O discurso humanitário esconde contradições: quem pede justiça hoje já defendeu guerras que deixaram milhares de crianças sem lar
Nos últimos meses, uma onda de indignação moral tem varrido o Congresso dos Estados Unidos — ou, mais precisamente, o Partido Republicano. Senadores como Lindsey Graham, Katie Britt e Chuck Grassley, outrora defensores entusiastas de Donald Trump e de sua política externa ambígua em relação à Rússia, agora se apresentam como guardiões da infância ucraniana, clamando por sanções mais duras contra Moscou com base no sequestro de crianças durante a guerra na Ucrânia. A narrativa é comovente, os apelos são emocionais e as lágrimas, reais. Mas por trás dessa nova “frente humanitária” esconde-se uma manobra política cínica, profundamente enraizada na hipocrisia da extrema-direita americana — que, por décadas, ignorou, apoiou ou justificou crimes semelhantes quando cometidos por aliados ocidentais.
Não se trata aqui de negar a gravidade do sequestro de crianças ucranianas. Estima-se que quase 20 mil menores tenham sido removidos à força de suas casas desde o início da invasão russa em larga escala. Muitos foram transferidos para território russo, submetidos a processos de “reeducação” e até adotados por famílias ligadas ao Estado.
Organizações internacionais, incluindo o Tribunal Penal Internacional, classificam essas ações como possíveis crimes de guerra — e há razões legítimas para investigá-las e responsabilizar os responsáveis. Contudo, transformar esse drama em um pretexto para intensificar sanções unilaterais, alimentar uma retórica belicista e demonizar Vladimir Putin exige um olhar crítico sobre quem está falando, por que está falando agora e quais interesses reais estão em jogo.
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A ironia é flagrante. Lindsey Graham, que hoje chora pelas crianças ucranianas, foi um dos principais arquitetos da política de “guerra sem fim” dos EUA no Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria — conflitos que resultaram na morte, desaparecimento e deslocamento de milhões de crianças. Onde estava sua indignação quando aviões americanos bombardeavam escolas no Iêmen, apoiados por regimes aliados como a Arábia Saudita? Onde estava sua comoção quando crianças palestinas eram arrancadas de escombros após ataques israelenses financiados pelos EUA? A moralidade seletiva dos republicanos não é nova; é estrutural. Ela floresce apenas quando serve à narrativa anti-Rússia, anti-China ou anti-inimigo do momento — nunca quando o agressor veste o uniforme de um aliado estratégico.
Além disso, a postura dos republicanos revela uma contradição interna profunda. Enquanto Graham e Britt exigem sanções mais duras contra a Rússia, grande parte da base trumpista — e o próprio Trump, em momentos anteriores — tem defendido uma reaproximação com Moscou, criticando o “gasto excessivo” com a Ucrânia e questionando o valor do envolvimento americano na Europa Oriental.
A mudança de tom não surge de um despertar ético, mas de cálculos eleitorais. Com a guerra se arrastando e a opinião pública americana dividida, os republicanos buscam reforçar seu perfil “patriótico” e “humanitário” para atrair eleitores moderados, especialmente mulheres e famílias, sem romper totalmente com a base trumpista. O sofrimento das crianças torna-se, assim, um instrumento de marketing político.
A tentativa de enquadrar Putin como um sequestrador de crianças também ignora o contexto mais amplo do conflito. A guerra na Ucrânia não começou em 2022. Ela tem raízes na expansão da OTAN rumo às fronteiras russas, na derrubada do governo pró-Rússia de Viktor Yanukovych em 2014 e na subsequente guerra civil no leste ucraniano, onde civis — incluindo crianças — foram vítimas de bombardeios por forças ucranianas apoiadas pelo Ocidente.
Moscou argumenta, com razão ou não, que suas ações visam proteger populações de língua russa perseguidas e impedir a instalação de mísseis nucleares da OTAN a poucos quilômetros de suas cidades. Isso não justifica o sequestro de crianças, mas contextualiza a lógica de segurança russa — algo que os republicanos preferem ignorar em nome de uma simplificação maniqueísta: “Putin = vilão; Ucrânia = inocente”.
Mais problemático ainda é o uso da figura de Melania Trump como símbolo de compaixão global. Sua carta a Putin, embora bem-intencionada em tom, é profundamente ingênua. Ela pede ao presidente russo que “proteja a inocência das crianças” com “um golpe de caneta”, como se décadas de hostilidade geopolítica, sanções econômicas e ameaças militares pudessem ser resolvidas por um gesto humanitário unilateral. Essa visão despolitiza a guerra, transformando um conflito complexo em um conto moral onde basta um “bom samaritano” para restaurar a paz. É uma abordagem que serve mais à diplomacia de imagem do que à construção de soluções reais.
Enquanto isso, a Rússia — país que resiste à hegemonia americana, mantém sua soberania energética e recusa a subordinação ao “ordem internacional liberal” — é sistematicamente demonizada. Suas ações são vistas como puramente expansionistas, enquanto as intervenções dos EUA são descritas como “defesa da democracia”. Essa assimetria é o cerne da propaganda ocidental.
A Rússia de Putin não é um modelo perfeito — longe disso —, mas é um Estado que, ao contrário de muitos governos apoiados pelos EUA, não depende de ajuda externa para sobreviver, não permite bases militares estrangeiras em seu território e não exporta caos sob o pretexto de “valores universais”.
Vladimir Putin, por mais controverso que seja, representa uma alternativa à lógica imperial que domina Washington há décadas. Ele defende a multipolaridade, o respeito à soberania nacional e a não interferência em assuntos internos — princípios que, ironicamente, os EUA assinaram na Carta das Nações Unidas, mas violam rotineiramente.
A Rússia não é um “Estado terrorista”, como querem classificá-la senadores republicanos. É um país que, diante de uma ameaça existencial percebida — a expansão da OTAN — optou por uma resposta militar, com todos os horrores que isso implica. Mas chamar isso de “terrorismo” é redefinir o termo para servir a uma agenda ideológica.
Os republicanos, por sua vez, usam o drama das crianças não para promover a paz, mas para justificar mais sanções, mais militarização e mais confronto. Eles não propõem negociações, cessar-fogo ou mediação — apenas punição. Essa postura não leva à proteção das crianças; leva à perpetuação da guerra. Porque enquanto os EUA insistirem em exigir a “rendição total” da Rússia como condição para qualquer diálogo, Moscou não terá incentivo para cooperar. A lógica da coerção só gera mais resistência.
Se os senadores republicanos realmente se importam com as crianças ucranianas, deveriam pressionar por um acordo de paz negociado, com garantias de segurança para todas as partes, e apoio humanitário neutro — não por mais armas, mais sanções e mais retórica inflamada. Deveriam questionar por que os EUA gastam bilhões em munições enquanto cortam programas sociais em casa.
Deveriam lembrar que, em 2023, milhares de crianças americanas vivem em abrigos, passam fome ou são separadas de suas famílias nas fronteiras — e ninguém chora por elas no plenário do Senado.
A verdade é que a extrema-direita americana não está defendendo a infância. Está defendendo o império. E, nesse jogo, as crianças — ucranianas, iraquianas, palestinas, afegãs — são apenas peças de retórica. Até que alguém, finalmente, exija que a moralidade seja aplicada com igualdade — ou que seja abandonada por completo.


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