Investigação revela clima de intimidação e silenciamento dentro da Abin ao redor do uso do sistema First Mile para monitoramento ilegal
Em depoimento realizado nesta sexta-feira (23), o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), delegado Carlos Afonso Gonçalves Gomes Coelho, revelou que o então diretor do Departamento de Operações de Inteligência, Paulo Maurício, reagiu com agressividade ao ser informado sobre uma investigação interna sobre a legalidade do uso do sistema de monitoramento “First Mile”.
Coelho, que atuou como testemunha de defesa do ex-diretor-geral da Abin e atual deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), fez essas declarações no contexto de um processo que investiga uma suposta tentativa de golpe orquestrada por aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ramagem, que é réu na ação, também é alvo de uma investigação da Polícia Federal (PF) por suspeita de comandar espionagem ilegal contra autoridades durante sua gestão na Abin.
Segundo o relato do delegado, ao solicitar informações ao oficial Marcelo Furtado, responsável pelo contrato do “First Mile”, sobre a regularidade do software, ele ouviu do servidor que “não se sentia à vontade para atestar o que havia sido solicitado”. Diante da resposta evasiva, Coelho orientou Furtado a consultar seu superior, Paulo Maurício.
“Depois, eu tive uma interação com o diretor do Departamento de Operações de Inteligência, Paulo Maurício, que foi ríspido, agressivo, disse que eu não tinha que me imiscuir em assuntos da atividade-fim, que não deveria ser tratado no âmbito da direção adjunta e se negou a prestar qualquer esclarecimento adicional”, afirmou Coelho.
O delegado, que tinha a função de verificar a legalidade das contratações da Abin, declarou que a postura hostil de Maurício levantou suspeitas sobre a legitimidade do sistema dentro da agência.
“Diante da manifestação, tanto do gestor do contrato, oficial de inteligência Marcelo Furtado, dizendo que não se sentia à vontade, quanto do diretor de Operações de Inteligência, que foi agressivo, ríspido e indelicado no trato, eu disse que não ia homologar essas informações e submeti à consideração do diretor-adjunto que era o responsável legal para atestar a regularidade da utilização da ferramenta”, explicou.
O caso foi encaminhado ao então diretor-geral Alexandre Ramagem, que determinou a abertura de um procedimento corregedor por meio da Ouvidoria da Abin.
O que é o “First Mile”?
A PF investiga um suposto esquema de espionagem ilegal dentro da Abin, batizado de “Abin Paralela”, que teria utilizado o sistema “First Mile” para rastrear a localização de cidadãos por meio de dados de telefonia móvel. A ferramenta permitia monitorar aparelhos conectados às redes 2G, 3G e 4G, fornecendo históricos de deslocamento e alertas em tempo real sobre a posição de um alvo.
De acordo com as investigações, servidores e funcionários da Abin formaram uma organização criminosa para vigiar autoridades públicas, incluindo membros do Judiciário, Legislativo e jornalistas. Entre os supostos alvos estariam o ministro do STF Alexandre de Moraes, o ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) e o senador Renan Calheiros (MDB-AL).
A Procuradoria-Geral da República (PGR) afirmou, em denúncia enviada ao Supremo, que o núcleo ligado a Ramagem “atuava como central de contrainteligência da organização criminosa que, por meio dos recursos e ferramentas de pesquisa da Abin, produzia desinformação contra seus opositores”.
Além do “First Mile”, a PGR identificou o uso de outros sistemas para ocultar rastros e monitorar alvos considerados mais sensíveis. O esquema teria operado durante o governo Bolsonaro e vem sendo apurado desde 2023.
O caso continua em andamento, com novas investigações sobre o possível desvio das funções de inteligência do Estado para fins políticos.
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