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Kleber Mendonça Filho: a resistência à lavagem cerebral da mídia está nos blogs

Arpeggio – Coluna política do editor Por Miguel do Rosário, em 25/09/2016 Priscila Miranda, minha esposa, tem uma empresa de distribuição de filmes, a Fênix. Dias atrás, ela voltou de uma viagem a trabalho à França e trouxe jornais e revistas de lá. E fez algumas observações sobre o estrondoso sucesso do filme Aquarius, de Kleber […]

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Arpeggio – Coluna política do editor

Por Miguel do Rosário, em 25/09/2016

Priscila Miranda, minha esposa, tem uma empresa de distribuição de filmes, a Fênix. Dias atrás, ela voltou de uma viagem a trabalho à França e trouxe jornais e revistas de lá. E fez algumas observações sobre o estrondoso sucesso do filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho: há publicidade do filme em toda Paris e entrevistas com o diretor em todos os meios de comunicação.

De fato, vejo a propaganda do filme na capa do Le Monde, edição de 22 de setembro de 2016. Observe que é a única publicidade presente na capa do jornal.

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Sobre o Le Monde, não tenho nada a comentar a não ser sobre a mediocridade de sua correspondente, a Claire Gatinois, que assina uma pequena matéria insípida sobre a crise política brasileira. Ela é a mesma que obrigou o jornal a pedir desculpas a seus leitores por repetir as ladainhas golpistas da mídia brasileira. Depois disso, Gatinois está mais contida, um pouco mais desconfiada da mídia tradicional, mas ainda é incapaz de apreender o que está em jogo.

Na edição de setembro da Cahiers du Cinema, uma das mais prestigiadas revistas de cinema do mundo, há uma longa entrevista com Kleber Mendonça Filho, com chamada na capa. Quem se interessar por lê-la na íntegra, no original, pode clicar aqui (parte 1) e aqui (parte 2). Traduzo abaixo o trecho da entrevista que trata da situação política brasileira:

Cahiers du Cinema: Qual é o seu sentimento em relação à situação política atual, neste mês de maio, no Brasil.

Kleber: Horrível. A direita, descontente por ter sido excluída do poder desde trinta anos, decidiu voltar ao poder a todo custo. Certamente, ela não utiliza mais armas de fogo, mas todos os outros meios são considerados bons para derrubar o governo de Dilma Rousseff. Os meios de comunicação, caracterizados pelo mesmo cinismo, agem inteiramente a serviço da oposição. A resistência a este processo de lavagem cerebral existe em plataformas ainda não institucionalizadas, como os blogs, mas ela ainda é extremamente isolada e marginalizada. A situação é totalmente absurda, a mentira se tornou verdade e a verdade é percebida como uma mentira. Os políticos de direita proclamam que Dilma é corrupta, mas isso é a última coisa que se pode dizer dessa mulher. Ela pode não ser uma boa presidenta, mas está entre as pessoas mais honestas da política brasileira. Mas quando a mídia repetem sem fim a mesma mentira, as pessoas acabam por acreditar. A imbecilidade e o acerto de contas reinam. 

Eu queria saber como a mídia brasileira pretende apagar, dos anais da nossa história, todas essas acusações que se lhe fazem, de ter participado, mais uma vez, da articulação de um golpe e enganado milhões de pessoas.

Outro assunto que eu queria comentar, neste domingo chuvoso, é sobre o livro Juristocracia (Juristocracy), do canadense Ran Hirschl. Lançado em 2004, pela editora de Harvard, já se tornou um clássico. Nele, encontraremos elementos para nossos debates, aqui no blog, acerca da judicialização da política.

Hirschl tem uma visão crítica do processo, em curso em quase todo o mundo, de transferência de poder das esferas democráticas do sistema político, para o judiciário. Ele estuda quatro casos: Reino Unido, Nova Zelândia, África do Sul e Israel. Sublinhei algumas frases, que nos ajudarão a iniciar um debate usando este livro como ferramenta.

Ao final da introdução, o autor resume a sua tese da seguinte maneira:

(…) eu argumento que a tendência global, na direção de empoderamento judicial através da constitucionalização, deve ser entendida como parte de um processo maior, através do qual a soberania política é crescentemente transferida, por elites hegemônicas, das arenas controladas pela maioria da população para instâncias técnicas, semiautônomas, com objetivo de isolar as políticas públicas das vicissitudes do processo democrático.

Eu acho que a academia brasileira deveria trazer Hirschl ao Brasil para conhecer o que está acontecendo aqui: seria muito útil para que o intelectual identificasse, em nosso país, um dos exemplos mais terríveis e perigosos das consequências da “juristocracia”.

Afinal, como o próprio autor explica: embora a “juristocracia” tenha sido criada para conter os excessos da maioria, ou seja, para reduzir o índice democrático, ela teria a vantagem (duvidosa, segundo ele) de garantir as liberdades individuais e o direito das minorias.

O que aconteceria, porém, se o aumento do poder judicial, como vemos no Brasil, servisse a um propósito exatamente oposto: reduzir garantias constitucionais e liberdades individuais, além de servir de base para violar a soberania popular do voto?

A juristocracia brasileira é um caso excepcional que precisa ser estudado por acadêmicos do mundo inteiro, porque mostra as consequências mais drásticas do processo de transferência de poder ao judiciário.

Para Hirschl, “o empoderamento judicial através da constitucionalização oferece um refúgio conveniente para políticos que tentam evitar ou postergar determinadas ações políticas. Conflitos envolvendo polêmicas de ordem política são tratados primeiramente como questões jurídicas, ao invés de questões políticas, com a concomitante conclusão de que as cortes superiores, ao invés de representantes eleitos, deveriam resolvê-las.”

O golpe no Brasil nos faz viver, então, no pior dos mundos, porque as nossas questões não são resolvidas nem de forma política, visto que o voto é rasgado, nem de forma jurídica, na medida em que não se respeitam mais os princípios constitucionais, como a presunção da inocência e a necessidade de provas para se indiciar ou condenar alguém.

Ainda Hirschl, na introdução:

Do ponto-de-vista dos políticos, a delegação de poder ao judiciário envolve considerável risco no longo prazo: a erosão da imagem pública das cortes superiores como corpos autônomos e apolíticos; o uso, pela oposição, do judiciário como instrumento de ataque aos governos; e sobretudo o dilema da representatividade – como assegurar que uma vez que a esfera política transfere poder para membros do judiciário, através de nomeações previstas em lei, esses membros irão produzir julgamentos que reflitam as preferências ideológicas daqueles que lhes nomearam [ou seja, que serão julgamentos alinhados ao espírito democrático?].

Ora, neste parágrafo temos uma lista resumida dos problemas políticos provocados pela “juristocracia” brasileira: o STF não é mais visto como um órgão apolítico e sim como participante ativo do jogo partidário; a oposição, partidária, social e, sobretudo, midiática, conseguiu instrumentalizar o STF para que este servisse a seus interesses; as nomeações de ministros do Supremo por parte dos governos petistas não lhes garantiu nenhuma representatividade no órgão, visto que os nomeados não se vêem como representantes das tendências ideológicas seguidas por aqueles que lhes nomearam, e sim como forças independentes, volúveis, que escolhem o caminho a seguir de acordo com a correlação de forças que percebem no jogo bruto do poder.

Por fim, a juristocracia, segundo Hirschl, teria uma tendência muito clara na defesa de um neoliberalismo político, “com ênfase no individualismo Lockeano e nos aspectos mais elitistas e antiestatistas dos direitos constitucionais”.

Triste constatar que, no Brasil, ficamos apenas com os “aspectos elitistas e antiestatistas” dos direitos. Com a escola Sergio Moro, que despreza abertamente a presunção da inocência e defende uma “excepcionalidade relativa” no combate à corrupção, até mesmo o “individualismo Lockeano” foi abolido.

No Brasil se desenvolveu o tipo mais autoritário, politicamente tendencioso e midiático de juristocracia!

Voltaremos a discutir as teorias de Hirshl aqui no blog. Os golpistas – da mídia, do governo, do judiciário – podem ter nos furtado a democracia e as garantias constitucionais, mas terão dificuldades maiores para nos roubar a liberdade de pensar.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Comentários

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Maria Kieaf

06/10/2016 - 04h23

Pedro tiete

26/09/2016 - 10h25

A bíblia foi a grande mídia durante 2000 anos , a nossa mídia vai perdurar pelo menos 300 então meu amigo o que fazer, eu estou perdendo todas as esperanças, vou me isolar , fui .

Mauro Pinto

26/09/2016 - 10h13

Miguel,

não acho que seja uma juristocracia, mas a mesma plutocracia usando o judiciário como instrumento

    migueldorosario

    18/12/2016 - 22h52

    Sim, bem colocado. Isso deve explicar a diferença com a juristocracia de Hirschl.

Maria Luiza Quaresma Tonelli

26/09/2016 - 01h04

Esse debate é necessário e urgente.

marco

25/09/2016 - 21h50

Pois eu continuo achando,que uma das formas de RELATIVIZAR A JUDICIALIZAÇÃO DO PARTIDARISMO POLÍTICO,que é do que estamos falando,e não precisamente de POLÍTICA,posto que política quer dizer,RELAÇÕES HUMANAS EM SOCIEDADE,seria utilizar uma das armas da POLÍTICA,através da OUTORGA.Acho que a outorga,ainda que não resolva todo o problema,pelo menos iguala DIREITOS.O JUDICIÁRIO,que se constitui em um dos PODERES,não dependeria de indicações, mesmo que tais indicações resultem dos eleitos pelo voto, e se constituiria como poder,sendo VOTADOS POR TODO O POVO.Teriam mandatos por tempo determinado.Acho que essa forma,relativizaria a questão.

Sandra Francesca de Almeida

26/09/2016 - 00h19

Excelente, Miguel Do Rosario.

Sheila Melgarejo

25/09/2016 - 23h58

Muito bom, Miguel. Obrigada pela dica do livro.


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