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O golpe de 2016, a verve de Lula e a busca por uma saída salomônica

O presidente Lula é especialista em chistes. Um deles está colado na minha memória como que por superbonder, não sei bem porque. Numa entrevista, ele disse que as negociações diplomáticas, assim como as relações comerciais, precisavam olhar sempre para a autoestima do interlocutor, que nunca podia achar que estava perdendo. Eram tempos dos insuportáveis best […]

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O presidente Lula é especialista em chistes. Um deles está colado na minha memória como que por superbonder, não sei bem porque. Numa entrevista, ele disse que as negociações diplomáticas, assim como as relações comerciais, precisavam olhar sempre para a autoestima do interlocutor, que nunca podia achar que estava perdendo. Eram tempos dos insuportáveis best sellers de vendedores americanos.

Lula explicava, portanto, usando uma expressão que se usava muito nestes livros, e na mídia, que era necessário estabelecer o “ganha-ganha”.

Só que Lula não é vendedor de best seller, então acrescentou uma ironia deliciosa: “um ganha e outro acha que ganha”.

Eu sempre achei que tinha uma filosofia profunda por trás dessa frase, com o qual poderíamos resumir o que é, em suma, a política humana.

A política humana é a arte do ganha-ganha, em que um ganha e outro acha que ganha. A ironia encobre, naturalmente, algum tipo de injustiça. Ao mesmo tempo, uma troca inteiramente perfeita, seja na política, seja no comércio, é utópica. Então é preciso preservar, no mínimo, a autoestima de ambos. Quando dois governos fecham um acordo comercial, é inevitável que, de alguma maneira, este beneficie mais um do que outro. No entanto, ambos os governos precisam vender a seus eleitores que ganharam.

A situação é a mesma para essa polêmica sobre o discurso de Lula em seu périplo por Argentina e Uruguai, em que ele mencionou o golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, e, em seguida, chamou Michel Temer, o vice de Dilma que articulou o impeachment e herdou o poder, de “golpista”.

Lula e os ministros que respondem pela interlocução política do governo com a sociedade terão de encontrar uma saída salomônica para este impasse de ordem linguística e conceitual.

A saída mais fácil, naturalmente, e que irá trazer mais resultados imediatos, é esquecer o assunto.

Lula chama o golpe de golpe desde sempre, e nada mais ridículo, por parte da imprensa, em fingir surpresa com isso.

O incômodo é grande, na mídia corporativa, e nos meios políticos mais conservadores, porque está associado a algum grau de consciência de culpa, associado ao oportunismo, de enxergar nisso uma chance de constranger o governo e, sobretudo, isolá-lo de seus apoiadores mais fiéis e combativos, exatamente aqueles milhões de eleitores que foram às ruas lutar contra o golpe em 2016, que se mantiveram leais ao presidente durante sua prisão injusta, que resistiram impávidos a quatro anos de um governo de extrema-direita, e que, em 2022, organizaram uma campanha linda e vitoriosa.

A saída mais inteligente, todavia, não é esquecer. Não é jogar para baixo do tapete. A saída mais inteligente é fazer o bom combate político, sim. O governo pode ter algum prejuízo, mas também pode ser uma excelente oportunidade para se exercitar os músculos. Caso se movimente com a devida prudência, não é um risco tão grande assim.

E como se faz o combate político, numa democracia como a nossa, e numa questão como esta, puramente linguística e conceitual, sem diminuir a importância – muitas vezes central, em se tratando de política – da linguística e do conceito?

A meu ver, a fórmula é simples, antiga e bem conhecida de Lula: usar a verve, o humor e a inteligência. Uma pitada de ciência política é sempre bem vinda, para dar um verniz acadêmico e científico. Afinal o impeachment de Dilma Rousseff foi visto como um golpe pela maioria dos estudiosos.

Ah, mas foi dentro da “regras”. Não foi bem assim. O golpe de 1964 também procurou se adequar ao figurino da Constituição. O conceito de golpe é elástico, ainda mais em tempos cínicos e pós-modernos, em que pode-se destituir uma presidente legitimamente eleita sem a necessidade de apontar um crime de responsabilidade.

Por outro lado, Lula tem que tomar cuidado com um perigo muito claro: todos os golpistas que se mobilizaram em favor do impeachment continuam aí e uma parte enorme deles hoje é seu aliado. O STF apoiou o golpe, Marina Silva apoiou o golpe, Alckmin apoiou o golpe. Todos os partidos de centro, centro-direita e direita, sobre os quais o presidente vem aspergindo seu charme democrático, apoiaram o golpe, mas hoje querem apoiar Lula, porque o petista voltou a ser presidente da república e… enfim, a vida continua.

Hoje os jornalões amanheceram com editoriais furibundos em defesa da legalidade do impeachment de Dilma Rousseff. É como se tivéssemos voltado a 2016. Com uma diferença, contudo. Dessa vez, a esquerda está do lado dos vencedores. Ela ganhou uma batalha estratégica, as eleições presidenciais de 2022. Por isso mesmo, deverá partir dela uma postura magnânima, de um adulto a lidar com adolescentes birrentos.

O lado irônico é que, hoje, a mídia corporativa foi obrigada a incorporar o léxico “golpista” em seu vocabulário cotidiano. Na Globonews, na CNN Brasil, nos grandes jornais, ouvimos a mesma palavra ser repetida dia e noite, referindo-se aos terroristas que acampavam diante dos quarteis e, em seguida, invadiram e depredaram a praça dos Três Poderes.

Como Lula ousa comparar esses terroristas, eles sim golpistas odientos e desclassificados, com o que fizemos em 2016 – deve passar pela cabeça dos editorialistas da mídia?

Enfim, reitero, essa é uma guerra de comunicação que não terminará com vencedores X perdedores. Ela tem de terminar com um “ganha-ganha”.

A esquerda ganha, porque ainda tem em mãos um trunfo importante, a presidência da república.

E a direita acha que ganha, porque seus porta-vozes na grande mídia podem exercer livremente o famoso jus sperneandi, o direito de espernear.

Entretanto, a esquerda também deve lembrar que, em boa parte, ela também está do lado daqueles que “acham que ganham”, porque os juros básicos do Brasil permanecem os mais altos do mundo, nossa sociedade continua profundamente desigual, e a mídia conservadora ainda tem capacidade de produzir crises, mobilizar o judiciário e desestabilizar governos.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Comentários

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carlos

28/01/2023 - 18h14

Falando em político, o judas iscariotes, machucados com a corja do psdb que só tem quem só políticos salafrários.

carlos

28/01/2023 - 14h02

Uma “SUGESTÃO ” eu vou sugerir para o medoador deixar os comentário visíveis até possa mediar e se aprova ou deleta por que o leitor ler sabe naturalmente vai ver se o conteúdo foi aceito ou não.

Paulo

27/01/2023 - 20h00

Nem esses livros de “autoajuda” Lula deve ter lido. Alguém assoprou pra ele e ele “pescou” a ideia, como bom encantador de serpentes que é, desde os tempos de sindicato…

Alexandre Neres

27/01/2023 - 13h44

Depois de um período marcado pelo golpismo e por golpistas, consubstanciado em 2016 e que culminou com os atos terroristas perpetrados em 8J, para promover as reformas neoliberais, dar carta branca aos militares sem a tutela dos civis e grassar a fome país afora, os supostos limpinhos que agora tentam se livrar do bolsonarismo ficaram melindrados com a fala do presidente Lula. Grande parte votou no boçal-ignaro em 2018, mas não quer acertar as contas com a própria consciência.

Por oportuno, não se pode olvidar, como bem demonstrou por a+b o ilustre professor e pesquisador Fábio Sá e Silva, que há uma linha de continuidade entre os atos de 8J e a Lava Jato, de onde partiram os ataques mais furibundos e despropositados ao STF e aos tribunais superiores. Lá atrás eclodiu o ovo da serpente que gerou tanta perplexidade hoje em dia.

Essas pessoas que se mostraram golpistas desde o impeachment não podem deixar de fazer uma autocrítica, o que tanto tempo solicitaram ao PT que voltou ao lugar de direito. Impeachment não é um processo político, mas, sim, jurídico-político, faz-se mister que tenha sido praticado um crime de responsabilidade, no qual não se enquadram as pedaladas fiscais e a edição de decretos suplementares, as quais, inclusive, foram levadas a cabo inúmeras vezes e não geraram consequências para a soberania popular. Não basta conferir a legitimidade pelo procedimento, é fundamental que a legitimidade pela substância também se verifique.

Basta dar uma olhada nos editoriais dos jornalões de hoje para ver o quanto estão estrebuchando para fugir das suas responsabilidades, afinal todos sabemos o que fizeram no verão passado. Também se insurgem contra o pacote da democracia e contra Xandão, justo eles que transformaram o provinciano e cafona Serjo Morto em super-herói e que foram tão acríticos e umbilicalmente ligados à força-tarefa de Curitiba, fazendo press release e se tornando meras correias de transmissão sem investigar bulhufas, abdicando do jornalismo. Jornalistas renomados desses veículos tiveram a pachorra de levar a Curitiba folhas e mais folhas de abaixo-assinado pugnando pelas famigeradas 10 medidas contra a corrupção, de cunho fascista, dentre as quais se apregoava o fim do habeas corpus e a utilização de provas obtidas de forma ilícita em processos judiciais. Graças ao fato de tais medidas não terem sido aprovadas é que esses meliantes circulam livremente por aí. Por ora, ainda subsiste o Estado Democrático de Direito. Como essa turba toda ainda tem a desfaçatez de fingir se indignar?

Bandoleiro

27/01/2023 - 12h19

Cutucar quem mais ou menos manda no MDB (partido que pode ser em parte aliado) nao me parece nada inteligente.

Lula nao tem mais nada a ver com nada ha anos e foi desenterrado e eleito pelo STF para nao ter novamente Bolsonaro no meio atrapalhando.

Sabme muito bem que é uma fantoche que por poder e dinheiro abre as portas e deixa o caminho aberto para todo mundo…ja vimos claramente isso no passado.


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