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Música é confronto: Dror Feiler no II FIME

Por Pérola Mathias*, colunista convidada da editoria musical do Cafezinho. Fotografia: Pérola Mathias “O ruído é um dos elementos centrais na minha música. A abrasiva aspereza da música é uma tentativa de alterar como as pessoas ouvem. O ruído, enquanto som fora de seu contexto familiar, é confrontacional, afetivo e transformador. Tem um valor de choque e […]

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Por Pérola Mathias*, colunista convidada da editoria musical do Cafezinho.
Fotografia: Pérola Mathias

“O ruído é um dos elementos centrais na minha música. A abrasiva aspereza da música é uma tentativa de alterar como as pessoas ouvem. O ruído, enquanto som fora de seu contexto familiar, é confrontacional, afetivo e transformador. Tem um valor de choque e desfamiliariza o ouvinte que espera da música uma fluidez fácil, uma familiaridade segura ou algum tipo de suavização. Com isto, o ruído politiza o ambiente aural” – Dror Feiler, trecho retirado do site do FIME, SP.

Quando Dror Feiler se apresentou em julho do ano passado no Brasil, fiquei tão intrigada que escrevi um texto sobre sua música e seu discurso. Exatamente um ano depois da apresentação que assisti na Audio Rebel (Rio de Janeiro), Feiler retornou ao Brasil para o II FIME, em São Paulo. Aqui, apresentou-se com a Noise Orchestra, formada por músicos selecionados em uma oficina que ele ministrou previamente.

Dror Feiler estudou música, interpretação e musicologia, toca saxofone, participou da banda de jazz Lokomotiv Konkret e fundou a The Too Much Too Soon Orchestra. Feiler também compõe peças para orquestras e é um ativista de esquerda engajado na questão palestina. Filiado ao JIPF (Judeus pela Paz Israel-Palestina), uma organização fundada na Suécia depois do início da Guerra do Líbano em 1982, participa de diversas ações que confrontam o estado de Israel e lutam pela criação do estado da Palestina — muito de seu trabalho pode ser visto no seu canal do Youtube. Enfim, estar em frente a um ativista do porte de Feiler, promovendo tal experiência sonora, me colocou no círculo do meu hoje, no centro do caos do mundo.

A apresentação no SESC Consolação (no dia 17/07/2016) foi mais uma peça de volume alto, que contou com 16 músicos que lotavam o palco. The no flow foi feita exclusivamente para a ocasião. A performance de Feiler com a Noise Orchestra evocava força física, exaustão, suor, rostos vermelhos de sangue correndo e a concentração de todos no palco acompanhando a partitura ao longo de mais de 50 minutos.

É possível pensar na música experimental explorada por Feiler, e tema do festival, como uma nova linguagem e como uma desconstrução das formas estruturais da música que conhecemos e estamos acostumados a ouvir. O caos que nos aparece ao escutá-la pode ser momentaneamente irritante, mas se pensarmos na dimensão do caos que nos faz movimentar em alguma direção ou sentido, ele passa a ser um gerador criativo e reorganizador. No caos enlouquecemos, nos acostumamos ou nos movemos rumo a um estado desconhecido das coisas?

No dia seguinte à sua apresentação, Dror Feiler se disponibilizou para apresentar e falar sobre sua carreira e seu trabalho. Algo sempre presente em seu discurso é a relação entre a política e a música. Sua visão é a de que não dá para fazer política na música. Se se quer fazer política, que se faça política participando de protestos, manifestos, passeatas, etc. Na música, a aplicação política deve ser “in material itself”. É possível perceber o como, o por que e de que forma essa sua afirmação se justifica quando conhecemos seus trabalhos.

Para Feiler, o noise [a música de ruídos], a improvisação e a composição são uma coisa só, cada um sendo parte de um todo. O grande desafio do noise ainda hoje é lidar com o estranhamento do ouvinte. É possível fazer noise com uma orquestra, por exemplo, apesar de que o público que em geral se dispõe a ir a um concerto não está preparado para ouvi-lo.

De seu extenso currículo e das 3 horas em que ficamos com Feiler no SESC Consolação, destaco aqui três trabalhos que ele mostrou e discutiu para mostrar estas vertentes. O primeiro é a peça Maavak (que significa “struggle”, ou seja, esforço ou luta), de 1980-81, uma das primeiras que ele compôs para um grupo maior: são 4 contrabaixos, 6 percursionistas e 8 instrumentos de sopro. Ele pondera que a entrada na música composta é difícil porque há uma dificuldade de aceitação também por parte dos músicos.

Nesta peça, por exemplo, o grupo do sopro reclamou que estava tudo sempre nas partes mais altas/agudas dos instrumentos. Feiler relata que os músicos ficaram apreensivos com a peça pelo fato de que eles não tocavam em uníssono, expressando o medo de que o público achasse que eles estavam tocando errado. Mas, para ele, este é um exemplo de que é preciso aceitar mudanças na música e enxergá-la de uma nova maneira. Existe o clichê na música contemporânea de que tudo deve ser tocado junto e em Maavak tudo é apresentado um pouco depois.

A peça chamar-se “esforço” é um exemplo do que ele quer dizer sobre a música ser a questão em si do que ela quer passar, e não uma alusão ou representação. Ali são 4:22 em que os músicos precisam de muita força para tocá-la: “não é um esforço contra alguma coisa, é um esforço inerente à própria música”, diz.

Na primeira performance desta peça, quando os músicos tocaram, foi um festival para compositores nórdicos em Copenhagen. Mas na estreia sueca, os contrabaixistas, depois que terminaram a execução, pegaram a partitura, jogaram no chão e pisaram em cima. E depois disso, Feiler irreverentemente diz que colocou na partitura que todos os músicos deveriam jogar a partitura no chão e pisar nela ao terminarem de tocar.

Já em 2008, The Bavarian Radio Symphony Orchestra de Munique encomendou uma peça a Feiler. Ele compôs Halat Hisar, uma obra para uma flauta baixo, piano preparado e uma orquestra com 90 pessoas tocando. Ele conta que foi para a Alemanha ensaiar durante uma semana, mas duas horas antes da estreia os músicos disseram que não iriam tocar, alegando que a peça toda era muito alta. Segundo Feiler, nenhum dos instrumentos tinha amplificação, exceto a flauta. Ele teve que ir pra casa sem esta primeira performance.

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Como, nas palavras dele, “o escândalo é bom para o showbusiness”, ele recebeu chamadas da França, Itália e Inglaterra convidando-o para tocar a peça. Mas não pôde ir porque a orquestra de Munique alegou que o contrato dava-lhes uma exclusividade de dois anos sobre a composição. É possível encontrar uma matéria no The Guardian sobre o caso, em que Feiler argumenta que este seu trabalho não é mais alto, por exemplo, do que nada de Shostakovich ou Wagner. Os músicos consideraram tocar usando fones de ouvido, mas não seria uma saída pelo fato de que assim não estariam aptos a ouvirem uns aos outros. Feiler, obviamente, também rejeitou a ideia.

Quando Feiler mostra essas duas peças, Maavak, de 1980, e Halat Hisar, de 2008, ele quer mostrar um pouco do que caracteriza o tipo de música que escolheu fazer. Pois o que ele conta é que as pessoas falavam, quando ele era um compositor jovem, que suas músicas eram muito barulhentas, mas que quando ele ficasse velho iria “melhorar”. Mas ele pondera que acabou ficando pior — ou melhor, dependendo do ponto de vista.

Em Halat Hisar, que é o título de um poema palestino e significa “Estado de sítio” (State of siege), ele quis criar um estado de sítio em torno do piano e da flauta que não fosse a tentativa de reprodução de um estado de sítio acontecendo em outro lugar, mas no ali e agora da apresentação – e com esta ideia, a peça não poderia ser algo agradável.

A peça é realmente muito alta e a ponderação que Feiler faz nos apresentando o vídeo é que ele se pergunta, olhando a tela, se os músicos estão loucos, porque mesmo com o barulho produzido, não demonstram nada, nenhum tipo se sentimento ou desconforto, apenas estão lá tocando concentrados. É um comentário paradoxal e engraçado. No palco, podemos ver dois pianos colocados lado a lado, com preparações diferentes, em que um único musico vai se alternando entre eles conforme o andamento da peça. Junto a ele no centro, está a flautista e os demais músicos que se organizaram todos em volta destes dois solistas.

O pianista diz depois, em uma entrevista a um programa de televisão, que foi muito difícil tocar a peça toda, pois havia muita coisa para fazer o tempo todo, mas que mesmo assim estava feliz em ter participado porque entende a música como resistência – o que é exatamente aquilo que Feiler queria significar ali sem precisar usar palavras.

O princípio de regência desta peça é o mesmo utilizado na apresentação no FIME com a Noise Orchestra. A execução da peça vai se dando em blocos, nos quais cada instrumentista vai seguindo individualmente. De acordo com os blocos previstos antes, estes podem ser alterados, ter o fluxo interrompido e sempre algo novo irá acontecer. Parece ser algo que o agrada e que é recorrente em suas obras.

Por fim, destaco o trabalho Ondinonnk. Resultado de uma pesquisa de Feiler sobre as pessoas que tocam nas ruas, especialmente aquelas que não tocam bem. Seu raciocínio foi que, em nossa sociedade, pedintes e mendigos são considerados as pessoas de mais baixa estima. E essas pessoas que tocam são pedintes de algum modo, mas elas ainda fazem e nos dão algo em troca. Foi coletando por muitos e muitos anos vídeos destes músicos ao longo de todo o mundo – México, Guatemala, Colombia, Rússia, etc. – que surgiu Ondinonnk. A palavra significa, em uma língua indígena americana, a linguagem dos desejos não realizados.

Nas figuras reunidas, vemos um senhor em Guadalajara que toca uma mesma melodia, andando por todos os lugares. Sua frase musical aparece com destaque no começo e no final do vídeo como predominante. Em contraponto, Feiler acompanhou um cara no violão em Bogotá por anos, constatando que ele sempre estava sempre no mesmo lugar.

Em Santa Aurelia, na fronteira do México com a Guatemala, diz que escutou a música mais estranha de toda sua vida. Era o som de um grupo em uma igreja – que aparece em destaque no alto do vídeo, do lado direito, no minuto 6:32’. Segundo Feiler, o grupo tentava tocar mas não conseguia. Outra figura interessante do vídeo é um cara que canta uma única frase o dia todo: “Por que amor? Amor por que? ”. Ele aparece em destaque logo depois da igreja, também do lado direito do vídeo, aos 6:45’.

Assim, a peça consiste na gravação destas pessoas e na montagem de um vídeo que ora as destaca em 16 canais, ora sobrepõe estas pessoas, com suas imagens e sons absolutamente diversos, formando o que Feiler considera uma fuga de Bach ao contrário.

Com esta última obra, é possível refletir sobre o que é música “boa” e o que não é. Qual o parâmetro para definir coerência estética? Se consideramos algo belo, agradável ou genial, partimos de um parâmetro, seja ele convergência ou de quebra. E o que a música experimental tem nos proposto é, sobretudo, uma fuga de qualquer esquema de apreciação convencional e nos convidado a escutar outras linhas, outras formas e outras construções sonoras.

FIME_04

*Pérola Mathias é doutoranda em Sociologia pela UFRJ e escreve no blog poroaberto.tumblr.com.

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Bernardo Oliveira

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Antonio Passos

08/08/2016 - 13h54

Desculpe, mas parei de ler onde “os músicos pisaram na partitura”. E esse cara diz que “não dá pra se fazer política na música” ? Então é apenas grosseria ? Dá para fazer política na música SIM. É claro que dá, aliás música e política têm seus laços. O que não dá é para se fazer FALSA música, sob pretextos “intelectualóides”. Os roqueiros dos 60s quebravam guitarras, mas isto tinha um sentido político e estético. Pisar partitura não é portanto nada original, mas neste caso parece não ter é sentido algum.


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