crises, e a uma comunicação eficaz é sempre necessária para garantir a estabildade da administração e da própria economia. Será um erro do novo governo achar que pode economizar na comunicação. O prejuízo será muito maior depois. Nesse ponto, Bolsonaro deu algumas lições, como a de se comunicar constantemente com seus apoiadores, através de lives diárias. No caso de um presidente democrático, seria uma boa ideia organizar a presença da imprensa nos locais de passagem do presidente, mas proporcionando conforto aos jornalistas. Essas ferramentas de comunicação serão usadas, além disso, para as batalhas políticas e parlamentares que virão necessariamente, em defesa das grandes e necessárias reformas que precisarão ser implementadas em prol do desenvolvimento.

De qualquer forma, o mais importante, para o Partido da Esquerda, é ganhar a batalha da opinião pública. Essa é uma batalha que antecede qualquer outra. 

Para ganhar a batalha da regulamentação da mídia, será preciso uma comunicação muito bem planejada, que inclua, por exemplo, evitar o uso de expressões tão feias, do ponto-de-vista linguístico e literário, como “regulamentação”. Um conjunto de políticas públicas para a comunicação, que sejam ao mesmo tempo democráticas e científicas, precisa passar por um amplo debate social e popular, mas antes de tudo, é necessário que o conceito seja reunido sob um slogan menos carregado de sentido negativo e repressivo.

O conceito de mídia, além disso, é excessivamente aberto. É melhor engavetar os dois termos, “regulamentação” e “mídia”, que nunca pegaram mesmo, e usar outros, mais específicicos e objetivos, como uma política de apoio ao jornalista, com ênfase nos profissionais ou aspirantes a sê-lo, de comunidades carentes, periferias, cidades pequenas, e demais locais onde temos uma verdadeiro deserto de jornalismo. A resposta política para iniciativas como essa seria extraordinário. O mais importante, porém, seria o resultado prático para essas comunidades.

Aí sim conseguiríamos dar um aspecto genuinamente popular e revolucionário a uma política pública voltada para a mídia!

Algumas dessas políticas nem precisam passar, necessariamente, pelo Congresso Nacional. Poderiam ser políticas públicas oriundas diretamente do Ministério da Comunicação.

Não adianta tratar um tema como esse como um confete a ser lançado sobre a militância, apenas para agitá-la esterilmente, e, quando no governo, retirar a proposta alegando falta de correlação de forças. Hoje temos experiência suficiente para fazermos, desde já, os ajustes necessários para construirmos propostas criativas e factíveis de políticas públicas de mídia, que possam ser efetivamente implementadas no país. 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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