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Em coletiva em Pequim, Lula sinaliza guinada forte pró-China e pró-Brics

“Nós não somos apenas o país do futebol, o país do carnaval. Nós somos o país da política, o país do consenso, o país da paz, o país da democracia.” Esta declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, feita durante a coletiva de imprensa ao final de sua visita à China em maio de […]

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13.05.2025 - Cerimônia de Assinatura de Atos Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva e o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, durante a cerimônia de assinatura de Atos, no Palácio do Povo. Pequim - China. Foto: Ricardo Stuckert / PR

“Nós não somos apenas o país do futebol, o país do carnaval. Nós somos o país da política, o país do consenso, o país da paz, o país da democracia.”

Esta declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, feita durante a coletiva de imprensa ao final de sua visita à China em maio de 2025, sintetiza de maneira brilhante o posicionamento do Brasil no cenário internacional.

Lula criticou a postura de países que aprovam orçamentos para financiar guerras enquanto milhões de pessoas passam fome no mundo. “Não é possível que o mundo esteja outra vez se armando quando nós precisamos alimentar 733 milhões de pessoas que não têm o que comer. Nós precisamos, no mínimo, ter a dignidade de achar que a melhor arma que um país tem que ter é a segurança alimentar. E nós precisamos garantir isso para acabar com a fome no mundo”, afirmou o presidente.

O presidente relatou ainda que, no início da guerra na Ucrânia, o chanceler alemão Olaf Scholz foi à Brasília com a intenção de convencê-lo a vender armas para o conflito, proposta que foi prontamente recusada pelo governo brasileiro.

Uma mudança de paradigma

O presidente Lula já havia visitado a China em 2023, mas o governo brasileiro ainda demonstrava certa hesitação em relação ao posicionamento do país no complexo tabuleiro geopolítico mundial. O Itamaraty e a política externa brasileira mantinham uma ambiguidade calculada sobre como se posicionar diante do acirramento das tensões entre Estados Unidos e China, especialmente considerando as incertezas políticas nos EUA.

Esta viagem, no entanto, marcou uma mudança importante. Embora o governo brasileiro continue a adotar uma postura de “ambiguidade estratégica” – buscando tirar vantagens das relações com ambas as potências –, as falas de Lula empurram a política externa decididamente para o lado da China.

A mudança deve ser explicada por um fato novo: o tarifaço de Trump, que literalmente explodiu a ordem comercial do mundo. O acordo celebrado entre EUA e China há alguns dias, reduzindo as tarifas americanas sobre produtos chineses para 30% ou 40%, não resolve o problema, porque as tarifas ainda permanecem muito elevadas, são provisórias e sobretudo não curam a ferida aberta pela inacreditável truculência da Casa Branca. Além do mais, o governo americano continua aplicando sanções unilaterais contra empresas chinesas estratégicas, e tentando dividir o mundo em blocos formado por vassalos americanos, de um lado, e “adversários”, de outro.

O próprio Lula menciona esse acordo, quando responde a uma das perguntas da imprensa. “Olha, primeiro, o acordo feito entre Estados Unidos e China, em Genebra, se não me falha a memória, é uma demonstração, pura e simplesmente, de que tudo seria mais fácil se antes de anunciar de forma unilateral as taxações, os Estados Unidos tivessem conversado com a China. Seria muito mais fácil, muito mais simples e muito menos penoso para o mundo”, afirmou o presidente.

O Brasil e a nova ordem mundial

Na coletiva, Lula consolidou sua posição como principal liderança do Sul Global. Embora a China, representada pelo presidente Xi Jinping, seja naturalmente a maior potência deste bloco, o Brasil emerge como uma voz fundamental que representa os países em desenvolvimento que ainda lutam para alcançar níveis mais elevados de prosperidade.

O presidente defendeu uma reforma profunda do sistema multilateral, destacando a necessidade de instituições internacionais que reflitam a nova realidade geopolítica. “Vamos pegar uma coisa simples. Em 1947, 48, a ONU teve força para criar o Estado de Israel. Hoje a ONU não tem força para criar o Estado Palestino. Alguma coisa mudou. Houve um enfraquecimento das Nações Unidas nas suas decisões”, observou Lula.

Um dos momentos mais importantes da entrevista foi quando o presidente brasileiro abordou a questão do dólar como moeda dominante no comércio internacional. Ao ser perguntado sobre o papel dos BRICS nesse novo cenário internacional, Lula conectou diretamente a questão do dólar com o fortalecimento do bloco: “Os BRICS não nasceram para ser contra ninguém. Os BRICS nasceram para ser a favor dos países que participam dos BRICS. E eu acho que os BRICS têm um papel extraordinário a cumprir. Primeiro, porque tem países importantes, como a China, como a Índia, como a Rússia, como o Brasil, como a África do Sul. E agora tem outros países que entraram. E eu acho que a gente pode fazer muito comércio entre nós, utilizando as nossas moedas. Por que eu tenho que comprar dólar para comprar da China? Por que eu não posso comprar em real e a China vender em yuan? Quem é que decidiu que o dólar era a moeda padrão? Vocês participaram de alguma votação? Eu não participei. Não. Foi os Estados Unidos que impuseram.”

Genocídio em Gaza

Ao abordar a situação em Gaza, o presidente brasileiro rompeu com a timidez e hipocrisia que caracterizam muitas lideranças europeias, falando com emoção contra o genocídio. Esta postura firme contrasta fortemente com a abordagem cautelosa e frequentemente ambígua adotada por líderes europeus, que evitam críticas diretas a Israel apesar das evidências de violações de direitos humanos.

“O que está acontecendo em Gaza é uma coisa extremamente grave para a humanidade. É muito grave. E a ONU não toma nenhuma decisão”, declarou o presidente brasileiro, destacando a gravidade da situação e a inação das instituições internacionais.

Sobre a guerra na Ucrânia, Lula defendeu a paz de forma assertiva. “Eu tive a petulância de um dia ligar para o presidente Putin e dizer para o Putin: pare com essa guerra e volte para a política, porque a política está precisando muito de mudar o debate pelo crescimento da extrema-direita radicalizada, nazista no mundo inteiro”, revelou o presidente, reforçando sua posição como defensor do diálogo e da diplomacia.

China e Brasil: parceria estratégica para o desenvolvimento

Diferentemente da abordagem adotada por potências ocidentais, que frequentemente utilizam uma linguagem de blocos, adversários e aliados, a China oferece uma narrativa de cooperação que ressoa com a visão brasileira de relações internacionais.

“A nossa relação com a China é estratégica. É muito estratégica. E a gente quer aprender. A gente quer mais investimento. A gente quer atrair mais investimento. A gente quer mais coisa no Brasil. A gente quer mais ferrovia. A gente quer mais metrô. A gente quer mais tecnologia. A gente quer inteligência artificial. A gente quer tudo que eles podem compartilhar conosco. E a palavra correta é ‘compartilhar’. Porque a gente precisa aprender a trabalhar junto para que as coisas possam dar os frutos que nós precisamos”, destacou Lula.

Durante a visita, foram assinados importantes acordos de cooperação em áreas estratégicas como infraestrutura, tecnologia, energia renovável e comércio. A China reafirmou seu compromisso de investir no Brasil e de abrir seu mercado para mais produtos brasileiros.

Entre os acordos mais significativos está o memorando de entendimento para a construção de um centro de pesquisa e desenvolvimento tecnológico conjunto, que permitirá ao Brasil acessar tecnologias de ponta em áreas como inteligência artificial, energia limpa e biotecnologia. Também foram firmados compromissos para ampliação dos investimentos chineses em infraestrutura brasileira, incluindo portos, ferrovias e redes de transmissão de energia, fundamentais para impulsionar o desenvolvimento econômico do país.

“E nós viemos aqui para dizer que nós queremos também trocar produtos com maior valor agregado e, por isso, nós queremos que os chineses nos ajudem a dar esse avanço no desenvolvimento tecnológico que nós precisamos. Aí entra a discussão da transição energética, da transição climática, entra a questão da inteligência artificial”, afirmou o presidente brasileiro, sinalizando uma nova fase nas relações bilaterais.

É interessante comparar este momento histórico com outro episódio da história brasileira. Quando o presidente João Goulart visitou a China, ao retornar encontrou um país dominado por um golpe pró-americano. Com Lula, ocorreu exatamente o oposto: ele visita a China e, ao voltar, encontra um país onde tentativas de desestabilização estão sendo julgadas duramente pela justiça.

A China que Lula visita em 2025 é radicalmente diferente daquela visitada por Goulart décadas atrás.

Hoje, o país asiático é o motor do crescimento global, a grande manufatura do mundo e um centro de difusão tecnológica importantíssimo. Mais importante, a China se apresenta como uma potência aberta ao mundo, em contraste com o crescente isolacionismo e protecionismo de outras nações desenvolvidas.

O Sul Global como esperança para um mundo multipolar

A viagem de Lula à China reforça a ideia de que a esperança para um mundo mais justo e equilibrado reside no Sul Global, com o Brasil desempenhando um papel fundamental nesse processo. Enquanto potências tradicionais parecem cada vez mais voltadas para si mesmas, países como Brasil e China defendem o fortalecimento do multilateralismo e das instituições internacionais.

“Outra coisa que me deixa bastante satisfeito é a combinação de interesses nossos na defesa do multilateralismo. Ou seja, o multilateralismo foi o que sustentou uma certa concórdia neste mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Tentar estabelecer unilateralismo agora, tentar acabar com a coesão que o multilateralismo permitiu na questão comercial, é, no mínimo, um equívoco que está se cometendo e, por isso, o Brasil está defendendo com muita força o multilateralismo, fortalecer o multilateralismo e lutar contra o protecionismo”, afirmou Lula.

Os efeitos desta histórica viagem de Lula à China ainda serão sentidos por muito tempo. Ao consolidar o Brasil como uma voz influente no Sul Global e ao fortalecer a parceria estratégica com a China, o presidente brasileiro oferece diretrizes mais audaciosas para nossa política externa. Agora cabe ao Itamaraty segui-las, e às empresas e cidadãos tirar proveito das oportunidades que elas abrem para o país.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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