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A menina que foi arrancada da mãe por preconceito religioso (ou: não mexam com os orixás)

É estarrecedora esta matéria publicada pelo UOL. Segundo apuração da repórter Rayane Moura, o Poder Judiciário retirou a guarda de uma adolescente de 12 anos da sua mãe e transferiu para a avó, na cidade de Araçatuba. O motivo: a avó e outros familiares fizeram uma denúncia ao Conselho Tutelar, alegando maus tratos e abuso […]

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Representação de Iemanjá.

É estarrecedora esta matéria publicada pelo UOL. Segundo apuração da repórter Rayane Moura, o Poder Judiciário retirou a guarda de uma adolescente de 12 anos da sua mãe e transferiu para a avó, na cidade de Araçatuba.

O motivo: a avó e outros familiares fizeram uma denúncia ao Conselho Tutelar, alegando maus tratos e abuso sexual. Acontece que, segundo o relato da mãe, a filha estava apenas passando por um rito de passagem do candomblé, religião de matriz africana. No ritual foi raspado o cabelo da menina, um gesto simbólico, como é explicado na matéria:

Nestes rituais, chamados de feitura de santo, o novo adepto fica 21 dias recluso no terreiro. Durante o retiro espiritual, recebe banhos de ervas e é exposto a fundamentos da religião. A ideia é que ele se purifique, entre em contato com o axé (que, na língua iorubá, significa “força” ou “poder”) e, de acordo com a tradição, renasça conectado com valores ancestrais da crença. Deste ponto de vista, a passagem pelo terreiro é uma gestação. Raspar o cabelo é um ato sagrado e simboliza tudo isso.

Rituais desse tipo são encontrados em virtualmente todos os povos e culturas da humanidade. Os ritos de passagem são importantes para o nosso desenvolvimento e para que obtenhamos as ferramentas psicológicas necessárias à nossa própria evolução da fase infantil para a fase adulta, que pressupõe maiores poderes e responsabilidades. O pensamento dominante nas sociedades modernas costuma desprezar esse tipo de coisa, o que pode ajudar a explicar nossa estagnação (ou decadência) moral, este desprezo arrogante e burro pela ancestralidade, pelos ciclos da vida e pelas forças da natureza.

A matéria informa que a avó é evangélica e que os outros familiares que insistiram com a denúncia, mesmo depois de os policiais não encontrarem nenhum indício de maus tratos, “não concordam com a religião”. Como a religião é de matriz africana, muito frequentada por pessoas negras, é possível que haja uma alta dose de racismo no caso. Assim como é provável que haja uma influência de algum líder religioso instigador de ódio contra religiões afro-brasileiras.

O que mais revolta, no entanto, é a atuação do Estado, que perpetrou uma violência inominável contra uma família sobre a qual não pesa nenhum indício de desrespeito à lei. Segundo a matéria, a adolescente chegou a relatar que “não estava sofrendo qualquer tipo de abuso, mas, sim, passando por um ritual”. Leiam as cortantes frases da mãe da adolescente sobre o descalabro:

O pior de tudo é que em nenhum momento ouviram minha filha ou a mim. Simplesmente a tiraram de mim. Eu nunca a obriguei a nada, esse sempre foi o sonho dela. Ela está chorando a todo momento, me liga de dez em dez minutos querendo vir para casa.

Eu estou arrasada. Já estava antes por conta do preconceito. Agora que tiraram minha filha de mim, tiraram o meu chão. Nunca imaginei passar por isso por conta de religião. Eu estava presente o tempo inteiro, acompanhei tudo, nada de ilegal foi feito, que constrangesse a ela, ou que ela não quisesse, sem consentimento dela, ou sem o pai ou a mãe, foi tudo feito legalmente.

O pai de santo da família, Rogério Martins Guerra, disse que já viu “perseguição, preconceito, pessoas que são agredidas e apedrejadas na rua, terreiros que são incendiados. Mas nunca algo assim. É uma tristeza profunda”.

Pois é.

Eu mesmo estive próximo a uma dessas histórias horripilantes. Meu padrasto e grande amigo é pai de santo. A casinha de madeira construída no pátio frontal de sua casa, que abrigava imagens de entidades espirituais e de santos, foi incendiada, certamente por ódio religioso. Um local sagrado para meu amigo e para todos os que compartilham de sua crença incendiado por pura maldade.

Imagine a dor e a tristeza que eventos como esse provocam. E esse tipo de coisa se repete quase cotidianamente em nosso país!

E por que não há reação à altura do poder público? Ou ainda, por que o Estado muitas vezes é a parte agressora nesses ataques virulentos ao que há de mais sagrado na vida de tantas pessoas, como na caso da adolescente de Araçatuba?

O racismo estrutural parece ser uma das motivações profundas para essa realidade. Religiões negras, meninos e meninas negras, entidades negras, hábitos negros, qualquer coisa que esteja relacionada à negritude é impiedosamente sufocada e violentada pelas estruturas de poder vigentes.

Os casos de racismo explícito não cessam de pipocar neste país que já foi vendido como o paraíso da miscigenação. “Não somos racistas” é, lembrem-se (ou pasmem), o título de um livro de Ali Kamel, um dos diretores mais influentes da Rede Globo.

Só nos resta seguir denunciando, debatendo, cobrando, protestando e nos organizando para implodir as estruturas que sustentam o racismo até o inacreditável ano de 2020.

E a pergunta permanece: quando explodirá o anitrracismo brasileiro?

P.S.: Algumas informações para os racistas e preconceituosos. Os orixás são os deuses da maioria das religiões afro-brasileiras. A adolescente que foi arrancada da sua mãe se tornou, após o ritual de passagem, filha de Iemanjá, a orixá que rege os mares e oceanos. Como as divindades de todas as religiões, os orixás representam forças naturais e psicológicas que, acredite a pessoa ou não, existem e atuam sobre a humanidade. Mesmo para um cético quanto à existência de seres divinos, não parece prudente desafiar o poder das forças da natureza. Além disso, a Lei do Retorno aparece em uma miríade de tradições místicas e religiosas de diversos lugares do mundo, bem como pode ser observada em ação no dia a dia, bastando um olhar minimamente atento. É simplesmente a lei da causa e consequência; a ideia, bastante razoável, de que a colheita que teremos depende diretamente do plantio que fizemos no passado. Para o seu próprio bem, fique esperto.

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Pedro Breier

Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.

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Comentários

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SONIA MARIA FARIA DO Prado

09/08/2020 - 08h35

DIGA NÃO AO RACISMO!

LEI DE ESCUTA para esta criança e a
Sua Mãe???
Retirada da adolescente de sua Mãe!
Respeito aos religiões , invasão e destruição de seitas e seus acessórios religiosos .
Respeito aos DIREITOS HUMANOS???

Renato

08/08/2020 - 13h12

É curiosa a lógica dos petebas….um ser com 12 anos não pode decidir deixar de ir á escola p estudar, não pode pode decidir fazer sexo com um adulto , não pode decidir ingerir bebida alcoólica, não pode decidir ir a uma boate , não pode decidir assistir a uma peça ou filma em que haja sexo explicito, mas pode decidir raspar a cabeça e ficar 21 dias reclusa dentro de um terreiro. Essa é a lógica do Pedrinho Bibi, o menino que cresceu soltando pipa da sacada da varanda e jogando bola de gude no carpete ! kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Paulo

07/08/2020 - 22h38

Sempre uma violência separar mãe de filha/o. Não conheço os fundamentos, mas creio que a decisão judicial será facilmente rebatida, em sede de recurso, se não se provar algum tipo de violência psicológica contra a menina. De resto, a liberdade religiosa deve prevalecer, sempre. Nunca se pode constranger alguém a seguir uma religião ou crença. Essa deve ser, sempre, uma opção consciente do indivíduo, ainda que se possa questionar a capacidade de decisão de uma menina de 12 anos. Ainda assim, se não houver, comprovadamente, violência ou abusos, ela é quem deve decidir a tempo e modo, e, enquanto não puder, a mãe o fará por ela. O mais é o Estado invadir seara que não lhe pertence, por melhores que sejam os argumentos invocados na decisão…

    Pedro Breier

    08/08/2020 - 13h07

    Bem por aí!

Kleiton

07/08/2020 - 21h45

Mais do que certo, são cosas para adultos e não para meninos.

Raspar os cabelos de uma menina é coisa de trogloditas.

    Antonio Morais

    08/08/2020 - 08h29

    No budismo também existe o ritual de raspar os cabelos, de adulto ou criança. O mesmo acontece na igreja católica (“prima tonsura”). Você acha que também é coisa de trogloditas? E aí?

    Pedro Breier

    08/08/2020 - 13h07

    E jogar água gelada na cabeça de uma criança? E obrigá-la a frequentar ambientes e conviver com pessoas determinadas por conta da religião que os pais adotam? Ou a cumprir certos rituais em certos momentos do dia ou da semana? Raspar o cabelo é estranho na nossa cultura (mas só o das de mulheres, é claro, o que evidencia que há também machismo envolvido na questão), mas não me parece que esse seja um bom motivo para que um ritual religioso seja aceitável ou não, ou que necessite da “concordância” de outras pessoas que não os responsáveis.

    Renato

    08/08/2020 - 13h20

    Exatamente. Uma família minimamente normal não permitiria que o criança de apenas 12 anos ,um ser absolutamente incapaz, raspasse a cabeça e passasse 21 dias reclusa num terreiro.

Alexandre Neres

07/08/2020 - 21h37

Caro Pedro, pode-se afirmar sem medo de errar, mesmo sem estar a par do fato concreto, que a menina foi arrancada da mãe por racismo.

O racismo do Brasil é estrutural e está bem aí, visível, para quem quiser ver, embora muita gente não enxergue, tal qual o ar que a gente respira.

Desembargadores, juízes, procuradores, promotores, policiais, seguranças de shopping, professores, nem mesmo antropólogos e historiadores, estudiosos sobre o assunto e que merecem respeito, estão imunes a essa doença invisível que nos contamina a todos.

Quem diz que este mal não nos atinge no Brasil, que somos miscigenados por natureza, que tanto não sou que minha empregada é negra, que tenho até um amigo que é escurinho mas é gente boa, que fulana é uma preta de alma branca, cuidado!, porque já foi acometido pela praga racista e nem se deu conta disso.


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