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Alcides Fonseca Neto: investigação de milícias deveria sair do Rio

Domínio de facções Para presidente de fórum de segurança, investigação de milícias deve sair do Rio 1 de setembro de 2019, 8h00 Por Sérgio Rodas Conjur — As milícias são a maior ameaça à segurança pública do Rio de Janeiro e do Brasil. Como as polícias fluminenses estão contaminadas por integrantes dessas facções, a única […]

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Crédito: Amerj

Domínio de facções
Para presidente de fórum de segurança, investigação de milícias deve sair do Rio

1 de setembro de 2019, 8h00

Por Sérgio Rodas

Conjur — As milícias são a maior ameaça à segurança pública do Rio de Janeiro e do Brasil. Como as polícias fluminenses estão contaminadas por integrantes dessas facções, a única medida eficaz para combatê-las é transferir a investigação delas para órgãos federais. Essa é a opinião de Alcides da Fonseca Neto, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio e presidente do Fórum de Segurança Pública da Escola da Magistratura do estado.

Fonseca discorda da transformação da 25ª Vara Criminal da capital em vara especializada em lavagem de dinheiro e atos praticados por organizações criminosas. A especialização foi feita com o objetivo de proteger juízes que atuam em casos envolvendo milícias. Para o desembargador, a medida pode ter o efeito contrário e deixar os magistrados que atuam na vara mais expostos aos integrantes de tais quadrilhas. Além disso, estimula o surgimento de “juízes-heróis”, sem imparcialidade.

Em entrevista à ConJur, Fonseca Neto também critica o pacote de reformas legislativas propostas pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, sob o nome de “pacote anticrime”. De acordo com Fonseca, a ampliação das hipóteses de legítima defesa estimula a violência policial.

Leia a entrevista:

ConJur — Qual é a maior ameaça para a segurança pública hoje: o tráfico de drogas ou as milícias?
Alcides da Fonseca Neto — As milícias.

ConJur — O senhor defende a federalização das investigações e processos contra milícias. Por quê?
Alcides da Fonseca Neto — Sim. Tem uma proposta de emenda à Constituição [PEC 128] que propõe que esse crime seja de natureza federal. Essa é a melhor solução para a resolução do problema no Rio de Janeiro. É impossível pensar em ter a Polícia Civil e a Polícia Militar investigando milícia. A contaminação das polícias do Rio de Janeiro é muito grande. Basta ver a recente divulgação de que dois PMs são donos de uma imobiliária que vende imóveis ilegais em áreas de milícia em Muzema.

ConJur — O presidente do TJ criou uma vara especializada em crimes envolvendo organizações criminosas. O objetivo é proteger os juízes de fóruns como Santa Cruz, Jacarepaguá e Seropédica, que, segundo o presidente, vêm sendo ameaçados pelas facções que dominam essas regiões. É uma boa medida contra milícias?
Alcides da Fonseca Neto — Olha, eu respeito muito o presidente Cláudio de Mello Tavares, ele é um desembargador atuante, está fazendo uma administração muito boa. Porém, nesse aspecto, eu e muitos outros não concordamos com ele. Isso só vai servir para criar um juiz super-herói, um juiz super-homem. Isso não resolve o problema que o presidente quer resolver. Um único juiz responsável por todas essas questões não resolve problema e vai criar outros problemas. Como é que pode um juiz ficar responsável por todas essas matérias? Ele vai acabar rapidamente perdendo a imparcialidade. Estamos vendo o que está acontecendo agora em Brasília por conta de problemas que eu não preciso ficar aqui repetindo. Juiz tem que ter imparcialidade. Já imaginou o que vai acontecer com um juiz tendo que conversar com centenas de promotores e de delegados de polícia? Isso não vai funcionar. Sem falar no perigo que vai ser para esse próprio juiz ele ficar exposto dessa maneira.

ConJur — A ideia do “juiz sem rosto” é boa para esses casos envolvendo milícias?
Alcides da Fonseca Neto — Tenho dúvidas. O que funciona mesmo é que cada juiz mantenha a sua jurisdição. Se isso realmente funcionar e se o juiz tiver estrutura para trabalhar, é muito mais eficaz do que o juiz ficar trabalhando em um modelo de juiz sem rosto, com o qual não está nem acostumado, com todo o respeito ao presidente do TJ-RJ.

ConJur — O que achou do “pacote anticrime” do ministro Sergio Moro?
Alcides da Fonseca Neto — Não examinei todas as medidas do pacote, só examinei a parte que me interessou. E na parte que me interessou o pacote é muito ruim. Por exemplo, quando ele compara as milícias com as outras organizações criminosas e coloca todas em pé de igualdade, comete um erro muito grande. As outras organizações criminosas começam e se formam na penitenciária. A milícia, não. A milícia começa dentro do Estado. Não dá para comparar a organização criminosa que é uma força política, como a milícia, que começa dentro do Estado, com as outras organizações criminosas, que começam dentro das penitenciárias. Isso é um equívoco muito grande do ministro.

ConJur — O senhor leu a parte da legítima defesa para policiais que matam em serviço?
Alcides da Fonseca Neto — O pior de tudo é essa ampliação das hipóteses de legítima defesa. Espero sinceramente que os parlamentares não aceitem esses artigos. A legítima defesa é uma excludente de ilicitude que está no Código Penal desde 1940 e ninguém nunca disse que ela estava ruim ou ultrapassada. Pelo contrário: todos sempre concordaram que a definição de legítima defesa é perfeita. A lei penal não é uma lei qualquer. Ela tem uma técnica legislativa que depende de certas sutilezas que têm a ver normalmente com uma definição pequena, curta. Quanto menos ela disser, melhor. Se ela disser muito, acaba sendo mal interpretada. É por isso que, na parte especial do Código Penal, os tipos são curtos. “Artigo 121: matar alguém”. Precisa dizer mais? Todo mundo sabe que matar alguém é homicídio, e acabou.

Aí vem Moro vai falar em legítima defesa, diz assim: “Artigo 25, parágrafo único — Observados os requisitos do caput, considera-se legítima defesa…” Ele até quer observar os requisitos do caput, da definição de legítima defesa que já existe, mas veja só o que ele diz: “O agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem”.

ConJur — Prolixo demais?
Alcides da Fonseca Neto — Meu Deus do céu, é tanta coisa que ele escreve aqui que você tem que ler dez vezes para começar a entender. O que ele está dizendo é que também é legítima defesa a situação de conflito armado. Conflito armado é guerra. Tem guerra em algum lugar do Brasil? Então ele está pensando que talvez nas favelas tenha guerra. Mas vamos dar um crédito para ele, talvez ele esteja imaginando as situações de guerra e tal. Tudo bem. Ou então o agente policial ou de segurança pública que está em conflito armado. Aí ele fala: “Ou em risco iminente”. Olha o problema disso.

ConJur — Qual o problema?
Alcides da Fonseca Neto — “Risco” é “perigo”. “Perigo” é aquilo que está para acontecer. O texto fala em “perigo iminente”. Iminente também é aquilo que está para acontecer. Portanto, na verdade, o que ele está dizendo é que considera-se legítima defesa a ação em conflito armado para evitar “aquilo que está para acontecer daquilo que está para acontecer”. Duas vezes. “De conflito armado previne”: se ele previne, é porque ele evita “injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem”. Então é o policial que está em legítima defesa porque ele “previne” uma injusta ou iminente agressão. Sabe o que isso me lembra? Aquele filme Minority Report. O personagem do Tom Cruise fazia isso. Ele prevenia uma injusta ou iminente agressão. E aí ele prendia as pessoas antes de elas cometerem o crime. Ou seja, a vida está imitando a arte. O nosso amigo ministro gosta muito de filme americano, porque ele está copiando o Minority Report com esse inciso I do artigo 25 do projeto dele. Agora, tem condição de isso ser uma hipótese de legítima defesa? Como é que se pode saber quem é que está prevenindo uma injusta e iminente agressão? Se nem no filme Minority Report isso não funcionou, como é que na nossa realidade brasileira vai funcionar?

ConJur — E aquela parte do “escusável medo”?
Alcides da Fonseca Neto — Isso é uma aberração jurídica. O artigo 23, parágrafo 2º diz: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa, ou violenta emoção”. É praticamente um direito de matar que se está concedendo aos policiais. A crítica não é só minha. A comunidade jurídica toda está falando isso. Em abril, o senhor Moro descobriu o Twitter e percebeu que, por essa rede social, poderia fazer uma grande propaganda de si mesmo. Só que, quando ele foi falar e foi defender esse projeto dele, incorreu em um erro muito grave. Ele disse o seguinte: “O Código Penal alemão — e a Alemanha atual é um modelo de respeito aos direitos humanos — tem previsão igual na seção 33, ‘se o autor excede os limites da legítima defesa por confusão, temor ou medo, então não será punido’. Tem licença para matar na Alemanha?”

Ou seja, ele quis dizer que, na Alemanha, tem norma igual e que lá ninguém vai dizer que tem licença para matar. Ele publicou esse tweet para quem não é formado em Direito, para quem não tem noção de Direito, porque ele está enganando as pessoas.

ConJur — Por quê?
Alcides da Fonseca Neto — Basta ler de novo o projeto que ele está propondo e ler o que ele citou do Direito Penal alemão. No projeto ele fala “se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O Código Penal alemão fala em “violenta emoção”? Não fala. Nenhum código, de lugar nenhum do planeta, fala em “violenta emoção”. Já imaginou o que vai acontecer se todos os policiais disserem que se excederam porque estavam sob violenta emoção? Eles já fazem isso sem ter norma alguma que dê guarida para eles, já imaginou agora? Violenta emoção? Meu Deus do céu!

Agora, tem algo pior. É que na Alemanha, ao contrário do que ele está querendo insinuar, a norma não foi feita para policiais, foi feita para cidadãos comuns, como você e eu, que não estão acostumados a lidar com esse tipo de situação de combate, de enfrentamento. Então pessoas como eu e você podemos, de repente, ficar em situações de confusão, de temor ou de medo, porque não somos preparados para isso. Aí, sim, teremos direito a essa proteção. Agora, o policial, não. O policial que se prepara, que é treinado, sabe atirar, não tem direito a esse excesso que fala em confusão, temor e medo. Quem está querendo dar esse excesso para o policial é o ministro Moro, não é o Código Penal alemão. Então, respondendo ao ministro: “Tem licença para matar na Alemanha?”. Não, na Alemanha, não, mas ele está querendo dar aqui no Brasil. Essa é a resposta.

ConJur — O governador do Rio argumenta que o policial que atira para matar quem está portando fuzil está agindo em legítima defesa. Concorda?
Alcides da Fonseca Neto — Evidentemente que não. Só está em legítima defesa aquele que estiver agindo em repulsa a uma agressão atual ou iminente, valendo-se dos meios necessários. Atirar “na cabecinha” não é legítima defesa.

ConJur — O governador pode responder por mortes causadas por policiais, como a do sequestrador do ônibus na Ponte Rio-Niterói?
Alcides da Fonseca Neto — Poder, o governador pode responder por isso. Mas quem investiga isso é a Justiça Federal, pois a competência para julgar governadores é do Superior Tribunal de Justiça. Tem que investigar a cadeia de comando para ver quem eventualmente foi responsável pela prática do crime. Pode chegar no governador? Pode. Mas não é muito fácil imaginar que pode chegar. E, nesse caso, não foi o Witzel que autorizou o tiro. Não cabe a ele dar a ordem. A ordem tem que partir do comandante. No caso, partiu do comandante do Bope. É assim que tem que funcionar. Não pode ser de outra maneira. Não cabe ao governador, que não entende do assunto, dar a ordem efetiva para atirar. Se for feito dessa maneira, não vai funcionar. Já foi assim no passado, inclusive em outros países, e não funcionou.

ConJur — O primeiro semestre de 2019 teve o maior número de mortes causadas por policiais no Rio desde 1998. Esse aumento decorre dessa autorização do governador para os policiais atirarem para matar?
Alcides da Fonseca Neto — Eu não posso fazer essa afirmação. Eu diria que existe uma tendência ao confronto.

ConJur — E essa política do confronto realmente inibe crimes, como o governador argumenta?
Alcides da Fonseca Neto — Não. As milícias estão tomando conta do Rio de Janeiro e não tem uma troca de tiro entre a PM e a milícia. Inibiu o crime? Novos prédios estão sendo irregularmente construídos, cadê o poder público? Cadê a troca de tiros?

ConJur — O tom geral do “pacote anticrime” é de endurecimento — das penas, das condições de cumprimento das penas. Penas mais altas e rigorosas ajudam a reduzir a criminalidade?
Alcides da Fonseca Neto — Não, nunca ajudaram. Há dezenas de estudos feitos no mundo todo com relação a essa questão, e a resposta para todas as pesquisas que foram realizadas é “não”. Não se resolve criminalidade. Senão seria simples: era só colocar, no Código Penal, pena mínima de 50 anos e pena máxima de 100 anos para todos os crimes. E pronto: acabaria a criminalidade.

ConJur — O senhor disse que as facções criminosas se formam e se fortalecem nos presídios. Incentivar o encarceramento e aumentar o tempo de permanência na prisão pode ter o efeito contrário de fortalecer essas facções e aumentar a criminalidade?
Alcides da Fonseca Neto — Pode, não. Vai ter. Quanto mais tempo o sujeito ficar encarcerado, pior para todo mundo, inclusive para a sociedade. Se ele ficar ainda mais tempo na penitenciária, convivendo com os piores elementos possíveis, piores ainda do que ele mesmo, o que você acha que vai acontecer quando ele sair? Ele vai se tornar PhD em criminalidade. Tornando-se PhD em criminalidade, quem é que vai sofrer com o embrutecimento que ele terá? Nós sofreremos. Isso é ruim para nós. É essa visão que parece que os homens públicos responsáveis pela execução penal não têm. Parece que acham mais fácil colocar a sujeira para debaixo do tapete. No caso, a sujeira é deixar o homem encarcerado largado lá por mais tempo. Aí o que acontece? São rebeliões que acabam ocorrendo mais frequentemente, mortes dentro do presídio, e são facções que acabam se fortalecendo. Depois eles saem da prisão e acabam cometendo crimes cada vez mais organizados do lado de fora. E quem sofre com isso? Nós. Nós sofremos.

ConJur— O Brasil é o país que tem mais homicídios no mundo. Em 2017, foram cerca de 60 mil. A ampliação de hipóteses de legítima defesa combinada com a flexibilização da posse e do porte de armas pode aumentar ainda mais o número de homicídios e a impunidade por esses assassinatos?
Alcides da Fonseca Neto — Não posso afirmar com 100% de certeza que vai aumentar. Muitos especialistas nesse assunto estão dizendo que sim. A partir do momento em que um maior número de pessoas possa portar armas, isso pode acontecer. E não é só possuir, porque embora aquele que possua tenha autorização apenas para ter arma dentro de casa, nada impede que ele a leve para fora de casa. É uma ingenuidade imaginar que ele, podendo ter a arma dentro de casa, não a leve para fora de casa em um país como o nosso, até porque a fiscalização é nenhuma e será nenhuma. Então, pegue as pessoas que vão possuir mais aquelas que vão portar e imagine o que pode acontecer. Uma pesquisa recente apontou que cresceu muito o número de feminicídios com arma de fogo. E isso antes da flexibilização da posse e do porte. Quem é que vai usar arma dentro de casa, o homem ou a mulher? Fora na rua, em brigas, brigas de trânsito. Você já viu a quantidade das brigas de trânsito que acontecem? Outro dia eu estava indo para Botafogo e fui perseguido por um automóvel porque dei uma pequena fechada nele. Ele me perseguiu durante três quarteirões, abriu a janela e começou a fazer gestos com a mão, buzinando. Imagine se ele tivesse uma arma? Ou se eu fosse outro maluco e resolvesse parar, brigar com ele e puxar uma arma? Eu sou sou desembargador e não tenho arma. Por que as outras pessoas têm que ter? Quem tem que ter arma é policial. Não somos nós. Nós não precisamos de arma. Que mundo é esse em que a gente precisa de arma? Então a tendência é que efetivamente aconteça um número maior de mortes, infelizmente.

ConJur — Que medidas seriam eficazes para diminuir os homicídios no Brasil?
Alcides da Fonseca Neto — Em primeiro lugar, é uma questão cultural. Temos que ter mais amor à vida humana. Eu fui juiz do Tribunal do Júri por um mês. Lá, peguei muita briga de torcida. Se matavam por nada, por causa de um jogo de futebol, atiravam uns nos outros. No final de trinta dias, eu estava chocado. O que mais me chocou foi a falta de amor à vida do semelhante. Parece piegas o que eu estou dizendo, mas isso foi Cristo que falou, então se eu estou sendo piegas, Cristo é piegas. Mas é isso, acho que o primeiro passo é um pouco de cultura, um pouco de religião.

ConJur — Fora isso, que medidas legais ou relativas ao sistema de Justiça poderiam melhorar esse cenário?
Alcides da Fonseca Neto — A medida legal mais importante no momento é revogar o decreto que flexibilizou a posse e o porte de armas. Há outras medidas mais difíceis de serem tomadas. Por exemplo, a fiscalização das fronteiras. Como essas armas todas chegam aqui e vão parar nas mãos dos traficantes e dos milicianos? É preciso investigar isso mais a fundo.

ConJur — O que poderia ser feito para combater as mortes causadas por policiais?
Alcides da Fonseca Neto — Trabalho de inteligência da própria polícia. Não tem outro jeito.

ConJur — As polícias e suas corregedorias investigam de forma satisfatória as mortes causadas por policiais?
Alcides da Fonseca Neto — Quando elas querem, investigam. Elas têm condição de investigar. Elas só não têm condição de investigar milícia, porque há uma contaminação muito grande.

ConJur — Como descontaminar e permitir essas investigações?
Alcides da Fonseca Neto — Não tem como. Só passando para a área federal, e deixando os órgãos federais investigarem.

ConJur — Em 2018, a União decretou intervenção federal na segurança do Rio. Um dos argumentos foi que o Rio não tinha condições de garantir a segurança em seu território. Como o senhor avalia a intervenção federal?
Alcides da Fonseca Neto — Tenho muito respeito pelo ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann. Entretanto, ele era uma pessoa séria em um governo nada sério. Não podia funcionar. Na minha opinião, o ex-presidente decretou a intervenção federal para tentar disfarçar o fracasso da reforma da Previdência. Aí tentaram fazer uma intervenção federal de qualquer maneira. Nada contra os militares, também todos homens sérios, ali não tinha ninguém brincando. Mas volto a dizer: militares sérios servindo a um governo não sério. Então não podia dar em outra coisa a não ser naquilo lá.

ConJur — E militares têm capacidade e treinamento para lidar com segurança pública?
Alcides da Fonseca Neto — Se tivesse sido feito do jeito que eles queriam, talvez os resultados fossem melhores. O problema é que não foi feito do jeito que eles queriam.

ConJur — E por que, não?
Alcides da Fonseca Neto — Aí tem que perguntar para o ex-presidente.

ConJur — O que o senhor pensa de presídios administrados por entidades privadas?
Alcides da Fonseca Neto — Avalio isso com muito cuidado. Transferir uma atividade típica de Estado para uma entidade privada é muito fácil. Quero ver o funcionamento na prática. Nos Estados Unidos isso foi tentado e deu certo no início, depois não deu mais. E mesmo nos Estados Unidos isso só funcionou em relação a criminosos que praticaram delitos pequenos, o que não aconteceria no Brasil, porque em relação a delitos pequenos não tem ninguém preso, está todo mundo solto. Nos EUA eles prendem por qualquer coisa. É preciso ver o seguinte: nos Estados Unidos, eles querem prender alguém por crimes graves? Digo: a iniciativa privada quer manter pessoas presas por tráfico, estupro, latrocínio etc.? Duvido! Eles querem os crimes mais brandos, porque os réus são fáceis de ser trabalhados, não tem periculosidade. Isso não é exemplo, porque esses réus não estariam presos aqui nunca. Aí vamos fazer o quê? Vamos pegar os indivíduos que praticaram crimes graves, e que estão nas grandes organizações criminosas, transferi-los para a iniciativa privada? Deixaremos a iniciativa privada exercer uma atividade que é típica de Estado? Isso não é correto. É muito fácil o Estado abrir mão da sua obrigação, entregando-a para a iniciativa privada. Em princípio, sou contra.

ConJur — O que pensa da criação do plea bargain no Brasil? A medida constava do “pacote anticrime”, mas foi excluída pela Câmara.
Alcides da Fonseca Neto — Isso é uma bobagem. Quem está batendo palma para isso precisava fazer um trabalho de pesquisa sobre o que acontece nos Estados Unidos com o plea bargain. Temos mania de importar institutos sem nos preocuparmos em adaptá-los a nosso sistema jurídico. O nosso sistema busca a verdade real. No plea bargain, abre-se mão da verdade real em troca de um acordo, de um consentimento. É uma justiça consensual, uma verdade consensual, uma verdade que vai sendo construída pelas partes. Nos EUA não existe uma verdade real que o promotor vai buscar. A verdade é aquela que as partes vão construindo. Não tem nada a ver com o sistema jurídico brasileiro.

E olha o problema: no plea bargain, desde o início, a acusação fica tentando forçar um acordo. O que está acontecendo hoje em dia nos Estados Unidos? Cerca de 90% das condenações graves estão acontecendo através do plea bargain. E quem são os réus que têm sido condenados pelo plea bargain em casos graves? São todos negros ou pardos e pobres. Veja o processo de seletividade absurdo que está acontecendo com o plea bargain. Não é essa maravilha que se está pensando. Os juízes estão achando lindo porque se faz o plea bargain, rapidamente se livra do processo, e é menos um. Eles têm que parar para pensar e verificar a quantidade de réus negros ou pardos, todos miseráveis, condenados por crimes graves através do plea bargain. Essa é a saída? Será que precisamos aumentar ainda mais a seletividade de nosso sistema penal? Vamos condenar negros, pardos e miseráveis mais rapidamente?

ConJur — Como avalia o impacto da delação premiada no Brasil?
Alcides da Fonseca Neto — A delação premiada é fundamental. É um instituto que veio para ficar. A nossa lei é cópia do que se faz lá fora, especialmente na Itália. Ela é fundamental para que se possa desvendar os crimes graves, principalmente os crimes de colarinho branco. Sem delação, não se consegue chegar à solução dos crimes de colarinho branco.

ConJur — Mas há quem argumente que, na “lava jato”, muitos delatores conseguiram benefícios sem provar suas acusações.
Alcides da Fonseca Neto — Isso é bobagem. Quem fala isso normalmente é advogado de réu que foi prejudicado. De modo geral, pode ser que tenha acontecido um equívoco aqui ou outro ali. Mas veja as pessoas que foram presas nos últimos anos no Brasil com a operação “lava jato”. Não estou me referindo aos equívocos que foram divulgados nos últimos tempos. Estou falando do aspecto positivo da “lava jato”. Olhe a quantidade de pessoas importantes presas. Você conseguiria imaginar o presidente da Odebrecht preso, fazendo delação premiada e entregando tudo que entregou? Até mesmo a quantidade de dinheiro que ele trouxe de volta? Se não fosse a delação premiada, isso nunca ocorreria. A delação premiada é um instrumento fundamental para a Justiça Criminal. Tanto que, em certo momento, tentaram mudar a delação, porque ela estava funcionando muito bem. Não conseguiram.

ConJur — Há quem argumente que os presos preventivos da “lava jato” sofreram pressão para firmar acordo de delação premiada. Sem isso, não seriam soltos. Alguns chegam a classificar essa prática como uma espécie de tortura.
Alcides da Fonseca Neto — A estatística que eu vi mostrou até que a maioria das pessoas que fez delação estava solta. Então esse negócio de dizer que o sujeito vai ser preso para delatar não é verdade. Inclusive, eu tenho visto algumas pessoas importantes soltas pedindo para fazer colaboração premiada.

ConJur — A execução da pena após condenação em segundo grau impacta a segurança pública?
Alcides da Fonseca Neto — Após a condenação em segundo grau, tem que poder haver a prisão. Isso é um fator inibitório no sentido de evitar a impunidade. Se não for assim, o advogado, por dever de ofício, é obrigado a continuar recorrendo. E ele recorrendo, recorrendo, recorrendo, isso vai acabar levando à prescrição.

Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 1 de setembro de 2019, 8h00

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