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A encruzilhada discursiva de Jair Bolsonaro

Por Mayra Goulart da Silva e Itamar Félix Pereira O objetivo deste artigo é propor algumas hipóteses sobre os eventos ocorridos em 08 de janeiro de 2023, data em que apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram as sedes dos três Poderes em Brasília em um ato que faz parte de uma mobilização golpista gestada ao […]

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Imagem: Isaac Nóbrega/PR

Por Mayra Goulart da Silva e Itamar Félix Pereira

O objetivo deste artigo é propor algumas hipóteses sobre os eventos ocorridos em 08 de janeiro de 2023, data em que apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram as sedes dos três Poderes em Brasília em um ato que faz parte de uma mobilização golpista gestada ao longo de sua trajetória política. Nesse esforço, nos concentraremos no período entre a invasão e a sua inesperada derrota eleitoral, em 30 de outubro de 2022, analisando os discursos por ele proferidos entre a proclamação do resultado eleitoral e a tentativa de golpe, de modo a demonstrar nossa hipótese de partida que indica a inequívoca responsabilidade do ex-presidente na ativação dos envolvidos.

Iniciaremos esta análise com o pronunciamento realizado dois dias após as eleições, em 01 de novembro, no Palácio do Alvorada e sua última live, transmitida em 30 de dezembro de 2022, através de seu canal oficial no Youtube. Em suas falas Bolsonaro reforça uma ambiguidade que, ao nosso ver, caracteriza suas performances discursivas pós-eleitorais na medida em que ele simultaneamente defende o respeito à Constituição e encoraja manifestações de caráter inequivocamente golpista, que abertamente defendem uma intervenção militar para depor um presidente eleito em um pleito internacionalmente reconhecido como válido. 

No primeiro momento, além de não reconhecer a derrota eleitoral, Bolsonaro afirma que “manifestações pacíficas são sempre bem vindas”, se referindo às agitações golpistas realizadas perante quartéis do Exército reivindicando a ação das Forças Armadas para a deposição de um presidente eleito. Já no último, procedendo a uma escalada discursiva que culmina na ação de seus apoiadores, o ex-presidente conclama: “temos que respeitar as nossas leis, a nossa Constituição. Sim, temos que respeitar, mas podemos reagir, podemos não, é direito nosso, mais que direito, é o dever nosso reagir”.

Entre ambos, foram poucas aparições públicas, muitas delas silenciosas, algo destoante de seu padrão comunicacional, marcado pela abundância de atos de fala polêmicos e contundentes sobre os mais diferentes temas. Desde que era deputado, Bolsonaro costuma aproveitar os momentos de exposição midiática para motivar e engajar seus apoiadores. Daí a surpresa com o silêncio súbito.

 Após o primeiro pronunciamento, em 03 de dezembro, ocorre um encontro com o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, sem declarações ao final. O silêncio só foi interrompido seis dias depois, quando Bolsonaro se dirigiu a apoiadores na área externa do Palácio do Planalto. O discurso proferido é contundente e auxilia a corroborar nossa hipótese acerca da responsabilidade de Jair Bolsonaro nos atos golpistas que sucedem as movimentações realizadas na porta dos quartéis. Primeiramente ele as direciona, ressaltando o propósito das mesmas ao afirmar: “Tenho certeza que entre as minhas funções garantidas na Constituição é ser o chefe supremo das Forças Armadas. As Forças Armadas são essenciais em qualquer país do mundo. Sempre disse ao longo desses quatro anos que as Forças Armadas são o último obstáculo para o socialismo”.

Essa passagem é fulcral para desatar a aparente contradição discursiva entre a ênfase na Constituição e a agitação golpista do ex-presidente na medida em que ele se legitima como líder de uma intervenção militar comandada pelas Forças Armadas. Ainda mais significativa é a passagem que se segue, na qual ele deixa claro que essa liderança não implica responsabilidade, uma vez que o ônus da intervenção deveria estar a cargo de seus apoiadores. Em suas palavras, ao comentar o grito de eu autorizo, vociferado por aqueles que se encontravam na porta dos quartéis: “Não é eu ‘autorizo não’, é o que eu faço com a minha pátria. Não é jogar responsabilidade para uma pessoa, sou exatamente igual a cada um de vocês, de carne, osso, sentimento”. Ao final, Bolsonaro alinhava: Por que chegamos a esse ponto? O que aconteceu? Demoramos a acordar? Nunca é tarde para acordar quando sabemos a verdade. Logicamente, quanto mais tarde você acordar, mais difícil a missão”

Depois desse evento há um intervalo interrompido por aparições silenciosas em eventos militares. Em um deles, no dia 20 de dezembro, Bolsonaro e sua esposa choram ajoelhados enquanto oram no gramado da residência oficial. O silêncio do presidente diz muito e foi interpretado de maneiras diferentes. Ao nosso ver ele é o resultado de uma encruzilhada discursiva na medida ao longo de toda sua trajetória parlamentar e na Presidência da República, Bolsonaro adotou um discurso anti-stablishment, contestando os Poderes Constitucionais cujo telos seria rejeição de um resultado eleitoral desfavorável, seguida de um processo de escalonamento autoritário, por meio do qual o Executivo, com apoio dos militares, ampliaria sua ascendência sobre os demais Poderes. Esse seria o caminho natural de uma trajetória discursiva de trinta anos, repleta de elogios ao fechamento do Congresso e da ditadura militar – sendo que, a partir de 2014, o então deputado inicia uma cruzada contra o processo eleitoral com amplo impacto entre seus apoiadores. 

Esse encaminhamento natural dos discursos de Bolsonaro rumo ao autoritarismo, todavia, não depende apenas de sua vontade e se mostrou frustrado em virtude da falta de apoio entre as forças políticas e militares necessárias a uma ruptura desta magnitude. Torna-se relevante destacar ainda que, já no dia seguinte à declaração do resultado das eleições, o então presidente se reuniu com diferentes autoridades, entre elas, o candidato a vice presidente em sua chapa e ex ministro da defesa, general Braga Neto, o ministro do gabinete de segurança institucional, general Heleno, o secretário geral da presidência, general Luiz Eduardo Ramos, o presidente do seu partido (PL), Valdemar Costa Neto, o líder do Governo na Câmara e deputado federal, Ricardo Barros (PP-PR) e o Senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), seu filho mais velho. Não sabemos o que ocorreu neste encontro, mas, nossa suposição é que houve uma consulta sobre a possibilidade de interromper o processo de alternância de poder e a posse do novo presidente e que, ao final, Bolsonaro se viu sem o apoio necessário para isso.

Durante o pleito já havia sinalizações de que Bolsonaro não conseguiria apoio para realizar um processo de contestação, o que se confirmou quando o presidente da Câmara, e seu apoiador, Arthur Lira, reconheceu a vitória de Lula poucas horas após o encerramento da contagem de votos. Torna-se relevante mencionar a emissão de pareceres técnicos de diversos órgãos civis e militar nacionais, durante e após o pleito eleitoral, confirmando a segurança das urnas e do processo de apuração de votos, assim como, do reconhecimento do resultado final por diversos países. Ressalta-se ainda o fato de que muitos políticos apoiadores de Bolsonaro, nos estados e no Congresso nacional conquistaram ou renovaram seus mandatos no primeiro turno das eleições. Desse modo, sem aliados que sustentassem o questionamento do resultado eleitoral, Bolsonaro se viu diante de um dilema que o posicionava contra o discursivo maniqueísta criado por ele e embasado em elementos religiosos no qual a vitória do bem sobre o mal era a única alternativa. Sendo assim, na ausência de apoiadores no espectro político, o que sobra é a sociedade civil e alguns membros da elite econômica dispostos a financiar a organização dos atos golpistas.

A última live

Mantendo o posicionamento de não tecer comentários a respeito dos resultados das eleições presidenciais, durante os 55 minutos de live, o ex-presidente buscou focar nas realizações “positivas” de seu mandato e compartilhar com seus eleitores e apoiadores, sob o seu ponto de vista, suas impressões a respeito do contexto político nesse momento de transição de governo.

Dessa forma, em um primeiro momento, Bolsonaro procura trazer à memória fatos relacionados à eleição de 2018, relembrando o episódio em que levou uma facada, em setembro daquele mesmo ano, na cidade de Juiz de Fora, em meio à campanha eleitoral. Bolsonaro não deixa de elencar também alguns fatores externos que, de acordo com ele, teriam fugido do seu controle e prejudicado a performance de seu governo, como as secas, a pandemia da Covid-19, a Guerra na Ucrânia e a atuação, segundo ele, do Poder Judiciário e da imprensa. Sobre a pandemia, é interessante observar as palavras do ex-presidente em um trecho marcado pela ambiguidade:

“Nós fizemos a nossa parte quando foi possível e passou a ter vacina no mercado, porque em 2020 não tinha vacina (…) Não obrigamos ninguém a tomar vacina. Hoje em dia, também, se você falar de vacina, falar de um estudo de fora do Brasil, você corre o risco de ser bloqueado, responder a um o processo. Eu, o ano passado, ou melhor, em 2020, li um trecho da revista Exame, que falava sobre covid e HIV. Eu li duas linhas da revista Exame, estou sendo processado, estou sendo tratado como um criminoso.”

É possível identificar ao longo de sua fala, dois dos mais marcantes traços de comunicação de Bolsonaro como presidente, sendo esses: a frequente auto-vitimização e a terceirização de responsabilidade, condutas percebidas de forma recorrente ao longo de seu governo na suspeita tentativa de se isentar de qualquer infortúnio que tenha acontecido durante os últimos 4 anos.

Dentre as realizações que Bolsonaro fez questão de destacar na live estão o incentivo à  criação de novos CAC’s (Colecionadores, Atiradores desportivos e Caçadores) por todo o país, assim como a flexibilização das regras destes, a facilitação para porte de armas para o homem do campo e a instituição de escolas cívico-militares por diferentes localidades pelo Brasil. Se faz relevante citar, uma fala marcante sobre o tema, na qual Bolsonaro afirma: “Arma de fogo é garantia de paz”, opinião reforçada repetidas vezes ao longo de seu mandato, como quando reiterava a ideia de: “Um povo armado nunca será escravizado”. 

Durante a live, ex-mandatário menciona que indicou ministros em virtude da proximidade com o Congresso. Uma prática bem próxima do “toma lá dá cá” que é como o presidente se refere ao “Presidencialismo de Coalizão”, enquanto sistema de articulação entre Executivo e Legislativo no qual os ministérios são divididos entre os partidos que oferecem apoio parlamentar ao presidente.

“Obviamente não demos cargos no Executivo do primeiro escalão. Deixar bem claro, no segundo escalão teve alguns cargos. Os políticos que tiveram no primeiro escalão não foram negociados com partidos, foram pessoas que tinham um bom relacionamento com o Parlamento ou tinham um excelente conhecimento para exercer as atribuições do seu ministério.”

Em sua trajetória Bolsonaro execrou a política partidária, reafirmando que suas indicações seguiram padrões exclusivamente técnicos, aqui se observa uma retificação, porém ambígua na medida em que não se explica como se obtém um “bom relacionamento com o Parlamento” em detrimento das negociações com os partidos que o constituem. Embora não seja explicitada a correlação, é possível ver no Orçamento Impositivo, e na ampliação do montante destinado às emendas parlamentares, esta alternativa. Nesse sentido, cabe ressaltar que em 2009, Bolsonaro apresentou um projeto de emenda constitucional que visava estabelecer o caráter obrigatório das emendas parlamentares de iniciativa individual.

Em um segundo momento, Bolsonaro procura desqualificar o Governo eleito, evitando citar o nome de seu sucessor, vitorioso nas eleições. Bolsonaro volta a fazer uso, mesmo que de forma comedida, de um de seus recursos preferidos ao longo dos 4 anos de mandato, as Fakes News. Para tanto, cita a divisão desproporcional do tempo de transmissão de propaganda eleitoral obrigatória gratuita nas rádios visando beneficiar seu oponente. Tal acusação foi levantada nas vésperas do segundo turno do pleito presidencial pelo próprio presidente e seus apoiadores, entre os quais estavam o até então ministro das Comunicações, Fábio Faria. Destaca-se neste acontecimento, a ação célere e contundente do TSE que indeferiu o pedido de verificação de tal suspeita, face à não entrega de provas materiais e conclusivas a respeito  por parte do grupo denunciante, gerando, inclusive, uma declaração pública posterior de retratação do ministro acima citado.

De forma geral, ficou perceptível que a última live de Bolsonaro como presidente da República teve o objetivo de, mais uma vez, se desvincular dos atos antidemocráticos ocorridos ao longo sobretudo do período pós-eleição. Tal finalidade é evidenciada quando, por exemplo, este assume uma postura crítica do ato terrorista, frustrado pela PF em 23 de dezembro, previsto para o Aeroporto Internacional de Brasília, sob as palavras transcritas a seguir:

 “Como nada justifica aqui em Brasília essa tentativa de um ato terrorista aqui na região do aeroporto de Brasília, nada justifica. O elemento que foi pego, graças a Deus né? Com ideias que não coadunam com nenhum cidadão.” 

Chama atenção o fato de que, frente à gravidade da questão, o comentário tecido pelo ex-presidente pode ser considerado brando. Mais do que criticar superficialmente, este deveria ter assumido uma postura clara de condenação mais incisiva ao ato descrito, o que de alguma forma poderia contribuir para desencorajar novas ações semelhantes por parte de seus seguidores. Esta mesma postura é perceptível quando Bolsonaro minimiza os atos e movimentações golpistas em prol da intervenção militar definindo estes de manifestações democráticas. Importante ainda destacar que muitos dos políticos apoiadores do presidente, incluindo ministros e, sobretudo, o grupo oriundo dos militares como seu vice-presidente, general Hamilton Mourão, seu candidato a  vice-presidente, o general Braga Neto,  também incorporam este discurso.

Coming soon…

Vale ressaltar ainda que, perante a justiça brasileira pautada nas leis definidas no ordenamento jurídico vigente, todos os membros da sociedade brasileira podem responder por sua ação ou omissão e que o não agir, estando Bolsonaro na posição de mandatário do Poder Executivo federal e Chefe Supremo das Forças Armadas na expectativa de um eventual levante popular ou golpe militar que o mantivesse no poder, pode ser considerado um agravante penal. Respeitado o devido processo legal e o amplo direito de defesa, elementos garantidos pela nossa Constituição Federal, as investigações em andamento poderão conduzir o presidente, a partir da perda do foro privilegiado a que tinha direito pelo cargo até 31 de dezembro de 2022 a ser responsabilizado pelos atos antidemocráticos. Desta forma poderá Bolsonaro responder criminalmente pelos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral abaixo indicados no código penal brasileiro.

Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais. 

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.         

Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.         

Art. 359-R. Destruir ou inutilizar meios de comunicação ao público, estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional, com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito. 

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.        

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Comentários

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Paulo

16/01/2023 - 21h23

Caramba, meu comentário, que era autônomo, saiu como resposta ao “Bandoleiro”. É banana comendo macaco, n’O Cafezinho, ou eu que comi a banana e fiz a macaquice, rsrs…

Querlon

16/01/2023 - 11h58

Bolsonaro logo que chegou em Brasilia percebeu muito bem quem manda por là e quem tem que agradar se quiser governar normlamente como deveria ser qualquer democracia onde nao ha esta mistura imunda entre politica e alto judiciario…terceiro mundo é isso.

Os brasileiros também entenderam isso muito bem nestes ultimos anos, tudo foi claramente exposto (menos que na Globo e Folha) para que os brasileiros entendessem isso.

Os brasileiros nao mandam em nada, muito menos os idiotas que pedem a intervençào militar em frene aos quarteis que é a mesma coisa que pedir aos alienigenas, nao faz diferença nenhuma.

Resumindo: o STF brasileiro é hoje um cancer da democracia o resto é bla bla bla inutil.

Bandoleiro

16/01/2023 - 11h50

Os tais equerdoides sao doentes pela palvra “golpe” possuem uma especie de fetiche por essa palavra.

Deve ser a devoçào e eterna admiraçào a Fidel CAstro que leva os equerdoides bananeiro a venerar esta palavra sagrada.

    Paulo

    16/01/2023 - 21h12

    Para além da culpabilidade de Bolsonaro – que, a meu ver, é clara -, o que me chama a atenção é a técnica confusa utilizada pelo legislador, ao estabelecer os tipos penais mencionados: como pode a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito ser apenada mais levemente do que a tentativa de depor um governo legitimamente constituído? Um governo só é legitimamente constituído se se submeter aos ditames do Estado Democrático de Direito. Ou não? O que é causa e o que é consequência, no caso? Além disso, o Estado Democrático de Direito é um bem permanente; já um governo legitimamente constituído é um bem, por definição, temporário. E mais, tenho a impressão de que é a primeira vez que uma tentativa é erigida à condição de crime autônomo. Normalmente a tentativa é só um crime, assim pré-definido, que não se consumou, por motivo alheio à vontade do agente…Tá tudo errado…


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