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Projeto de Bolsonaro pode matar a Casa da Moeda, destruir empregos e… envenenar sua cerveja

Ao final de 2019, o capixaba Felippe Teles Ribeiro que havia se mudado para Belo Horizonte há pouco tempo, comprou algumas caixas de Belorizontina, uma cerveja artesanal fabricada pela Backer, e… quase perdeu a vida. Seu sogro morreu de intoxicação. Ele, Felippe, ficou em coma por vários dias, e até hoje luta para se recuperar […]

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Ao final de 2019, o capixaba Felippe Teles Ribeiro que havia se mudado para Belo Horizonte há pouco tempo, comprou algumas caixas de Belorizontina, uma cerveja artesanal fabricada pela Backer, e… quase perdeu a vida.

Seu sogro morreu de intoxicação. Ele, Felippe, ficou em coma por vários dias, e até hoje luta para se recuperar de graves sequelas.

Felippe foi uma das 29 vítimas de intoxicação com a cerveja Belorizontina, uma delas  – o sogro – fatal.

Um laudo da Polícia Civil indicou a presença, em dois lotes da Belorizontina, da substância dietilenoglicol, um produto usado em processos de refrigeramento industrial, altamente tóxico para consumo humano. Entretanto, até hoje resta um certo mistério, pois os donos da Backer afirmam que o produto não é usado na linha de produção, e outros cervejeiros dizem que não é uma substância presente no processo de fabricação da bebida.

O que isso tem a ver com o Projeto de Lei 3887/2020, enviado há pouco pelo governo Bolsonaro ao Congresso, e que integra a chamada “Reforma Tributária”?

Como isso pode prejudicar o desenvolvimento nacional e a geração de empregos, como sugere o título desse artigo?

O que isso tem a ver com a Casa da Moeda?

Tem tudo a ver, e explico.

Dentre as mudanças sugeridas pelo PL 3887/2020 está a extinção definitiva do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe), que esteve ativo no Brasil de 2009 a 2016.

O sistema permitia um controle inteligente de cada embalagem de bebida produzida no Brasil, desde as alcóolicas até os refrigerantes. Cada garrafa, lata ou longneck recebia um código digital criptografado único, que continha dados como local de produção, data e tipo de produto. Era um sistema moderno de rastreabilidade, usado com muito sucesso no Brasil, com apoio dos grandes fabricantes nacionais de bebida, e que permitia, além disso, um controle tributário rigoroso.

O uso do Sicobe elimina virtualmente qualquer possibilidade de sonegação fiscal.

Se o Sicobe estivesse ativo em 2019, as investigações sobre a contaminação da cerveja Belorizontina não durariam meses, mas segundos.

Com o sistema, as autoridades conseguiriam rastrear instantaneamente não apenas os “lotes”, mas exatamente que garrafas estavam contaminadas, onde foram produzidas, em qual data (inclusive a hora e o minuto), quantas eram, e para onde haviam sido comercializadas.

A suspensão do Sicobe aconteceu ao final de 2016, após um escândalo de corrupção envolvendo técnicos da Receita e executivos da empresa envolvida na produção da tecnologia do sistema. A solução drástica foi o típico gesto de jogar fora a água da banheira com o bebê dentro. Ao invés de corrigir o problema e manter o sistema, que inclusive impede a sonegação fiscal e dificulta a corrupção dentro da própria Receita, o governo Temer, fragilizado politicamente de nascença (pois não havia sido eleito), preferiu suspender o processo.

Mais tarde, a brutalidade com que a investigação foi conduzida e, sobretudo, como o problema foi solucionado, ficaria conhecida como “lavajatismo”, cujos danos causados à economia brasileira hoje são amplamente conhecidos.

Pois bem, a supensão do Sicobe foi mais um dos danos colaterais do lavajatismo, e tem provocado prejuízos financeiros imensos ao Estado, que arrecada menos, aos consumidores, que perderam um importante instrumento de controle de qualidade sobre a bebida que consomem, e aos fabricantes honestos de bebidas, que tem de enfrentar a concorrência desleal de empresários que não pagam impostos e vendem produtos de categoria inferior.

Até hoje se contesta a legalidade da suspensão do Sicobe, pois tratava-se de um sistema altamente funcional, que impunha um rastreamento moderno de toda bebida produzida no país. Os fabricantes até hoje se articulam para que o sistema retorne, e isso prova a sua importância estratégica, porque é muito raro que empresários defendam mais controles e mais impostos sobre o que produzem.

Com a PL 3887/2020, porém, o governo Bolsonaro põe fim definitivamente ao sistema de fiscalização de bebidas, o que significará uma profunda derrota para todos que defendem a importância de se implementar, no Brasil, sistemas modernos e inteligentes de rastreabilidade dos produtos em circulação, especialmente os voltados para o consumo humano, como alimentos, bebidas e remédios.

Em relação ao desenvolvimento e à geração de empregos, o fim do Sicobe também provoca grandes prejuízos.

O Sistema de Controle da Produção de Bebidas (Sicobe) integra um conjunto de políticas públicas da chamada indústria 4.0. É uma iniciativa de política industrial avançada, pois permite ao Estado obter, instantaneamente, informações precisas sobre oferta, demanda, logística, preço e qualidade dos produtos. De posse dessas informações, as autoridades podem tomar decisões inteligentes e rápidas relativas a aumento ou redução de impostos, concessão de incentivos, estabelecimento de metas de qualidade, necessidades de melhorar o transporte e o escoamento dos produtos, além de produzir relatórios econômicos sempre precisos e atualizados.

As políticas industriais no século XXI, como nos ensina o economista Dani Rodrik, não podem se limitar, como no passado, a dar subsídios a determinadas empresas ou setores, medidas que frequentemente geram acusações (injustas em alguns casos, em outros não) de premiar incompetentes.

Novas tecnologias permitem ao Estado agir de maneira mais orgânica, ágil e eficiente, e uma das mais promissoras  são esses sistemas inteligentes de rastreabilidade, como era o Sicobe.

E onde entra a Casa da Moeda?

A Casa da Moeda produzia os selos digitais criptografados do Sicobe, que os fabricantes de bebida aplicavam, com uso de uma máquina especial, em cada um de seus produtos.

E ela era remunerada por esse serviço, que chegou a responder por quase 80% de seu faturamento.

O fim do Sicobe, ao final de 2016, representou um duro golpe nas finanças da estatal, que teve de demitir funcionários, cortar custos, e até hoje enfrenta problemas de caixa.

O gráfico abaixo, que pertence ao Relatório de Administração da Casa da Moeda, para o ano de 2020, não deixa dúvidas sobre o impacto negativo do fim do Sicobe, a partir do ano de 2017. Os lucros da empresa desabaram. Em 2015, a Casa da Moeda obteve lucro líquido de R$ 311 milhões. Em 2020, amargou um prejuízo de quase R$ 200 milhões.

Sendo uma estatal estratégica, que produz todo o dinheiro físico usado no país, além de passaportes e lacres de urnas eletrônicas, a Casa da Moeda do Brasil não precisaria, necessariamente, dar lucro. Mas o lucro gerado pelo Sicobe era bem vindo, sobretudo porque remunerava um serviço que ajudava a todo mundo: a Receita arrecadava mais com a produção de bebidas, havia um controle mais rigoroso da qualidade, e a indústria se via mais protegida contra a entrada de concorrentes clandestinos.

E por que os selos do Sicobe eram produzidos pela Casa da Moeda?

Porque a Casa da Moeda adquiriu, ao longo das últimas décadas, a infra-estrutura, a tecnologia, os recursos humanos e o maquinário, necessários para a produção de material que exige um alto nível de segurança e criptografia.

Não faria sentido entregar o Sicobe em mãos de uma empresa privada. Em virtude de sua importância estratégica, esses serviços devem ficar sob o controle do Estado. As informações contidas nos selos digitais do Sicobe poderiam prejudicar uma determinada indústria de bebidas, se caíssem em mãos erradas. O mesmo vale para a produção de moeda, passaportes e lacres das urnas eletrônicas usadas nas eleições brasileiras. São produtos que, por questões de segurança nacional, é melhor que sejam fabricados dentro da Casa da Moeda, empresa 100% estatal.

O Estado brasileiro precisa se modernizar. Isso é inquestionável e consenso de todos, independente de ideologias. E o Estado apenas será moderno se possuir estruturas que lhe permitam acompanhar o processo de digitalização crescente da economia contemporânea. Em caso contrário nossa economia será controlada por governos e corporações estrangeiras.

O Sicobe é uma dessas estruturas, e uma das mais estratégicas, porque a rastreabilidade é uma das demandas mais importantes do mundo moderno, tanto para um consumidor cada vez mais preocupado com a qualidade e a origem dos produtos ofertados, quanto para Estados interessados em melhorar sua arrecadação sem elevar a carga tributária. Vale ressaltar que, assim como a nossa urna eletrônica, o Sicobe era invejado lá fora. Autoridades estrangeiras vinham ao Brasil estudá-lo, para implementar em seus países.

O Brasil não pode ir na contramão da história. O Sicobe não apenas deveria ser preservado, e reativado, como aprofundado. A mesma tecnologia usada para rastrear bebidas, poderia ser usada para combustíveis, alimentos e toda espécie de produtos industrializados. A própria Casa da Moeda, antes do governo Bolsonaro, tinha planos de oferecer ao país modelos ainda mais sofisticados de rastreabilidade, que substituiriam o Sicobe.

Torçamos para que a nova direção da Casa da Moeda, hoje em mãos do Almirante Hugo Nogueira, e os deputados federais que forem debater a PL 3887/2020, meditem sobre os pontos discutidos nesse artigo.

Cabe à direção da Casa da Moeda defender os interesses da estatal e do país.

Sem o Sicobe, a Casa da Moeda pode morrer em poucos anos. E sem sistemas modernos de rastreabilidade, o Brasil enfrentará imensas dificuldades para se reindustrializar e se desenvolver, ou seja, não conseguirá gerar os empregos de qualidade que a nossa juventude exige!

E cabe ao Legislativo, que é um poder independente do Executivo, fazer as devidas correções no PL 3887/2020, para que ela signifique uma modernização do nosso sistema tributário, e não um retrocesso.

A qualidade da nossa cerveja, a necessidade de políticas industriais inteligentes, e a sobrevivência de uma das nossas estatais mais estratégicas, exigem um debate muito sério sobre as consequências, para o país, da extinção do sistema de controle da produção nacional de bebidas!

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Magnus Francisco Antunes Guimarães

02/07/2021 - 11h47

Excelente texto. Oportuno e esclarecedor. Por que? Simples. Porque a estratégia do Governo Federal é desconstruir as instituições públicas – mesmo aquelas que podem afetar nossa soberania – para, depois, privatizá-las. Aliás, a respeito da Casa da Moeda, a imprensa noticia sua venda, digo, sua entrega. Textos como o do Jornalista Miguel do Rosário, demonstram, além da qualidade, as competências de trabalho e o conhecimento da Casa da Moeda, abrindo espaços para reflexões da sociedade. Parabéns.

Tony

01/07/2021 - 23h04

Mais uma porcaria inútil a moda tupiniquim que precisa ser apagada quanto antes.

Galinze

01/07/2021 - 23h03

Esse tal de Sicobe é mais um penduricalho do estado para ser apadrinhado, roubado, e uma despesa a mais para os fabricantes de bebidas que sai do bolsoedo consumidor como de costume.

Que seja extinto quanto antes.

Obrigado.


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