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Marco Fernandes: Como quebrar o círculo vicioso do subdesenvolvimento no Sul Global

Por Marco Fernandes Diz um ditado popular chinês contemporâneo que “em 1949, o socialismo salvou a China. No século XXI, a China vai salvar o socialismo”. Em um discurso de 2018 a novos membros do Comitê Central, o presidente chinês Xi Jinping (习近平) lembrou que, após o colapso da União Soviética, se a experiência chinesa […]

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RICARDO STUCKERT/PR

Por Marco Fernandes

Diz um ditado popular chinês contemporâneo que “em 1949, o socialismo salvou a China. No século XXI, a China vai salvar o socialismo”. Em um discurso de 2018 a novos membros do Comitê Central, o presidente chinês Xi Jinping (习近平) lembrou que, após o colapso da União Soviética, se a experiência chinesa tivesse fracassado, “então a prática do socialismo teria que vagar na escuridão por um longo tempo e, de novo, seria um espectro”, como disse Marx em sua época.

Mas quais as principais características do socialismo com características chinesas? Por que mercado e planejamento não são antagônicos e como podem ser integrados em uma estratégia socialista?

O que diferencia o socialismo chinês do modelo soviético? Quais os maiores desafios que a China enfrenta diante das contradições que o mercado impõe ao socialismo? A experiência chinesa pode inspirar outros países no caminho do socialismo?

Estas são algumas das questões centrais levantadas pelos dois ensaios que publicamos no quarto número da edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横): o primeiro de Yang Ping (杨平), editor-chefe da edição chinesa da Wenhua Zongheng, e o segundo de Pan Shiwei (潘世伟), presidente honorário do Instituto de Marxismo Chinês da Academia de Ciências Sociais de Xangai.

No artigo A terceira onda do socialismo, Yang Ping sugere que, durante o último século e meio, existiram três ondas de socialismo científico: o surgimento do Marxismo e de movimentos revolucionários na Europa, durante o século XIX (primeira onda); a criação de um grande número de Estados socialistas e movimentos de libertação nacional, durante o século XX (segunda onda); e, diante do colapso da experiência soviética e do esgotamento do socialismo da Era Mao Tse Tung, o surgimento de uma economia socialista de mercado, iniciada com a reforma e abertura da China, nos anos 1970 (terceira onda).

Da mesma forma, no artigo As novas formas do socialismo no século XXI, Pan Shiwei afirma que surgiram três formas principais de socialismo: o socialismo clássico nos centros do capitalismo europeu, as formas transformadoras de socialismo nas colônias e semi-colônias e uma nova forma de socialismo que está se desenvolvendo na China e tem como objetivo superar o capitalismo.

Ambos os autores acreditam que a nova onda, ou nova forma de socialismo, está em seus estágios iniciais e discutem como ela pode fortalecer ainda mais o socialismo na China e servir de inspiração para outras nações do mundo.

Em tempos de declínio econômico das potências imperialistas, mergulhadas em um frenesi bélico na Ucrânia e na Palestina – que corre o risco de se expandir para o Leste e Sudeste da Ásia e afundar a humanidade na terceira guerra mundial –, quais são as oportunidades que a ascensão da China socialista traz para o Sul Global? Dialogando com as perspectivas dos autores dos artigos, propomos algumas ideias nesta nota editorial.

Feitos e desafios do socialismo chinês

Após 45 anos de reforma e abertura, o socialismo de mercado transformou a China em uma potência industrial, tecnológica, financeira, comercial e militar.

Pelo PIB por paridade de poder de compra (PPC), uma medida mais real para a comparação de economias nacionais, a China já supera os Estados Unidos com certa folga. Em 2022, o PIB PPC da China foi de US$30,32 trilhões contra US$25,46 trilhões dos EUA.

Ou seja, o PIB PPC chinês equivale a 119% do estadunidense. Para que tenhamos uma dimensão histórica desse feito para o campo socialista, em 1975, no auge econômico da URSS, seu PIB PPC chegou, no máximo, a 58% do PIB dos EUA.

A China é a maior potência industrial desde o final dos anos 2000. O país produziu, no ano passado, 26,7% de toda a manufatura do mundo, seguida pelos EUA (15,4%), Japão (5,3%) e Alemanha (4%). Ou seja, a produção industrial chinesa supera a soma da produção das três maiores nações industriais do Norte Global.

Os chineses também deram saltos tecnológicos impressionantes nas últimas décadas, passando a liderar mundialmente setores como telecomunicações (5G), trens de alta velocidade, energias renováveis, refino de minerais e veículos elétricos, além de terem atingido estágios avançados em muitos outros setores, incluindo inteligência artificial, computação quântica, biotecnologia e construção civil.

A China é a maior potência comercial do mundo, sendo a principal parceira comercial de mais de 120 países. Em 2022, exportou US$6,28 trilhões, com um superávit de US$860 bilhões, fechando o ano com reservas internacionais de US$3,13 trilhões.

Nas finanças, o Estado chinês controla os quatro maiores bancos do mundo – Industrial and Commercial Bank of China (ICBC), China Construction Bank (CCB), Agricultural Bank of China (ABC) e Bank of China –, com um total de cerca de US$20 trilhões em ativos.

O país tornou-se a maior fonte de financiamento para o desenvolvimento global, superando todos os países e todas as instituições multilaterais, inclusive o Banco Mundial.

Por fim, a China foi capaz de um dos maiores feitos da história: a retirada de 850 milhões de pessoas da extrema pobreza entre 1978 e 2021. Segundo o Banco Mundial, isso corresponde a 76% de toda a população mundial que se encontrava nesta situação no período.

No entanto, a China ainda é um país em desenvolvimento e enfrenta enormes desafios econômicos, sociais e políticos para avançar além do “estágio primário” do socialismo, como eles assim definem. Esses desafios incluem necessidade de reduzir a desigualdade entre campo e cidade e entre regiões do país (o Leste é muito mais desenvolvido do que o Oeste), de elevar a renda e o bem-estar social dos mais de 300 milhões de trabalhadores migrantes, de reduzir o alto desemprego na juventude, de diminuir a enorme dependência econômica do setor imobiliário sob a lógica financeirizada, de enfrentar as consequências ambientais causadas por uma industrialização hiper acelerada, de se adaptar ao envelhecimento da população e à desaceleração da taxa de natalidade, de retomar a formação política marxista no Partido Comunista da China e entre as massas (uma das prioridade de Xi Jinping), e de enfrentar as táticas de guerra híbrida aplicadas pelas potências ocidentais para tentar conter o avanço chinês.

Uma onda socialista ou desenvolvimentista no Sul Global?

A China conseguiu quebrar a maldição do Terceiro Mundo e rompeu o círculo vicioso de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”.

Após décadas de independência de sua condição de colônias das potências ocidentais, esse círculo vicioso continua definindo a experiência dos países da periferia do sistema capitalista. Graças a seu tremendo sucesso econômico, cada vez mais países do Sul Global veem a China como um exemplo que poderia ser seguido – levando-se em conta as particularidades locais –, mas também como uma possível parceira na busca de uma estratégia desenvolvimentista. A China, por sua vez, move-se cada vez mais para construir estas parcerias.

Em outubro de 2022, o relatório do 20º Congresso Nacional do PCCh apresentou uma contundente crítica marxista ao modelo ocidental de modernização, baseado na colonização, pilhagem, escravidão e exploração predatória dos recursos naturais e dos povos do Sul Global.

Esse modelo não apenas serviu de base para os processos de industrialização da Europa e dos Estados Unidos, mas também para sua dominação econômica, política e militar sobre o resto do mundo, resultando na formação do imperialismo.

Em resposta, a China elaborou o “caminho da modernização chinesa”, que pode ser caracterizado pelos princípios da prosperidade compartilhada entre uma população gigantesca, do progresso material e ético-cultural, da harmonia entre humanos e natureza e do desenvolvimento pacífico.

Essa consciência histórica formata a política de Estado da China, particularmente a Nova Rota da Seda (NRS), lançada em 2013, visando impulsionar o desenvolvimento do oeste chinês a partir de sua conexão com a Ásia Central.

“Atravessando o rio, enquanto sente as pedras”, ao estilo Deng Xiaoping (邓小平), o governo chinês percebeu que esse poderia ser o pilar de sua estratégia para o Sul Global, assolado por mais de três décadas de neoliberalismo. Dez anos e centenas de bilhões de dólares depois, essa direção foi reforçada no 20º Congresso Nacional do PCCh, cujo relatório afirma o comprometimento da China em atuar para diminuir a distância entre o Norte Global e o Sul Global, apoiando a aceleração do desenvolvimento nas nações do Sul Global.

As recentes movimentações apontam para um estágio mais elevado de cooperação entre a China e os países em desenvolvimento.

Por exemplo, na cúpula entre a China e países africanos – logo após a 15ª cúpula do BRICS, em agosto – líderes da África expressaram reconhecimento por todos os esforços chineses nas últimas duas décadas para promover a infraestrutura do continente, mas pediram à China que mude seu foco de investimento da infraestrutura para a industrialização.1 Xi Jinping concordou com a proposta. A propósito, debate semelhante foi feito na cúpula Rússia-África, em julho, confirmando a atual estratégia africana.

Em grande parte do Sul Global, a necessidade de industrialização volta a ocupar o debate público, desde países como o Brasil e a África do Sul, até países como a Bolívia e o Zimbábue. No primeiro caso, são países que já tiveram indústrias sólidas e diversificadas, mas que sofreram um processo de desindustrialização nas últimas décadas.

No segundo caso, apesar de Bolívia e Zimbábue possuírem abundantes recursos naturais, nunca tiveram condições de acumular capital suficiente para iniciar um processo de industrialização consistente, devido à dinâmica de exploração pelas potências ocidentais.

Inúmeras parcerias entre empresas chinesas estatais e privadas com países do Sul Global têm sido estabelecidas no último período, muitas delas relacionadas ao processamento local de minerais de alta demanda, ou à produção de carros elétricos.

Por exemplo, bilhões de dólares estão sendo investidos pela China em fábricas de processamento de lítio na Bolívia, em uma mega usina siderúrgica e uma fábrica de lítio no Zimbábue, em plantas de processamento de níquel na Indonésia e um hub de fábricas de veículos elétricos no Marrocos.

Há uma grande expectativa de que iniciativas regionais, como a NRS, o BRICS 11 e a Organização de Cooperação de Xangai, possam servir como alavancas desse processo, ainda que enfrentem oposição das potências ocidentais.

Sem esse esforço de industrialização, os povos do Sul Global não conseguirão superar os profundos problemas que ainda enfrentam, como a fome, o desemprego, a falta de acesso à educação, à moradia e à saúde de qualidade. Por outro lado, isso não será possível apenas pelas relações com a China (ou com a Rússia).

Sem o fortalecimento dos projetos populares nacionais, contando com ampla participação de setores sociais progressistas, sobretudo das classes populares, dificilmente os frutos de um eventual ciclo de desenvolvimento serão colhidos por aqueles que mais precisam. Porém, são raros os países do Sul Global que vivem processo de ascensão das lutas de massas.

Por isso, ainda é muito difícil vislumbrar uma “terceira onda socialista” global, mas uma nova onda desenvolvimentista – que pode tomar um caráter progressista – parece viável. A contradição principal da nossa época é o imperialismo. E todos os esforços para enfrentá-lo são estratégicos.

Não há dúvida de que a China, assim como a Rússia, têm sido tão atacadas pelas potências imperialistas exatamente porque construíram fortes nações soberanas nas últimas décadas.

Além disso, a China e, em menor medida, a Rússia oferecem um leque de capacidades industriais, tecnológicas, financeiras, comunicacionais e militares às quais o Sul Global nunca teve acesso. Isso amplia as opções do Sul Global e tem o potencial de enfraquecer a hegemonia das potências ocidentais.

Não foi exatamente isso que faltou para o sucesso do “projeto do terceiro mundo” entre os anos 1950 e 1970, quando ocorreu a grande onda de processos de libertação nacional e de desenvolvimentismo, cujos sonhos foram abortados pelo neoliberalismo e pela máquina de guerra do Império?

Marco Fernandes é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, co-fundador do Coletivo Dongsheng, membro da campanha Basta de Guerra Fria. Colabora com artigos e entrevistas para diversas mídias, sobretudo no Brasil, China e Rússia. Bacharel e Mestre em História, Doutor em Psicologia Social (todos pela Universidade de São Paulo, Brasil). Contribui com organizações populares do Sul Global. Mora em Pequim.

Texto publicado originalmente no site The Tri Continental

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