A carne bovina perde força, o café recua e a laranja amarga desvalorização antes mesmo da nova tarifa americana entrar em vigor
Enquanto o governo dos Estados Unidos ainda não aplicou oficialmente as novas tarifas sobre produtos brasileiros, os efeitos já começam a ser sentidos nas prateleiras do atacado brasileiro. Com o anúncio da elevação da alíquota de importação de 10% para 50% a partir de 1º de agosto, setores estratégicos da agropecuária nacional estão vivendo um cenário de instabilidade e queda de preços, especialmente na comercialização de commodities destinadas ao mercado norte-americano.
A carne bovina, um dos principais pilares da exportação brasileira, foi a mais afetada até agora. Segundo dados do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA), ligado à Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP, o preço do boi gordo cotado em dólares já acumula uma queda de 8,05% apenas no mês de julho. Ontem, 23 de julho, a arroba foi negociada a US$ 53,20, valor bem abaixo dos US$ 58 registrados no início do mês. A desvalorização, ainda que antecipada, reflete a cautela dos compradores internacionais e a retração no fluxo de negócios diante da perspectiva de custos mais altos para os importadores americanos.
A laranja também sentiu o impacto. A caixa com 40,8 quilos, entregue aos processadores para suco, viu seu valor em dólar cair 5% em julho. Passou de US$ 8 para US$ 7,60 no último fechamento de negócios. O setor, que já enfrenta desafios climáticos e de produtividade em algumas regiões produtoras, agora precisa lidar com uma pressão adicional vinda do mercado externo. Com o Brasil sendo o maior exportador mundial de suco de laranja, qualquer mudança nas condições de acesso ao mercado dos EUA tem reflexo direto na renda dos produtores.
O café, especialmente o tipo arábica — o mais consumido nos Estados Unidos —, também entrou em trajetória de queda. Até ontem, o recuo acumulado no mês era de 4,18%. Já o robusta, menos consumido nos EUA mas com forte presença em outros mercados, registrou uma queda ainda mais acentuada: 11,41%. O CEPEA destaca em seu relatório mensal que “o anúncio dos Estados Unidos sobre a tarifa de importação, de 10% para 50%, a partir de 1º de agosto, aumentou as incertezas no setor global de café. Essa mudança abrupta aumenta a instabilidade no Brasil, líder global nas exportações de arábica, e influencia as cotações no exterior”.
É importante lembrar que o Brasil é responsável por cerca de um terço de todo o café consumido nos Estados Unidos. Enquanto isso, países como a Colômbia, segundo maior fornecedor do mercado americano com 20% das importações, seguem isentos de tarifas. Já o Vietnã, grande exportador de robusta, enfrenta uma alíquota de 20% — bem abaixo da nova taxa prevista para o Brasil. Essa diferença cria um desequilíbrio competitivo que preocupa produtores e analistas do setor.
Chama a atenção, no entanto, o contraste entre o que acontece aqui e o que se vê do outro lado do continente. Enquanto os preços caem no atacado brasileiro, nos Estados Unidos os consumidores enfrentam exatamente o oposto: alta nos preços ao consumidor. Dados do CPI (Índice de Preços ao Consumidor) divulgados recentemente mostram que itens como carne moída, laranja e café subiram nos EUA ainda antes do anúncio das tarifas.
Em junho, a carne moída teve alta de 1,4%, acumulando 9% de aumento no ano. Alguns economistas já começam a apontar a carne como o “novo ovo” na inflação americana — uma referência direta ao forte reajuste que os ovos sofreram nos últimos meses por conta da gripe aviária. Já a laranja subiu 4,4% em junho ante maio, e o café para consumo doméstico teve alta de 2,2% no mesmo período.
O curioso é que essas altas ocorreram antes mesmo do anúncio, em 9 de julho, da nova política tarifária. Agora, com as tarifas prestes a entrar em vigor, há expectativa de que os preços nos EUA sigam subindo, o que pode aumentar ainda mais o custo de vida dos americanos. Por outro lado, os produtores brasileiros, que dependem fortemente do mercado norte-americano, podem ver seus rendimentos comprimidos, mesmo com a demanda interna estável.
O momento exige atenção redobrada de todos os elos da cadeia produtiva. Enquanto o governo brasileiro busca alternativas diplomáticas e novos mercados, produtores enfrentam decisões difíceis: segurar a produção, diversificar destinos ou aceitar preços mais baixos em um cenário de incerteza. O que antes era uma expectativa distante agora se tornou realidade econômica — e o Brasil começa a pagar o preço antes mesmo da tarifa começar a valer de fato.
Trump justifica tarifa de 50% com narrativa política, mas dados revelam contradição em discurso protecionista

Enquanto os produtores brasileiros sentem no bolso os primeiros efeitos da decisão de Donald Trump de impor tarifas de 50% sobre todos os produtos brasileiros a partir de 1º de agosto, o próprio presidente norte-americano se apresenta como vítima de uma suposta “perseguição” do Brasil — uma narrativa que, ao ser confrontada com dados concretos, parece mais uma jogada de pressão política do que uma análise objetiva das relações comerciais entre os dois países.
Durante um evento em Washington na noite de quinta-feira (23), Trump afirmou que as tarifas foram aplicadas a países com os quais o relacionamento “não tem sido bom”, sem citar nomes, mas deixando claro que o Brasil está no grupo dos punidos com a alíquota mais alta. “Em alguns casos, é 50% porque o relacionamento não tem sido bom com esses países. Então apenas dissemos: ‘vão pagar 50’. E é isso”, declarou, com o tom característico de confronto que marcou seu governo.
O que chama atenção, no entanto, é a justificativa apresentada por Trump para um aumento tão drástico: acusações de censura feitas pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro contra plataformas de mídia social nos EUA. Em uma carta publicada em 9 de julho, o presidente americano afirmou que o Brasil teria emitido “centenas de ordens de censura SECRETAS e ILEGAIS” contra empresas como X (antigo Twitter), ameaçando-as com multas milionárias e expulsão do mercado brasileiro. Para ele, isso representaria uma “violação da liberdade de expressão dos americanos”.
Também aproveitou a carta para atacar o presidente Lula e reforçar seu apoio a Jair Bolsonaro, a quem chamou de vítima de uma “caça às bruxas” no Brasil. O tom, claramente político, mistura temas jurídicos, comerciais e ideológicos numa estratégia que muitos analistas veem como mais uma manobra eleitoreira — Trump busca se posicionar como defensor da liberdade de imprensa e do “homem comum” contra governos que considera autoritários, mesmo que os fatos contem outra história.
O problema é que os números mostram uma realidade bem diferente daquela pintada por Trump. Apesar de afirmar que a relação comercial com o Brasil é “injusta” e “longe de ser recíproca”, os dados oficiais do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços revelam que o Brasil tem um déficit comercial persistente com os Estados Unidos há 16 anos — desde 2009. Nesse período, o saldo negativo já ultrapassa US$ 88,61 bilhões, o equivalente a cerca de R$ 484 bilhões na cotação atual. Em outras palavras: os EUA vendem muito mais para o Brasil do que compram dele.
Se a relação fosse tão desequilibrada a favor do Brasil, como insinua Trump, seria difícil explicar esse cenário. O país americano é um dos maiores fornecedes de bens de capital, aviões, automóveis, produtos farmacêuticos e tecnologia para o Brasil. Já as exportações brasileiras para os EUA, embora importantes — especialmente em carne, café, suco de laranja, açúcar e minério —, não chegam perto do volume importado.
Além disso, a alegação de que o Brasil estaria censurando plataformas americanas com “ordens secretas” também foi desmentida por especialistas em direito digital e transparência. As decisões do STF, embora controversas, são públicas, estão disponíveis nos sistemas oficiais do Judiciário e seguem trâmites legais. Muitas delas foram tomadas em resposta a disseminação de desinformação, ataques às instituições democráticas e à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 — eventos que, aliás, contaram com apoio explícito de Trump ao ex-presidente Bolsonaro.
Na prática, o que se vê é um presidente dos EUA usando sua influência econômica para punir um país que não se curva às suas pressões políticas, sob o disfarce de “defesa da liberdade”. A medida, no entanto, pode sair pela culatra. Enquanto o Brasil perde espaço no mercado americano, consumidores norte-americanos poderão pagar mais caro por produtos como café, suco de laranja e carne — itens que já estão em alta no varejo dos EUA, como mostram os dados do CPI.
Especialistas alertam que o protecionismo agressivo de Trump, longe de fortalecer a economia americana, tende a desestabilizar cadeias produtivas globais e gerar retalições. O governo brasileiro, por sua vez, já iniciou articulações diplomáticas e avalia respostas, incluindo a possibilidade de levar o caso à Organização Mundial do Comércio (OMC). O presidente Lula, que já chamou Trump de “imperador do mundo”, reforça que o Brasil não aceitará chantagens.
O que está em jogo vai além de números e tarifas. É um choque entre dois modelos: um baseado em diálogo, multilateralismo e regras internacionais; e outro, movido por imposições unilaterais e retórica de confronto. E, enquanto os produtores brasileiros sentem o peso da decisão, o mundo assiste a um teste de resistência da ordem comercial global — e a um lembrete de que, muitas vezes, as guerras comerciais começam com palavras, mas terminam no prato do consumidor.


Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!