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Crisis e os moradores de rua no Reino Unido: a comodificação do altruísmo?

foto: independet.co.uk por Mariana T Noviello, correspondente internacional do Cafezinho No final do ano resolvemos fazer algo mais natalino do que nos deixar levar pelo consumismo exacerbado que se traduz na compra de presentes desnecessários e insensata comilança. Época de forçadas relações familiares e falsas alegrias, a comemoração do natal normalmente pouco tem a ver […]

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foto: independet.co.uk

por Mariana T Noviello, correspondente internacional do Cafezinho

No final do ano resolvemos fazer algo mais natalino do que nos deixar levar pelo consumismo exacerbado que se traduz na compra de presentes desnecessários e insensata comilança.

Época de forçadas relações familiares e falsas alegrias, a comemoração do natal normalmente pouco tem a ver com a aparente vinda de um profeta-Deus.

Em visita ao meu cunhado, discutíamos junto com nossas filhas adolescentes as levas de refugiados atravessando a bem-provida Europa em busca de algum abrigo, quando surgiu a ideia de convidarmos um ou alguns refugiados para passar o Natal conosco.

Isso não aconteceu, mas a semente do ‘dar’ em vez de ‘receber’ foi crescendo. Resolvemos – eu, minha filha e marido – passar os dias festivos voluntariando para uma das maiores instituições que atuam em prol dos sem-teto no Reino Unido, a Crisis.

Crisis foi criada no final dos anos 60, em reação à (agora ícone) peça de televisão, “Kathy Come Home”, de Ken Loach, que descreve como uma família normal acaba desabrigada durante os primeiros anos da formação do estado de bem-estar social britânico.

Na Crisis, recebemos alguns dados como parte do nosso treinamento:

Em 2015, se via, a cada noite, quase 4 mil pessoas dormindo nas ruas inglesas, um aumento de 30% em comparação ao ano passado e quase o dobro do número de pessoas em 2010.

Este número não inclui os que moram em pensões, acomodação de emergência, no chão de amigos, ou em ocupações ilegais. Ainda em 2015, o governo informou que cerca de 60 mil famílias não tinham onde morar e mais de 250 mil pessoas procuraram as secretarias de habitação municipais inglesas buscando ajuda com moradia.

2007-8 viu o menor número de sem-teto (mostrando que os efeitos das crises não são imediatos). Neste período, um núcleo duro de aproximadamente 200 pessoas vivia nas ruas de Londres, enquanto que novos sem-teto eram facilmente detectados e a Crisis chegou a acreditar que estava ganhando a ‘guerra contra a falta de abrigo’.

A crise global trouxe também a mudança de governo. E a coalizão dos Conservadores com os Lib-Dems, liderada por David Cameron, resultou em cortes de serviços públicos. Política que recebeu o aval da população, já que – como reza o mantra neoliberal regurgitado pela mídia – o Partido Trabalhista tinha desperdiçado recursos em ineficazes políticas sociais, e por isso, a crise.

Porém, estudos mostram que os cortes alardeados como ‘ganhos de eficiência’ e medidas contra aqueles que ‘tiram vantagem’ ou ‘se beneficiam’ das benesses governamentais invariavelmente afetam os mais vulneráveis em vez dos ‘espertinhos’.

Cortes de auxílio-moradia e serviços para pessoas com problemas mentais (80% dos moradores de rua sofrem de algum tipo de problema mental), cortes na saúde e serviços sociais em geral, na educação para jovens com necessidades especiais (em 2006, 37% dos moradores de rua não tinham nenhum tipo de educação formal) são alguns dos fatores que levaram ao aumento de moradores de rua.

Outros motivos foram a recessão em si, o subemprego e a xenofobia. Em Londres, no ano passado, 35% dos moradores de rua eram cidadãos dos países do Leste Europeu. Muitos estão na rua porque perderam o emprego que às vezes incluía também acomodação.

Isso se refletiu no nosso centro onde os europeus do Leste formavam um grupo considerável.

Um deles me contou que a empresa onde trabalhava quebrou, que estava naquela situação havia 22 dias, mas que esperava encontrar um emprego logo, agora que tinha onde passar a noite.

Outro grupo relevante no nosso abrigo era o dos africanos, refugiados da Eritréia, Sudão e Somália. No total, eles representam 2% dos moradores de rua em Londres.

Os cortes de repasses do governo central às prefeituras levaram à uma leitura restrita da legislação habitacional. Agora, somente aqueles grupos descritos como “prioritários” e aos quais se aplicam certas condições, recebem ajuda governamental.

Retratada no mais recente filme de Ken Loach “Eu, Daniel Blake”, a situação em Londres é tão grave que as prefeituras estão colaborando com a ‘limpeza social’ da cidade e desestruturando famílias, mandando mães solteiras (como a Katie do filme) e outros grupos prioritários para viver fora da cidade (onde o aluguel é bem mais barato, mas há menos oportunidades de emprego).

Como já tinha me acontecido em 2008 quando fui à trabalho a Angola, achando que iria encontrar grandes tragédias nas ruas de Luanda, me preparei emocionalmente. Em Angola, a realidade (talvez felizmente) não me afetou tanto como esperava, acostumada a ver nos telejornais cenas de guerra com cidades destruídas e crianças famintas atingidas por minas.

Minha surpresa veio do fato de que Luanda, na época, me pareceu ao menos funcional – com muita pobreza sim – mas com suas alegrias e tristezas, música, sons e afazeres do cotidiano, necessários à vida dos seres humanos.

Assim no abrigo da Crisis. Minha preparação emocional se revelou desnecessária.

Durante o treinamento me perguntava o porquê de tantos voluntários generalistas. O que faríamos? Entendia a necessidade de especialistas: cozinheiros, médicos, cabelereiros, costureiras, enfermeiras. Mas nós? O público em geral?

Seríamos quase 12 mil voluntários para uma população de 4,500 sem-teto. Quase 4 voluntários para cada morador de rua…

Imaginem só, uma das mais frequentes reclamações dos sem-teto é a invisibilidade. E durante 10 dias do ano eles teriam o direito de ser tratados como reis: pessoas para abrir as portas, pessoas para servir comida na mesa, pessoas com quem jogar cartas. Pessoas.

Minha filha brincava a caminho do centro e, na bicicleta, cantarolava ironicamente: “Vamos trabalhar na Crisis, vamos fazer Gap Duty, vamos bloquear as portas para os sem-teto não entrar”.

Brincadeira a parte, é verdade que nosso tempo foi bastante consumido pelo chamado Gap Duty, isto é, duas pessoas sentadas na frente de alguma porta ou sala de atividades, banheiros, dormitórios improvisados, etc., vigiando.

Na verdade, o exercício, um tanto estranho, tem vários motivos:

Primeiro porque os centros temporários têm geralmente outras funções. O nosso era uma escola, com muitas áreas restritas às chamadas “visitas”.

Segundo, por uma verdadeira necessidade de vigilância. Afinal, estávamos lidando com pessoas vulneráveis, várias sob a influência do álcool ou drogas. E daí a necessidade de estarmos em dois.

E terceiro, a razão mor de todo o nosso trabalho, nós meros generalistas: nos relacionar com o sem-teto.

O imenso esforço da Crisis durante o natal (Crisis@christmas), um exército de 12 mil voluntários mobilizado para 10 dias, milhares de libras esterlinas arrecadadas. Tudo isso não é prioritariamente para os moradores de rua. É para nós mesmos.

Em primeiro lugar, Crisis@christmas existe para aliviar os abrigos que funcionam o ano todo. Assim eles podem fechar as portas por alguns dias por ano.

A Crisis@christmas também tem centros que aceitam pessoas diretamente da rua, mas a maioria vem dos abrigos já existentes. Há também os chamados ‘wet centres’, para os moradores que não conseguem ficar sequer algumas horas sem álcool ou drogas.

No nosso abrigo, a movimentação centro-rua era constante, principalmente com a chegada da noite, mas as drogas eram consumidas fora do centro. Imagino que nos centros especializados a concentração de voluntários especialistas fosse maior.

Um dos voluntários experientes, já parte da alta hierarquia por alguns anos, nos explicou que seria mais barato pagar para pôr os sem-teto em pensões, mas que Crisis@christmas era valioso demais para eles.

Isto é, para além dos serviços especializados proporcionados aos sem-teto, concentrados nos centros durante a época festiva – médicos, aconselhamento, serviço de costura, artes, lazer, massagem, etc., o potencial de marketing e publicidade que este evento traz mais que paga este custo extra.

Crisis arrecada parte significativa de seus recursos no natal, que também é a melhor época para a campanha e a conscientização da situação da população de rua, boa para a arrecadação de fundos, já que o sofrimento dos moradores de rua durante o inverno faz forte contraste à mensagem cristã. Ademais, cada voluntário em si é um veículo de marketing, um multiplicador do trabalho da instituição.

Finalmente, e talvez mais importante, para o voluntário o trabalho natalino é um momento de aprendizado, de conscientização pessoal, onde se espera que a convivência com um morador de rua seja reveladora.

No abrir e fechar a porta para um sem-teto, ao sentar-se à mesa com eles, ao bloquear a entrada ao dormitório, onde eles formam fila para pegar os melhores lugares junto às paredes, é aí que os voluntários são induzidos a trocar experiências, jogar conversa fora e perceber que aquela pessoa pela qual passamos todos os dias, nos sentindo desconfortável, desviando o olhar, não é diferente de nós.

Que se não fosse pelas nossas circunstâncias, de nascimento, de origem, de educação, de saúde, poderia ser nós, e não eles, a sermos ignorados numa porta de um banco, chutados por um bêbado rico voltando de uma festa.

O trabalho da Crisis é necessário e bonito. Mais importante que o natal, são as atividades diárias de ajuda prática, aconselhamento, pesquisa, conscientização e, principalmente, de lobby para mudança das leis, que acontecem o ano todo.

Mas não deixa de ser triste o fato de que neste mundo, toda uma jogada de marketing é necessária para nos conscientizarmos de que somos, afinal, todos iguais.

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Mariana T Noviello

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Jose Mario

08/01/2017 - 18h09

Trabalhando na caridade e na fraternidade…..segues os ensinamentos do profeta e do Deus que o enviou.
Que bom que isso seja diario….mesmo aqueles que nele nao acreditam realizando o bem nele se inserem e se aperfeiicoam…

Benjamin Eurico Malucelli

08/01/2017 - 14h56

Durante sete anos trabalhei como voluntário na Associação Minha Rua Minha Casa, sob o viaduto do Glicério, na Baixada do Glicério no Centro de São Paulo. Lá, era servido almoço para cerca de 200 pessoas, banheiro, banho, atividades recreativas. Frequentava a Associação uma vez por semana, às quartas-feiras. Era responsável pelo bazar. Ao ler o artigo, vi-me sob o viaduto. Atitudes simples, como estender a mão para cumprimentar, olhar nos olhos enquanto conversávamos (mesmo, muitas vezes, não entendendo o que a pessoa falava), um sorriso, um abraço. Alcoólatras, drogados, ex-presidiários, desempregados, travestis, pessoas com problemas mentais faziam parte desse universo. Amigos improváveis fiz ali. Pessoas invisíveis para a sociedade. Certa feita, saindo do “expediente” à tarde, cinco ou seis dessas pessoas estavam sentadas na calçada, dividindo conversa e um litro de cachaça: cumprimentei-os com um “boa tarde!”, “até a próxima!”, coisas desse tipo, quando ouvi um deles me chamar: “ei, moço!”. Retornei e ouvi dele um “obrigado por ter cumprimentado a gente. Pra maioria das pessoas somos invisíveis!”. Compreendi naquele momento o que era o sofrimento da “invisibilidade”: você estar e não ser visto; ou, você estar e ser rejeitado; ou, você estar e “não tenho nada com isso!”. Infelizmente a Associação, que tinha mais de trinta anos funcionando, fechou. Mas, a convivência que tive com o “invisíveis” marcou a minha vida. E mais lembro-me deles quando no crepúsculo diário: a hora mais triste para a grande maioria, quando o movimento de pedestres e de automóveis em direção às suas casas mostra o quanto estão sozinhos sem ninguém a esperá-los, sem ninguém com quem dividir os acontecimentos do dia.

Josias

07/01/2017 - 15h15

Prezada Mariana, belíssimo texto, e belíssima atitude por sua parte e de sua família! Eu e todos nós temos que aprender a nos desapegarmos da comodidade e do consumo em benefício do outro, reconhecendo que todos somos iguais, como você mesma disse. A única coisa que me deixou um pouco triste, sendo eu um cristão convicto, é a forma como você considera o cristianismo. Não sei se você já leu com atenção a Bíblia e os Evangelhos nela contidos, mas o nosso Jesus Cristo (o profeta-Deus) veio e nasceu num coxo de animais, pois não havia lugar para ele; e depois andou por todos os lados fazendo o bem a todos sem acepção; assentou-se junto aos desprezados, e ele mesmo não tinha onde reclinar a cabeça; ordenou a um jovem rico que vendesse tudo o que tinha e desse o dinheiro aos pobres; também disse que um dia Deus convidará os esquecidos deste mundo para o seu próprio banquete, afirmando inclusive que muitos dos religiosos que supõe segui-lo não terão lugar à mesa. De fato, nós cristãos (faço questão de me incluir na crítica) em sua maioria não temos seguido os passos do mestre a quem professamos seguir, uma atitude no mínimo hipócrita, do que temos de ter vergonha e nos arrepender. Inclusive, nos tornamos complacentes com o consumismo no qual se tornaram nossas principais festividades — o Natal e a Páscoa –, trazendo para dentro de nossas próprias casas o Papai Noel e o coelho que as profanaram. Mas obrigado pelo texto; me fez refletir. Saudações.

Victor Fraga

07/01/2017 - 14h39

Interessante para os brasileiros compreenderem que aqui na Europe nem tudo sao flores. Felizmente temos vozes como o Ken Loach para denunciar, e maos como a da Mariana para estender!

Eva

07/01/2017 - 09h22

Ótimo artigo, acredito ser importante o fato de que algumas pessoas (seja lá por que motivo) se dispõem a fazer este trabalho, mesmo que por algumas horas essa exposição aos moradores de rua provoca uma mudança dentro da pessoa e que por fim possibilita uma mudança na comunidade e assim por diante

maria nadiê rodrigues

07/01/2017 - 09h21

Sempre vimos algum tipo de miséria no Reino Unido. Até me lembro da Princesa Diana, bem-vestida, caminhando pelas ruas de Londres para estar ao lado dos mendigos. Achei aquela imagem horrível, porque era mais uma jogada de marketing.
O que não entra na minha cabeça é ver a população enlouquecida diante do Palácio para ver o neto da rainha, ou coisa que o valha.
Pra mim, aquele palácio deveria ser transformado em museu, e a Inglaterra acabar com essa farra de reis e rainhas, se toda essa riqueza é mantida pelos impostos do povo.


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