EUA rejeitam supervisão internacional de inteligência artificial na ONU e expõem divisão global sobre tecnologia
A Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada nesta semana em Nova York, colocou a inteligência artificial (IA) no centro do debate mundial. Chefes de Estado, especialistas e representantes de grandes corporações destacaram tanto os riscos quanto as oportunidades dessa tecnologia, defendendo a criação de mecanismos de cooperação internacional. Mas os Estados Unidos destoaram do coro global: a delegação norte-americana rejeitou com veemência qualquer possibilidade de governança centralizada ou de supervisão multilateral.
O choque de posições ficou evidente nas discussões do Conselho de Segurança da ONU sobre IA. Representando Washington, Michael Kratsios, diretor do Escritório de Política Científica e Tecnológica, foi categórico:
“Rejeitamos totalmente todos os esforços de órgãos internacionais para afirmar o controle centralizado e a governança global da IA”.
Segundo Kratsios, o futuro da inteligência artificial não deve depender de “gestão burocrática”, mas da “independência e soberania das nações”.
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Trump busca protagonismo, mas sem ceder à ONU
Enquanto sua delegação se opôs à governança global, o então presidente Donald Trump adotou um discurso ambíguo na abertura da Assembleia Geral. Em tom de liderança, afirmou que os EUA pretendem ser “pioneiros em um sistema de verificação de IA em que todos podem confiar” para reforçar a Convenção sobre Armas Biológicas.
Trump reconheceu os dilemas da tecnologia: a IA, disse ele, “pode ser uma das grandes coisas de todos os tempos, mas também pode ser perigosa, mas pode ser usada para fins extremamente úteis e extremamente benéficos”. O presidente acrescentou esperar que a ONU desempenhe um papel “construtivo” nesse processo, mas sem abrir mão da autonomia norte-americana.
A posição oficial de Washington
Em resposta às críticas, um porta-voz do Departamento de Estado declarou à NBC News que os EUA não são contra a cooperação em si, mas contra o que classificam como controle excessivo. “Os Estados Unidos apoiam nações com ideias semelhantes que trabalham juntas para incentivar o desenvolvimento da IA em consonância com nossos valores compartilhados. A posição dos EUA em organismos internacionais é defender vigorosamente abordagens internacionais de governança da IA que promovam a inovação, reflitam os valores americanos e combatam a influência autoritária.”
Na prática, o governo norte-americano sinaliza que quer moldar as regras do jogo de forma a proteger seus interesses e valores, sem abrir espaço para que organismos multilaterais tenham poder sobre suas decisões tecnológicas.
ONU lança iniciativa inédita para governança da IA
A resistência dos EUA destoou do clima geral na Assembleia. Na quinta-feira, a ONU lançou oficialmente o Diálogo Global sobre Governança da IA, primeiro órgão multilateral dedicado ao tema e aberto à participação de todos os Estados-membros. O secretário-geral António Guterres descreveu a iniciativa como essencial para garantir que a inteligência artificial seja regulada de maneira compatível com sua velocidade de evolução.
O objetivo, afirmou, é “estabelecer as bases de um ecossistema global de IA que pudesse acompanhar o ritmo da tecnologia que mais evolui na história da humanidade”.
O debate foi reforçado por vozes acadêmicas de peso. O economista Daron Acemoglu, ganhador do Prêmio Nobel, fez um alerta contundente: “a IA é a maior ameaça que a humanidade já enfrentou”. Para ele, os riscos sociais, econômicos e políticos associados ao uso descontrolado da tecnologia exigem respostas globais urgentes.
Divergências de interpretação
Apesar da postura dura da delegação norte-americana, representantes da ONU tentaram minimizar a polêmica. Em entrevista à NBC News, Amandeep Singh Gill, enviado especial das Nações Unidas para tecnologias digitais e emergentes, disse acreditar que a visão crítica dos EUA foi “mal interpretada”. Segundo ele, Washington não estaria rejeitando completamente a cooperação internacional, mas defendendo um modelo menos centralizado.
ONU rebate críticas e recebe apoio de outros países
“Acho que é uma distorção dizer que a ONU está de alguma forma interferindo na regulamentação da IA”, afirmou Amandeep Singh Gill, enviado especial das Nações Unidas para tecnologias digitais e emergentes. “Não se trata de tomada de poder de cima para baixo em termos de regulamentação. A regulamentação permanece onde a regulamentação pode ser feita em jurisdições soberanas.”
Segundo Gill, os esforços da ONU não buscam impor regras globais de forma autoritária, mas criar espaços legítimos de diálogo. Os mecanismos multilaterais, ressaltou, “fornecerão plataformas para cooperação internacional na governança da IA”.
China reforça posição contra unilateralismo
A fala de Gill veio logo antes da intervenção do vice-ministro das Relações Exteriores da China, Ma Zhaoxu. Em tom direto, ele criticou o isolacionismo de Washington:
“É vital promover conjuntamente um ambiente aberto, inclusivo, justo e não discriminatório para o desenvolvimento tecnológico e se opor firmemente ao unilateralismo e ao protecionismo.”
Ma destacou ainda que Pequim apoia o papel central da ONU: “Apoiamos a ONU desempenhando um papel central na governança da IA”.
Europa reage: “a hora é agora”
No dia seguinte às falas de Michael Kratsios, foi a vez do primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, enviar um recado claro aos Estados Unidos. Em discurso, defendeu a urgência de uma visão coordenada e multilateral.
“Precisamos coordenar uma visão compartilhada da IA em nível global, tendo a ONU como fórum legítimo e inclusivo para forjar consenso em torno de interesses comuns”, disse Sánchez. “Agora é o momento, quando o multilateralismo está sendo mais questionado e atacado, em que precisamos reafirmar sua adequação para enfrentar desafios como os representados pela IA.”
A declaração europeia foi vista como um contraponto direto às críticas americanas, reforçando o bloco de países que acreditam que a inteligência artificial só poderá ser administrada de forma eficaz por meio de instituições multilaterais.
Especialistas alertam para riscos transnacionais
Para especialistas, o impasse diplomático evidencia como a corrida pela IA ultrapassa fronteiras e exige cooperação. Renan Araujo, diretor de programas do Instituto de Política e Estratégia de IA, em Washington, afirmou à NBC News:
“Ninguém quer ver uma estrutura de governança burocrática e onerosa, e os EUA conseguiram iniciar coalizões bilaterais e minilaterais. Ao mesmo tempo, devemos esperar que os desafios relacionados à IA se tornem mais transnacionais por natureza, à medida que as capacidades da IA se tornam mais avançadas.”
Ou seja, embora os Estados Unidos prefiram alianças seletivas e flexíveis, a complexidade crescente da IA pode obrigar até os mais resistentes a dialogar em fóruns multilaterais.
O histórico da ONU e os próximos passos
Esta não é a primeira vez que as Nações Unidas se debruçam sobre o tema. Em 2024, a organização aprovou o Pacto Digital Global, que estabeleceu as bases para o debate sobre inteligência artificial e criou um painel científico internacional independente. A missão desse painel é avaliar riscos, capacidades e cenários futuros para a tecnologia. Segundo Guterres, as indicações para compor o grupo já estão abertas.
O lançamento oficial do Diálogo Global sobre Governança da IA, ocorrido nesta quinta-feira, foi apenas o primeiro passo. A agenda prevê que a primeira reunião completa aconteça em Genebra, no verão de 2026, paralelamente à cúpula anual “IA para o Bem”, organizada pela União Internacional de Telecomunicações. Até lá, as funções exatas do novo órgão e suas primeiras medidas concretas serão discutidas e definidas.


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